16/06/2005

No Rio Grande do Norte, três grupos reivindicam publicamente sua identidade indígena

Grupos participam de Audiência Pública em Natal após mais de um século de silêncio oficial sobre a existência de povos indígenas no Rio Grande do Norte


 


Uma Audiência Pública sobre a presença dos povos indígenas no Rio Grande do Norte ocorreu ontem (dia 15) na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Norte, em Natal. Lideranças de três povos indígenas entregaram abaixo-assinados contendo reivindicações de inclusão nas políticas públicas oficiais de proteção e assistência aos seus povos. Os povos são conhecidos como comunidade do Catu (que vive nos municípios de Goianinha e Canguaretama), os Mendonça do Amarelão (do município de João Câmara) e os Caboclos do Assu (do município de Assu).


 


Os povos foram apoiados por lideranças Potiguara da Paraíba, em nome da Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme).


 


Os abaixo-assinados foram apresentados ao deputado estadual Fernando Mineiro (PT), que presidiu a Audiência, e a representantes da Fundação Nacional do Índio (Funai), do Ministério Público Federal (MPF) , da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), do Governo do Estado e da Comissão de Direitos Humanos e a Comissão de Assuntos Indígenas da Associação Brasileira de Antropologia CAI/ABA, representada pelo prof. Carlos Guilherme do Valle (Dep. de Antropologia da UFRN).


 


Após mais de um século de silêncio oficial sobre a existência de povos indígenas no Rio Grande do Norte, três grupos étnicos reivindicam publicamente (ao Estado e à sociedade) o seu reconhecimento enquanto tais. Apesar de reconhecidos em nível local pelos seus vizinhos não-índios como grupos sociais nitidamente diferenciados, estes povos ainda não haviam projetado politicamente a sua existência frente à sociedade mais ampla.


 


A identificação em circuitos mais restritos de interação de sua especificidade étnica – muitas vezes na forma de preconceito – chamou a atenção de alguns estudiosos clássicos do RN, entre eles Câmara Cascudo e Nestor Lima, que citam a existência dessas comunidades de descendentes de índios, já algumas décadas atrás. Tais referências despertaram o interesse de vários pesquisadores acadêmicos e autodidatas, cujas investigações terminaram por motivar estudos mais aprofundados por parte do Departamento de Antropologia da UFRN. Trabalhos etnográficos, envolvendo histórias de vida e a reconstrução da memória social, por sua vez, estimularam membros dessas comunidades a procurarem “suas raízes” – como os próprios índios dizem – num movimento de positivação dos referenciais que informavam suas fronteiras sociais.


 


Através dessa mobilização, começaram a travar contato com o GT Indígena da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e com os Potiguara da Baía da Traição, PB, em busca de apoio a suas reivindicações.


 


Nos últimos cinco anos, falou-se muito, nos meios intelectuais e indigenistas do Nordeste, a respeito da existência dessas comunidades e de suas ainda tímidas reivindicações. A imprensa potiguar deu destaque várias vezes a essas falas, criando as condições favoráveis na opinião pública ao reconhecimento mais amplo da etnicidade desses povos.


 


Em 2005, foi criado o PARAUPABA – Grupo de Estudos da Questão Indígena do RN, reunindo pesquisadores e militantes indigenistas. Este Grupo possibilitou a articulação dos indígenas do RN com vários atores sociais (deputados e até o próprio presidente da Funai) cujo apoio garantiu a ampliação do espectro de reconhecimento dessas comunidades. Foi organizada, então, esta Audiência Pública e viabilizada a participação, na semana passada, de representantes indígenas do RN na VI Assembléia Geral da Apoinme, realizada na Baía da Traição, na Paraíba.


 


Valendo-se da Convenção 169 da OIT, que preconiza a autoidentificação étnica como único critério válido para o reconhecimento de direitos aos povos indígenas, os índios do RN colocaram-se, na Audiência Pública como sujeitos políticos coletivos, requerendo a sua imediata incorporação nos direitos legais que lhes competem pela Constituição Federal. Para isso, baseiam-se na reinterpretação do seu passado de grupos discriminados e se colocam como portadores de projetos de futuro coletivos, cujas principais metas são a recuperação de seus territórios étnicos e a viabilização de suas condições de repodução social e cultural através da atenção à saúde diferenciada, da educação escolar indígena e de projetos sustentáveis de produção econômica.


 


Um rápido perfil das comunidades indígenas reconhecidas no RN:


 


Comunidade do Catu


 


Ocupando o vale do rio Catu, entre os municípios de Canguaretama e Goianinha, é formada por dois grandes grupos familiares, os Eleotério e os Serafim. Sua população é de cerca de 800 pessoas. Vivem espremidos pelas plantações de cana da Usina Estivas e queixam-se da degradação ambiental e da impossibilidade de desenvolverem suas atividades econômicas tradicionais.


