Blues da piedade em versão Guarani-Kaiowá
Se cantassem o blues da piedade, os guaranis deixariam de fora os que cometem apenas pecadilhos. Como dizer que cocar de índio rende anos de má sorte para político que o usa. De fora, ficariam também os editores que consideram índio assunto chato e, às vezes, revestem o extermínio de uma suave camada de silêncio. Nem os bandeirantes que mataram mais de meio milhão de guaranis devem compor esse blues. Piedade se pede, Senhor, para essa gente do governo que viu o índice de mortos subir de 99 para 143 por mil recém-nascidos e resolveu sentar em cima da notícia, sem perceber que sentavam em cima de uma baioneta que iria, fatalmente, furar suas bundas. Piedade Senhor para a Funasa, que ameaçou funcionários de demissão, que fabricou os indefectíveis abaixo-assinados de apoio ao chefe. E, se sobrar piedade, não esqueçamos do prefeito de Dourados, que tinha medo da repercussão da notícia entre os investidores de fora; do Ministro da Saúde, que considerou um aumento de mais de 30% uma normalidade estatística. Mas a bondade divina deve se concentrar naqueles que disseram que a culpa era dos índios, que sua cultura obriga alimentar as crianças por último, como se fossem sequer uma espécie preocupada com sua continuidade. Uma prece anônima por aqui pede piedade também para os que fazem seminários quando surgem as mortes; para os que criam comissões para constatar “in loco”, para os que dizem que estão providenciado, para esses fanáticos pelo gerúndio. Reuniões, cafezinhos, palavras mágicas como estruturante, seres animados como propostas que dialogam, conferências, reuniões e os guaranis continuam morrendo. Uma grande dose de piedade, é claro, para quem cercou 11 mil pessoas em um espaço de 3,5 mil hectares, ignorando os laços da cultura com a terra, um lugar onde a pessoa pode viver como ela mesma. É preciso piedade não só para os que cercaram, mas para os que mandam mensagens sinistras, pelo sangue e pela boca. Piedade para os plantadores de soja que borrifam suas lavouras com veneno e deixam que o vento traga para a aldeia um ar pestilento, um peido tóxico. Piedade para os que trouxeram o vírus da Aids e para os que jamais conseguiram colocar de pé um projeto para preservar e cuidar dos que se contaminaram. E piedade para os vendedores de cachaça, que vendem um quase álcool, esmagando a aguardente tradicional, a chicha, feita da fermentação de batata, milho e mandioca. Piedade para os brancos da Funai, que designaram um capitão, ignorando as 44 lideranças familiares, para os capitães que ajudaram a acabar com os rezadores, queimando suas tendas. Sobretudo, piedade para os brancos que constroem capelas, hospitais e os obrigam a considerar as doenças apenas do ponto de vista médico. E se sobrar piedade, Senhor, que a dirija mais ao sul, para a Justiça branca em Antônio João, na fronteira com o Paraguai. Os ancestrais guaranis têm 40 mil hectares, mas só podem usufruir delesse o presidente assinar a homologação de suas terras. Os juizes querem expulsá-los dos últimos 26 hectares, onde resistem à espera de uma simples assinatura, de quem muito prometeu e desapontou os índios. Piedade para os pecados mais sutis, como o do homem comum que vê o maior grupo indígena do Brasil como um bando de vagabundos. Ele não sabe, Senhor, que eles trabalham nas usinas de cana, são explorados no acerto de contas com o armazém do dono. Ignora que os aposentados têm seus cartões retidos pelas mercearias e que só vêem parte de sua renda. Crianças com paralisia cerebral, sem tratamento adequado. Lábios leporinos esperando correção. Meninos sem pálpebras, tuberculose, ainda que decaída. Trezentos subnutridos na aldeia, Senhor, e apenas um nutricionista correndo como louco. Equipes de saúde incompletas, cestas básicas seletivas. E é preciso piedade, Senhor, porque toda essa gente quer água e seus rios secaram sob o bombardeio de lavouras predatórias. Piedade para os brancos que não conseguiram R$ 2 milhões para resolver o problema. Dois milhões tomamos nós, os deputados, em café e água mineral, enquanto discutimos os destinos do país. Quem pede piedade são os suicidas guaranis, cansados do longo combate, enforcados nos galhos das árvores que sobrevivem. São os desesperados que se alçam ao céu pedindo pelos que ficaram, pois a terra que era o lugar de ser como se é, tornou-se a terra do mal, a moagem de sua cultura, o extermínio de sua gente. É preciso muita piedade, Senhor, pois em seu nome falam 25 religiões por aqui, numa gincana pelas almas nativas. E como nada acontece, talvez seja melhor, Senhor, com o que pouco restou de tanta prece, ter um pouco de autopiedade.