22/03/2005

A grande celebração Guarani: Aty Guasu

Nhanderu Marangatu se agita, em sua pobreza e simplicidade, mostrando a nobreza e alegria de um povo que não se deixa abater, mesmo quando sobre ele pesam dias difíceis de cinco séculos de morte e opressão.


 


A noite se veste extraordinariamente bela, com a lua companheira iluminando os caminhos e o terreiro, e as estrelas se postando luminosas, aos milhares, para os atentos olhares, no azul impecável do céu. É Tupã zelando pelo seu povo.


 


Serenidade e calma, acima de tudo


 


Tarde do dia da chegada. Bastante apreensivos, sem nenhuma informação sobre o andamento dos preparativos, chegamos na aldeia. Algumas crianças e poucos adultos encontravam-se no local. Ar de normalidade suspeita. Nada de novo além dos casebres e do local de encontro com uma cobertura mista de sapé e lona preta. Estava prevista a chegada de mais de 400 pessoas hoje. Loretito, o cacique, nos recebeu, com feição de preocupação. Logo começaram a discutir a situação com Silvio Paulo, um dos coordenadores da Comissão de Direitos Kaiowá Guarani, empenhado na articulação da Aty Guasu. Toda a conversa é em Guarani. De quando em vez, quando algum silêncio se projetava no ambiente, fazíamos alguma pergunta para atualizar nossa curiosidade. Problema número um: não havia água. Informou Loretito que já há alguns dias não estava chegando água na aldeia. A mangueira estava com furos e havia problemas com água na aldeia de Campestre, onde estava a caixa d’água. Também não havia tijolos para colocar as panelas, nem lenha, nem a comida para colocar nas panelas. Havíamos passado num mercado em Antonio João, para conferir a lista de alimentos que havia sido liberada.


 


Estávamos esperando a professora Léia, uma das lideranças com a qual estavam sendo mantidos os contatos. Já tínhamos nos encontrado na escola Marçal de Souza, na aldeia de Campestre. Ela estava seguindo até a aldeia de Nhanderu Marangatu. Quando ela chegou parece que as discussões se aceleraram. O quadro parecia preocupar, mas não ao ponto de tirar a calma. Parecia que uma confiança, para nós incompreensível, os movia. Silvio Paulo apenas observava. “Se não chover, tudo bem”. A gente ficava imaginando onde todo aquele povo iria ficar, dormir, ou passar a noite. Da estrutura de barracos de lona que se havia previsto, apenas alguns esteios de um barraco estavam levantados. Depois Léia nos explicou que houve muita dificuldade de comunicação. Só há poucos dias ficaram sabendo que a Aty Guasu, prevista para ali, se realizaria neste final de semana.


 


Tudo se encaminha, quando com Tupã se caminha


 


Era preciso agir. Afinal de contas sem água e outras providências a questão poderia ficar muito difícil para a multidão de gente que em breve ali estaria. Pegamos o carro e levamos Léia e Silvio Paulo a Antonio João, para conversas na Funasa e onde preciso fosse para encaminhar algumas questões necessárias. A cidade estava em vésperas de seus 41 anos de emancipação do município. Todo mundo parecia envolvido com esse fato. Além disso, havia um encontro da Funasa, possivelmente em resposta às recentes mortes de crianças Guarani-Kaiowá.


 


Com a noite, chegam as delegações e a celebração


 


Estávamos um tanto impacientes, pois ninguém estava chegando, e já estava anoitecendo. Pelos horários previstos para a saída, alguns ônibus deveriam estar chegando logo no início da tarde. Quando ao longe surgiram as luzes de carro, foi uma grande algazarra, com a criançada correndo e os Nhanderu indo ao encontro para a recepção ritual. Eram quase dez da noite. O último ônibus chegou pela meia noite. Depois Nito nos explicou que a chegada nesse horário era a estratégia para não chamar muita atenção dos fazendeiros da região.


 


Não tem tempo ruim


 


Aos poucos a gente foi sabendo como foram as viagens até o Cerro Marangatu. “Eles vieram cantando desde que subiram no ônibus até aqui. Pra eles não tem tempo ruim”, disse o motorista Pedro, que trouxe o pessoal da região de Dourados. Vieram umas 100 pessoas num ônibus e duas vãs. Eles saíram pelas 5 horas da tarde e chegaram quase meia noite na aldeia onde está se realizando a Grande Assembléia. Todos foram acomodando suas bagagens mínimas em algum lugar aí mesmo no relento e passaram a noite na dança ou se acomodando aí mesmo sob a cobertura do céu estrelado. Além do ritmo cadenciado dos maracás e takuaras, num canto e outro ouvia-se gostosas gargalhadas, demonstrando alegria pelo encontro e muita descontração. Durante o dia pareciam não se importar em ficar expostos ao sol quente, pois abrigo mesmo só para alguns e sombra de árvore também era muito rara. Pareciam que todos estavam muito conscientes de que vieram para a alegria do encontro, mas também para a dureza da guerra. Portanto, como dizia nosso motorista de ônibus “para eles não tem tempo ruim”.


 


Celebração ritual no início dos trabalhos


 


O dia amanheceu lindo, ameno, como por encomenda. Fomos buscar o pão em Antônio João, que estava em festa pelo seu aniversário. Na aldeia o pão com café e pressa para começar a reunião. Não tardou e o som dos maracás, takuaras, harmonizados na cadência das vozes, começou a se espalhar por todo o ambiente. Tudo está dentro de um grande ritual. As danças, os cantos, as falas… uma celebração contínua da vida e da luta.