 


Apresentam um histórico de discriminação por parte dos moradores das cidades vizinhas que, em um passado recente, costumavam chamá-los do “catuzeiros”, tratando-os como um povo atrasado e arredio. Guardam na memória que suas terras teriam sido doados por um padre para três irmãos provenientes da Paraíba, que casaram-se com índias tapuias pegas no mato há mais de cem anos, e que todas as unidades familiares hoje existentes são descendentes dessas uniões. Afirmam que, quando buscaram legitimar suas posses no cartório da cidade, foram informados de que suas terras não possuíam documentos por serem sabidamente terras de índios. Provavelmente, suas terras remontam à antiga légua em quadra da aldeia de Vila Flor, distante poucos quilômetros do Catu. Desde 2002 realizam visitas freqüentes aos Potiguara da Baía da Traição em busca de apoio às suas mobilizações.


 


Os Mendonça do Amarelão


 


O grupo é formado por mais de duas mil pessoas que se identificam como uma grande família, cuja referência identitária (Mendonça), os remete a uma origem indígena ligada aos primeiros que ali chegaram no início do século XIX, migrantes do Brejo da Paraíba (Bananeiras) e de aldeamentos indígenas do Rio Grande do Norte (São Gonçalo, etc), conforme nos informan algumas referências bibliográficas e a história oral do grupo.


 


O grupo apresenta uma origem e memória histórica comuns: a terra é vista como um bem coletivo, tendo à frente a luta do grupo junto ao Movimento dos Sem-Terras. A luta pela terra é uma questão antiga dos Mendonça, visto que há registros bibliográficos sobre esta problemática no início do século XX. O “Amarelão” está situado no Município de João Câmara. Sua extensão territorial de aproximadamente cinco mil hectares apresenta uma terra seca e infértil, segundo atestam os próprios os moradores do lugar.


 


Ali também encontramos um assentamento, de nome Santa Terezinha, conquistado pela persistência e união do0 grupo junto ao Movimento dos Sem-Terra (MST) . É durante o contexto histórico de agravamento das tomadas de terras indígenas (séc.XIX) que acontece a migração de um casal de índios “domesticados”, saídos de São Gonçalo, e outro casal, vindo do Brejo da Paraíba, para se fixarem no Amarelão, segundo informa Nestor Lima: há mais de um século, veio do Brejo paraibano Ignácio Barbosa, casado com Izabel Maria da Conceição, e fixou-se no lugar Amarelão. Mais ou menos na mesma época, chegava de São Gonçalo o indígena Antonio José de Mendonça (índio domesticado) com sua mulher.


 


Nestor Lima afirma ainda que a descendência dos casais se entrelaçou (endogamia), dando origem aos Mendonças do Amarelão (escrito conforme o autor os cita) e que havia cerca de seiscentas pessoas entre homens, mulheres e crianças, cujas atividades principais eram a agricultura e a criação de animais. Eles agrupavam-se em uma aldeia.


 


As referências históricas de Câmara Cascudo ressaltam os deslocamentos e migrações indígenas no estado. Há uma referência específica aos “Mendonça”: “Pelos trilhos, dez quilômetros além, estendia-se o Amarelão onde os Mendonças moravam há mais de um século em regimen tribal, mestiços de Tupis, fugidos dos aldeamentos que se tornaram vilas(…).”


 


Segundo Irmã Terezinha, da ordem “Irmãs do Sagrado Coração de Maria”, moradora do Amarelão há mais de dez anos, os “Mendonça” passaram a trabalhar na construção das estradas como cossacos da firma de João Câmara. E afirma: “Eles contam que naquela época ganhavam muito dinheiro e com o fim da construção das estradas, eles passaram a trabalhar nas fazendas plantando e colhendo algodão e depois nas plantações de agave”. Ela diz também que o povo do Amarelão ficou sem as terras devido à expansão das propriedades de algodão de João Câmara no período de 1917 a 1940.


 


A comunidade do Amarelão apresenta aspectos relevantes em relação à origem, memória e a história oral. Eles falam sobre uma origem comum e se declaram descendentes de indígenas Tapuia. Eles se identificam como “Mendonça”, referência identitária que os remete a seus antecessores indígenas. A população envolvente, por sua vez, os vê como “diferentes”,como “ciganos”, como “´índios”, “caboclos” e outras variantes de cunho discriminatório. No entanto, já atualmente, esta mesma população apresenta uma maior tolerância e respeito aos ”Mendonça”. (fonte: Jussara Galhardo  http://www.seol.com.br/mneme/ed8/044.pdf).


 


Os Caboclos do Assu


 


Comunidade composta por cerca de 150 pessoas que vivem às margens das lagoas fluviais no vale do baixo Assu. Ocupam terrenos como meeiros em fazendas de grandes proprietários a mais de cem anos e envolveram-se no movimento indígena do RN há poucos meses.


 


Estevão Palitot, Grupo de Trabalho Indígena e Comissão de Direitos Humanos – UFPB


 

Fonte: Estevão Palitot, Grupo de Trabalho Indígena e Comissão de Direitos Humanos – UFPB
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