05/10/2005

Possibilidade constitucional do asfaltamento da BR 156

Possibilidade constitucional do asfaltamento da BR 156 em trecho que incide em Terra Indígena


 


1. Consulta


 


Trata-se de consulta encaminhada pelo membro do Cimi, Pe Nello Rufaldi, à pedido de Organizações e lideranças indígenas na região do Município de Oiapoque, no Estado do Amapá, à respeito de acordos e tratativas que estariam sendo discutidas com representantes da Funai, do Ibama, do Governo do Estado do Amapá e com a “SETRAP”, cujo significado não é esclarecido na Consulta.


 


A questão refere-se ao interesse do poder público federal e estadual, no sentido de efetivar o asfaltamento da estrada federal, BR 156, que incide parcialmente na Terra Indígena Uaçá, entre o Km 18 e o Km 64, “no lado esquerdo no sentido Oiapoque-Macapá e nos dois lados do Km 64 até o km 102”.


 


De acordo com a consulta, os representantes da empresa contratada para asfaltar a estrada BR 156 e do Ibama informaram que as comunidades indígenas deveriam considerar e proceder da seguinte forma:


As comunidades dão a anuência quanto às obras do asfaltamento e informam disso a Funai junto com suas reivindicações. 


A Funai inclui as medidas cabíveis no PBA – Plano Básico Ambiental e informa o Ibama que por parte dela não existem obstáculos contanto que as reivindicações sejam cumpridas.


O IBAMA recebe e libera a obra anexando a versão final do PBA e condicionando à assinatura do convênio.


A Funai terá, a partir deste momento, 60 dias para apresentar a proposta do convênio traduzida em termos quantitativos, indicando quanto custa cada item.   


Depois de 60 dias o convênio é assinado e na ocasião é estabelecida a duração do mesmo e um cronograma para repasse dos recursos.  


Conforme o cronograma o empreendedor repassa os recursos para a Funai que os aplica conforme o convênio reza.


Se o empreendedor não cumpre com o convênio o Ibama é notificado e este retira a licença e pára a obra


 


2. Resposta


 


A questão suscitada na Consulta envolve a análise do problema sobre dois aspectos.


 


O primeiro, que no caso se revela o mais relevante, consiste em saber sobre a possibilidade constitucional de se empreender uma obra federal em terra tradicionalmente ocupada por índios e que lhes retira a posse permanente sobre trecho dessa terra e impede que usufruam exclusivamente das riquezas naturais existentes no solo, nos rios e nos lagos da terra que tradicionalmente ocupam.


 


A Constituição Federal, no § 6º do art. 231, considera nulos e extintos, quaisquer atos que visem a posse, a ocupação ou o domínio das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, inclusive os atos que impliquem na exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.


 


No entanto, o constituinte originário, fixou uma ressalva a esta regra de proteção à integridade do espaço físico destinado à habitação e ao desenvolvimento físico e cultural dos povos indígenas.


 


Admite-se que atos de relevante interesse da União incidentes em terras tradicionalmente ocupados por índios, possam ter validade, desde que previstos em Lei Complementar.


 


Ocorre que esta Lei Complementar não existe. Conseqüentemente, são nulos e extintos, quaisquer atos que visem a posse, o domínio ou a ocupação de terras tradicionalmente ocupadas por índios.


 


A existência de uma estrada federal, parcialmente incidente em terra tradicionalmente ocupada por índios, como se revela no caso da BR – 156, incidente parcialmente na Terra Indígena Uaçá, não legitima o poder público federal a prosseguir na sua utilização, asfaltando-a.


 


O ato administrativo que determinou a construção da BR – 156 na Terra Indígena Uaçá é nulo de pleno direito. Da mesma forma, continuarão sendo nulas todas as medidas destinadas à melhoria da mesma, para efeito de sua utilização.


 


Constitucionalmente, a única forma de regularizar esta situação, consiste em prever-se em Lei Complementar aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente da República, que a BR – 156, incidente na Terra Indígena Uaçá, é de relevante interesse público da União, bem como seu asfaltamento.


 


No entanto, a Lei Complementar deverá dispor sobre as medidas compensatórias aos povos e comunidades indígenas que tradicionalmente ocupam a área que passará a ser suprimida da posse permanente e do usufruto exclusivo.


 


À propósito deste assunto, tramita na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei Complementar n° 260, de 1990, que visa definir as hipóteses de relevante interesse público da União, para os fins previstos no art. 231 da CF. Esta proposição legislativa foi elaborada e apresentada pela Mesa do Senado Federal, tendo sido aprovada nesta casa legislativa, aguarda sua apreciação na Câmara dos Deputados. No momento o PLP 260/90 se encontra na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, com voto favorável à aprovação do Relator, Deputado Wagner Lago (PP-MA).


 


A solução normativa adotada pelo Senado e que o Relator na CCJC da Câmara dos Deputados está concordando, prevê que quando se configure uma hipótese de relevante interesse público da União, o Poder Executivo federal encaminhará ao Congresso Nacional, para decidir especificamente se a hipótese suscitada pelo Poder Executivo é de fato de relevante interesse da União.


 


Admitido que determinado ato pretendido pela administração pública federal é de relevante interesse da União, passar-se-ia à fase de viabilização das condições para que a obra fosse construída, prevendo-se as medidas mitigadoras e compensatórias às comunidades indígenas que tradicionalmente ocupam a terra afetada pelo ato de relevante interesse da União.


