27/04/2005

Emoção e indignação na Aldeia Terra Livre

 


“O que a gente quer é ser livre, ser feliz e viver em nossa terra. Se as crianças Kaiowá-Guarani no Mato Grosso do Sul estão morrendo é por que não tem terra…”.


 


A emoção cortou a voz revoltada de Leia Guarani, na sua fala sobre as terras indígenas. Perguntou às autoridades presentes como é possível que se homologue terras como indígenas e logo venha a justiça questiona-las e o que é pior, essas terras continuem nas mãos de fazendeiras e donos do agronegócio.  E como exemplo citou a situação de sua aldeia, onde o governo homologou os 9.300 hectares de terra, mas na prática eles só estão em poder de poucos hectares. Além disso, continuam ameaçados pelos fazendeiros que prometeram continuar na terra e se for preciso usando armas. A única forma de deixarem a terra é o governo lhes pagarem 43 milhões, que é o valor exigido por eles. Essa situação está gerando um desespero que já levou dois índios desta aldeia ao suicídio.


 


O dia a dia na aldeia Terra Livre


 


Ainda tem gente chegando. Mais dois grupos de Xavante e um de Kayapó vieram se juntar na aldeia em busca de terra, vida e liberdade. Novas casas vão surgindo no verde tapete em frente e ao lado das casas do poder. “Viemos para incomodar…” diz a canção. E não só isso, afirmam os coordenadores da mobilização nacional. Viemos cobrar do governo nossos direitos, as promessas descumpridas, a violência galopante, a falta de justiça e providências. Viemos também para somar com todos os cidadãos deste país que buscam construir esse Brasil solidário, plural e democrático. Viemos contribuir com nossa experiência e sabedoria milenar, com nossa luta e resistência secular, com nossa cultura e jeitos diferentes de organizar a sociedade, na reciprocidade e partilha dos bens, na festa e alegria de viver.


 


Antes do primeiro raio do sol ou do pio da coruja ou do badalar dos sinos da catedral anunciando um novo dia, no pátio da aldeia, embaixo da lona e palha, começam as vozes e múltiplas línguas a soar, quebrando o silêncio embalado pela brisa e pela lua. Começam a se formar as pequenas rodas de prosa e de chimarrão, aquecendo os corpos aguerridos com muito ânimo e disposição. Não tardam em se aparecer outros grupos para o ritual de pinturas corporais e adornos, para a batalha de mais um dia na universidade intensiva da luta e da vida. Ao redor dos símbolos plantados no gramado começam as danças e os cantos pedindo forças e proteção dos deuses e espíritos que animam e dão sentido e persistência em cada novo dia. Não tarda e chega o café da manhã. E logo todos estão preparados para a caminhada até o auditório para mais uma jornada de debates com autoridades. Muitas dúvidas, perguntas e falas emocionadas e contundentes esquentam a plenária. Poucas respostas convincentes e resultados. O que pode parecer frustrante é apenas mais uma lição na árdua caminhada e luta, no conhecimento das armas e armadilhas do poder, no enfrentamento estratégico com as forças dominantes, com os preconceitos e opressão secular.


 


À tarde seguem-se os debates sobre os diversos temas e desafios da vida dos povos indígenas no Brasil.


 


E assim vai passando mais um dia na aldeia da esplanada, ainda sem terra e liberdade garantida. Mas não deixa de haver a animação de um futebol, de uma noitada cultural. Afinal de contas esses povos ensinam, que apesar de toda a dor, a vida se faz com alegria.


 


Visitas e companhias


 


Além dos mais de 700 representantes indígenas, a aldeia recebe inúmeras visitas de pessoas solidárias, curiosos ou simples viventes que vem passar uns momentos nesse cenário tão diferente e contrastante.


 


Chama a atenção um barraco diferente, verde-oliva escuro, de lona e estrutura de metal, com uma cruz branca na lateral. É o Exército que colocou à disposição do acampamento seu serviço de saúde. Na verdade é uma estrutura montada dentro da movimentação de protesto das mulheres dos militares, reivindicando melhores salários para seus maridos. Coincidência um tanto inusitada de protestos e cobranças! O que poderia soar como um cerco, controle ou até repressão, acaba se transformando num curioso cenário para a imprensa, ao lado dos ministérios das Minas e Energia, do Turismo, da Defesa e o Itamarati do outro lado. Aliás, foi ali, a poucos passos da aldeia que Lula foi jantar com a poderosa senhora dos Estados Unidos, que decide sobre a paz e a guerra do império, neste mundo globalizado. Certamente devem ter olhado para os casebres, complacentes! Coitados!


 


Já tarde da noite uma visita inesperada. O Senador Suplicy veio trazer sua solidariedade. Ficou com o grupo até meia noite, conversando sobre a realidade atual e tentando explicar projeto de sua autoria, o “Renda Mínima e Cidadania”, já aprovado, mas que certamente terá muitas dificuldades para se tornar realidade.


 


Termina mais um dia, enquanto se anuncia mais uma jornada de debates, embates e lutas. 


 


Acampamento Indígena Terra Livre, Brasília, 27 de abril de 2005.


 


Egon Heck


Cimi Regional Mato Grosso do Sul


 

Fonte: Cimi Regional Mato Grosso do Sul
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