 


As apresentações, programação e falas dos caciques


 


Tudo em Guarani. As apresentações, os depoimentos, os debates. Atentos, só uma que outra interrupção como por ocasião da chegada da delegação de Pirakuá, depois outras. A coordenação dos trabalhos está por conta dos seis membros da Comissão de Direitos Kaiowá-Guarani. São eles que primeiro falam e se apresentam. E como tudo vai sendo construído conjuntamente, os coordenadores são distinguidos com grande crachá.


 


Há representantes de quase todas as terras indígenas da região. São mais de 30 capitães e caciques que vão fazendo seus depoimentos. Além deles também expuseram suas preocupações e lutas, os professores indígenas, agentes de saúde, representantes do movimento de mulheres… Foi uma seqüência muito bonita de falas muito duras, de vidas sofridas, mas esperançosas.


 


Na programação do dia a discussão girou em torna da questão das terras e dos projetos de lei antiindígenas, como o PLS 188 do senador Delcídio e outros.


 


Na cozinha um grupo de mulheres, com muita habilidade e carinho prepararam a comida que, apesar das limitações, era muito simples, mas muito gostosa.


 


No decorrer do dia ainda foram chegando alguns representantes e delegações.


 


Também foram construídos mais dois espaços cobertos com lona preta, que ampliaram bem a sombra e os lugares para se abrigar. Tudo vai surpreendentemente se ajeitando, como se a calma, que parecia preocupante, fosse ditando o ritmo dos acontecimentos e da vida.


 


A vida que vem da roça


 


Fomos visitar os roçados feitos pelo grupo do Cerro Marangatu com a ajuda solidária de outros parentes. Ali estão bonitas plantações de mandioca, arroz, milho, batata doce, feijão, abóbora, cana, mamão… E espalhados na área retomada algumas dezenas de casebres. Gabriel vai nos explicando o processo de plantio, os cuidados posteriores, a chuva que faltou e prejudicou uma parte do arroz… Também contou da dificuldade de controlarem o colonião (capim) que acabou tomando conta de vários pedaços de terra. Também foi mostrando um bom pedaço aonde a capoeira vai crescendo, mostrando a boa capacidade de recuperação ambiental na região.


 


As refeições durante a Aty Guasu estão acompanhadas da mandioca colhida nessas roças, assim como a chicha está sendo feita com o milho ali plantado. É a vida que vem da roça e alimenta a esperança e a luta para não serem expulsos das suas terras tradicionais, agora parcialmente reconquistadas.


 


Homenagem aos guerreiros que tombaram


 


No dia 18 após um importante trabalho de grupos, houve um momento de memória muito emocionante. Foi lembrada a bonita história construída a partir do início das Aty Guassu, em 1984. Algumas das pessoas que ali estavam haviam participado daquela primeira Grande Reunião, lembrando o quanto ela tem sido importante na luta do povo Guarani dali por diante, especialmente na retomada e garantia de suas terras.


 


Durante as falas relembrando nomes e momentos importantes, a emoção tomou conta dos caciques e demais presentes, rolando lágrimas de dor e esperança naqueles olhares carregados de futuro. Foram lembrados os vários líderes que tombaram na luta pela terra, como a três anos Marcos Veron, e nesta terra do Nhanderu, Marçal de Souza e Dom Quitito.


 


Memória de Dom Quitito


 


No final do dia um grupo dos participantes foi visitar o local em que foi sepultado Dom Quitito, o líder da retomada de Nhanderu Marangatu, que com muita disposição foi para a Marcha e Conferência indígena 2000, em Coroa Vermelha, e lá veio a falecer no dia 19 de abril. Seu corpo foi transladado para esta aldeia onde está se realizando a Aty Guassu. Ele não conseguiu ver sua terra demarcada, mas antes de morrer pediu que sua gente continuasse a luta. E é isso que está acontecendo.


 


Dona Quitéria, a viúva de D. Quitito, está aí em seu casebre, apesar de todos os sofrimentos, inclusive com a perda de filhos, tendo um deles se suicidado um mês após a morte do pai, mostrando muita força e esperança.


 


Dom Quitito, certamente é um dos muitos que devem estar dando forças aos Kaiwá Guarani desta aldeia, e as demais que estão na luta pela retomada e garantia de seus tekoha, suas terras tradicionais.


 


Alvoroço e segurança


 


Logo após o meio dia um emissário chegou ao local da Aty Guasu avisando que a Polícia Federal estava se deslocando para o local. Foi uma agitação grande. Surgiram arcos e flechas, rústicos e improvisados tacapes, enfim seus instrumentos de segurança. Não demorou e três carros da Polícia Federal passaram na estrada em frente, fazendo apenas aceno para os índios e seguindo em direção à fazenda de Pio Silva e filhos. Possivelmente este solicitara a presença da polícia por temor dos índios ou para intimida-los. Depois de algumas horas os carros da Polícia Federal retornaram, e a temperatura no local voltou ao normal. Porém o número dos seguranças indígenas no portão continuou bem maior do que antes. Afinal de contas para um povo tão agredido por pistoleiros e despejado já algumas vezes pela polícia, não é de estranhar esse temor de novas agressões.


 


Cerro Marangatu, março de 2005.


 


Egon Heck


Fonte: Cimi Regional Mato Grosso do Sul
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