 


Nesta situação, chega-se ao segundo aspecto do problema, ou seja o referente ao licenciamento ambiental, que nos termos do art. 10 da Lei n° 6938/81 e do inciso I do art. 4° da Resolução n° 237, de 19 de dezembro de 1997, do Conama,  compete ao IBAMA.


 


Para a concessão da Licença Ambiental, seria necessário a realização de Estudo de Impacto Ambiental e a conseqüente elaboração de um Relatório de Impacto Ambiental, precedido de consultas e audiência pública aos índios.


 


Convém esclarecer, que em alguns casos, tem sido adotada a solução patrocinada pelo Ministério Público Federal, no sentido de se firmar um Termo de Ajustamento de Conduta – TAC, no qual são previstas soluções para problemas relacionados às suas funções institucionais, como é a defesa dos direitos indígenas e do meio ambiente. Para tanto, com base no art. 6°, VII, c e XI, ambos da lei Complementar n° 75/93, são instaurados Inquéritos Civis Públicos, que podem ensejar a propositura de Ações Civis Públicas.


 


Esta solução seria possível, caso já estivesse em vigor a Lei Complementar a que se refere o § 6º do art. 231 da CF, de forma que soluções relacionadas às providências compensatórias pudessem vir a ser acordadas ou compromissadas.


 


No caso, não me parece que esta solução seja legalmente possível.


 


3. As propostas das Comunidades e Organizações Indígenas


 


Embora não conheça a Terra Indígena Uaçá, as propostas apresentadas pelas Comunidades e Organizações Indígenas me pareceram razoáveis, para efeito do início de entendimento.


 


No caso, considere-se que esta questão ainda não está regulamentada. Com efeito, após a aprovação e vigência da Lei Complementar definindo as hipóteses de relevante interesse da União, seria necessário regular em lei ordinária, as conseqüências da perda da posse permanente e do usufruto exclusivo pelos índios.


 


Considere-se que a situação equipara-se à hipótese de desapropriação de um terreno particular, para efeito de construção de uma rodovia federal. O Presidente da República decreta a área de utilidade pública e determina sua desapropriação, que é feita judicialmente pelo DNIT, que paga ao proprietário o valor da terra e construções nela edificadas.


 


No caso dos povos indígenas, como a terra é da União, a questão que precisa ser resolvida inicialmente pelo Poder Legislativo é como as comunidades indígenas cujas terras foram consideradas, mesmo que em parte, de relevante interesse da União, serão ressarcidas.


 


Para os povos indígenas, a solução de pagamento pecuniário pela perda da área, não é suficiente. A compensação territorial poderia ser considerada uma solução. As providências relacionadas à segurança do território também devem ser consideradas como parte da solução do problema, como a garantia de outras medidas compensatórias, decorrentes da utilização da estrada por particulares e pelo poder público municipais, estadual e federal.


 


Essa circunstância pode ensejar o cabimento de uma pensão mensal vitalícia às comunidades indígenas que tradicionalmente ocupam a área, de forma que as instalações e contratações de recursos humanos fiquem à cargo das próprias comunidades ou de suas organizações indígenas.


 


A forma jurídica de resguardar essas obrigações seria um Convênio firmado entre as comunidades indígenas, que são as titulares da posse da terra e do usufruto exclusivo das riquezas nelas existentes e a União, responsável pela obra.


 


No caso, tomando como exemplo as desapropriações para construção de estradas, o provável seria que o DNIT (ex-DNER) firmasse as obrigações em nome da União, com a participação da Funai e do IBAMA.


 


As reivindicações das Comunidades e Organizações Indígenas deverão estar integralmente previstas no Convênio que venha a ser firmado com a União.


 


A dúvida sobre possibilidade de “corte” em relação às reivindicações, só tem sentido na fase de negociação. Após assinado o Convênio, não há como não ser cumprido.


 


O pagamento parcelado ou integral de verbas pecuniárias, também devem estar dispostas no Convênio.


 


Se no Convênio for prevista a possibilidade de revisão das condições pactuadas, após o transcurso de determinado prazo, por exemplo de 5 ou 10 anos, nesta circunstãncia, será possível a renovação das contrapartidas do poder público.


 


4. Conclusão


 


Do exposto, concluo que o asfaltamento da BR 156, no trecho que incide na Terra indígena Uaçá somente pode ser efetivado, caso seja considerado em Lei Complementar, como ato de relevante interesse público da União, conforme previsto no § 6º do art. 231 da CF.


 


Admitido na referida Lei Complementar a obra como de relevante interesse da União, o IBAMA deverá realizar um Estudo de Impacto Ambiental e elaborar um Relatório de Impacto Ambiental, precedido de Audiência Pública, para em seguida conceder ou não o Licenciamento Ambiental.


 


Concedido o Licenciamento Ambiental, as condições da obra, considerando as medidas compensatórias às comunidades indígenas, deverão estar previstas em lei ordinária e em Convênio firmado com a União.


 


S.M.J.


 


Brasília, 27 de maio de 2005


 


Paulo Machado Guimarães


Advogado inscrito na OAB-DF n° 5.358


Assessor Jurídico do Cimi


 

Fonte: Cimi - Assessoria Jurídica
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