23/03/2005

D Romero: Pastor, Testemunho, Mártir


Paulo Suess


 


Lutaste por uma terra para viver,


sonhaste vinho para todos e pão


consagrado como tua vida,


repartida, multiplicada,


fruto de suor e graça


na divina energia


tudo o que vale é dado,


gratuidade, eucaristia.


 


“Que este corpo imolado e este sangue sacrificado pelos homens nos alimentem, para que, como Cristo, também saibamos dar nosso corpo e nosso sangue no sofrimento e na dor, não por nós mesmos, mas para trazer justiça e paz para o nosso povo”. Poucos segundos depois de ter pronunciado essas palavras, na capela do Hospital da Divina Providencia de San Salvador, em sua homilia, no dia 24 de março de 1980, soou o disparo mortal. Ao preparar pão e vinho para a celebração eucarística, Dom Romero caiu sobre o altar e expirou sua vida no chão. Anoitecer em El Salvador. Eram 18 horas e 25 minutos.



No enterro, presença solidária dos pobres e de bispos amigos do mundo inteiro, menos de El Salvador. Dos seis bispos de um país onde todos são vizinhos por causa do seu tamanho de um município (21.042 km ²), na época com uma população de seis milhões, só Msgr. Rivera y Damas estava presente. E os outros que o tinham denunciado em Roma exigindo a sua transferência, onde estavam?



Como em muitos outros países do mundo inteiro não se tratava de uma desunião orgânica de uma Igreja local ou Conferência Episcopal, mas de uma discórdia introduzida pela política de nomeações episcopais. O alvo dessas nomeações eram, sobretudo na América Latina e no Caribe, posições do Vaticano II e sua posterior interpretação em Medellín (1968) e Puebla (1979) através de uma pastoral libertadora com seu suporte teológico nas diferentes ramificações da Teologia da Libertação. A opção pelos pobres, pelo povo do campo sem terra, pelos migrantes para as grandes cidades onde se tornaram sem teto, pelos povos indígenas despojados de suas terras e pelos afro-americanos delineava o novo rosto de uma Igreja Povo de Deus, como o Concílio preconizava (Lumen gentium, 9-17). Um setor significativo da Igreja latino-americana começou a acreditar no Deus dos pobres e em Deus nos pobres. Essa fé tocava numa ferida histórica.



Os primeiros opositores à opção pelos pobres e ao espírito de Medellín, eram os representantes do poder hegemônico nas Américas. Já o Relatório Rockefeller, de 1968/69, apontava para o perigo de por as idéias de Medellín na prática. O Documento de Santa Fé, elaborado em maio de 1980 por assessores de Ronald Reagan, referia-se explicitamente à Teologia da Libertação: “Lamentavelmente, as forças marxistas-leninistas utilizaram a Igreja como uma arma política contra a propriedade privada e o sistema capitalista de produção, infiltrando a comunidade religiosa com idéias que são menos cristãs que comunistas”. Mesmo depois da queda do comunismo, o Império sempre encontrará seus inimigos porque a sua fome de poder e sua ânsia de consumo sofisticado são insaciáveis.



Em El Salvador não se tratava de uma conspiração dos mártires contra o Estado, mas dos seus algozes contra o povo. A chamada guerra civil da década de 80, que devastou a terra de Cuscatlán, assim antigamente chamada pelos índios pipil, deixando mais de 70 mil mortos, foi uma guerra das elites e dos militares que se apropriaram do Estado contra o povo pobre. Segundo indicadores da ONU, de 2002, ainda 60% da população não tem acesso a serviços básicos de saúde e quase a metade vive abaixo da linha de pobreza.



Em suas homilias dominicais transmitidas pela Rádio, Romero defendeu os pobres, denunciava os assassinatos, desmascarava os mentirosos, rompeu com as forças militares que tramavam a sua morte como articulavam, nove anos mais tarde, a morte dos seis jesuítas e das duas mulheres a serviço da Universidade Católica Salvadorenha. Romero foi nomeado Bispo da Arquidiocese de San Salvador em 3 de fevereiro de 1977. Pelo parlamento inglês, foi indicado como candidato ao Prêmio Nobel da Paz de 1979. “Perdeu” o prêmio de Estocolmo contra Teresa de Calcutá como perdeu a canonização de Roma contra Escrivá de Balaguer, o fundador do Opus Dei. Depois de três anos de vida pública, em São Salvador, Oscar Romero foi sacrificado, como o divino mestre.



Hoje, o espanhol Fernando Sáenz Lacalle, amigo do Opus Dei e general-de-brigada do exército salvadorenho, é hoje arcebispo de San Salvador. Mandou exumar o corpo de Romero de sua tumba e o procurou esconder na cripta da catedral sem acesso público. Mas, os guardas do sepulcro não impediram a ressurreição de Romero, porque ele vive no coração do povo.


 


 

Fonte: Cimi
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