04/03/2005

Viagem a Nhande Ru Marangatu: o dia seguinte ao despejo que não houve

A viagem


 


O caminho de 230 km que separa Dourados de Antonio João é de estradas retas, muita soja e um tanto de gado. As plantações se espalham até o horizonte distante, em um cenário com raras interrupções e sem matas. Em alguns momentos, margeamos a fronteira com o Paraguai.


 


Pegamos a estrada acompanhados do capitão (cacique) Silvio Paulo, o que nos rendeu horas de boa conversa no caminho de ida. Pouco depois da saída de Dourados, cruzamos uma aldeia indígena. Silvio conta que a terra ali foi mais uma retomada. Os indígenas foram literalmente expulsos pelos fazendeiros e foram viver nas cidades, trabalhar nas fazendas ou morar na beira das estradas. O capitão chama isso de “esparramo”. Os fazendeiros derrubaram as matas, venderam a madeira e implantaram gado ou plantações.


 


Quando os indígenas voltaram para a terra, já nos anos 80, não havia mais as matas de onde tiravam caça da qual se alimentavam: tatu, queixada ou pássaros grandes. E mel, conta Silvio. “Você entrava na mata e ela não acabava mais”, diz o capitão, que há 11 anos é chefe de posto da Funai, em Caarapó, e que acompanha o processo de organização das lideranças indígenas desde os 18 anos. Hoje, ele tem 45.


 


Fome? Água potável


 


Impossível a conversa não passar pelo tema que coloca os indígenas no centro das atenções nacionais: a desnutrição. O capitão conta que uma das crianças mortas era de sua aldeia. Ele diz que lá o problema da falta de comida não é o mais grave, que houve casos de desnutrição que foram superados. Mas as crianças têm tido muita dor de barriga, nem sempre há tratamento e elas acabam emagrecendo.


 


Pergunto como é a água que os indígenas bebem: Silvio Paulo conta que apenas uma parte das casas recebe água encanada. A maioria das pessoas usa água do rio. O mesmo rio que recebe agrotóxicos das plantações que estão por perto de todas as aldeias. O mesmo rio que, como conta Silvio Paulo, deixou de ter peixes nos anos 80, quando o uso da região para cultivo agrário se intensificou na região.


 


A Fundação afirma que todas as aldeias do Mato Grosso do Sul possuem rede de abastecimento de água, mas nem todas as casas são ligadas à rede que leva água até as moradias. A quantidade de casas com rede domiciliar varia de aldeia para aldeia. 


 


Bandeiras vermelhas


 


Devemos ter cruzado uns seis acampamentos do Movimento Sem Terra (MST). Casas de lona preta e amarela debaixo do sol escaldante. Passamos também por um assentamento e ouvimos no rádio, em Ponta Porã, que vai haver um novo assentamento de 1.850 famílias na região. Uma vereadora bradava por novas escolas e atendimento à saúde da população que chegaria em breve à cidade.


 


Faixa de Fronteira


 


No meio do caminho, vemos pelotões do Exército e nos damos conta de que estamos na região de fronteira. Setores militares que são contrários à demarcação de terras indígenas em faixas de fronteira costumam argumentar que as terras indígenas são perigosas para a segurança nacional por causa da baixa densidade populacional. Pois bem, aqui no Mato Grosso do Sul a região de fronteira é formada por inúmeras fazendas de gado. Sempre ouvimos o discurso de “muita terra para pouco índio”. Estranho, nunca ouvi ninguém dizer “muita terra para pouco fazendeiro”, nem que as fazendas são ameaças à segurança nacional.


 


Nhande Ru Marangatu


 


Depois de duas horas e tanto de viagem, com um trecho final de estrada de terra e muitas pedras, chegamos à entrada da “Fazenda Fronteira”, local onde quase aconteceu a ação de despejo. A ação estava programada para hoje (dia 3) até que uma desembargadora federal aceitou o recurso do Ministério Público de Dourados, evitando o despejo que poderia terminar com violência. Outros despejos, realizados em cidades próximas, como Iguatemi e Japorã, em janeiro de 2004, terminaram assim. A decisão judicial estendeu o prazo para o despejo até 31 de março de 2005, “prazo razoável a que o Poder Executivo equacione soluções, visando acomodar os interesses de todas as partes, adotando política social”. Para os índios, a ação mais efetiva do Poder Executivo seria a homologação da terra, já demarcada em 9.300 hectares, dos quais os indígenas não ocupam nem 500. E, com exceção de oito hectares da aldeia mais antiga, chamada Campestre, toda a terra foi recuperada através de retomadas.


 


Guarani


 


Passamos por plantações de milho e mandioca e chegamos no centro da aldeia, onde um grupo com muitas crianças estava reunido. Somos muito bem recebidos, e sentamos em um espaço coberto onde estavam algumas lideranças, muitas mulheres e crianças. Parece que os homens estavam fora, colhendo feijão.


 


Silvio Paulo e o capitão conversam em Guarani. A língua tem um som nasal, muito diferente do português. Tudo o que se pode entender são palavras do português que aparecem na conversa: 40, 140, polícia, soldado, fazendeiro e homologação.


 


O capitão de Nhande Ru Maragatu está feliz e sorri quando fala da tranqüilidade do dia de hoje, em contraste com a tensão do dia anterior. Somos convidados a andar pelas plantações de milho, mandioca, feijão e mamão, cultivadas pelos índios desde a última retomada, em outubro de 2004.


 


Como as crianças aprendem


 


A caminhada passa por três núcleos com casas, cobertas de sapé. No terceiro, ao lado da plantação de arroz, há um grupo reunido. Uma menina de nove anos, sentada no chão, pila o arroz. A mãe e as tias estão em volta, dizendo a ela como deve bater o pilão. Um menino ainda menor está sentado ao lado e olha atentamente.


 


Na educação tradicional indígena, as crianças participam de todas as atividades e assim vão aprendendo como se fazem as coisas. Tudo bem se demorar mais, faz parte do processo.


 


Saindo da casa, as lideranças nos mostram, orgulhosas, as duas variedades de milho que colheram este ano.


 


Andamos mais um pouco pelas plantações. As lideranças riem de mim por causa da branchiara que espeta. Branchiara é o capim plantado nos pastos do gado, e que toma conta do solo de forma que é difícil se livrar dele depois. Dessa vez eu estou cumprindo o típico papel de jornalista desajeitada. Câmera, bloquinho e a roupa errada!


 


Aliás, como jornalista que quer sempre um número para publicar, pergunto pela segunda vez a um dos jovens que nos acompanha: Quantas pessoas moram aqui? 97. Fico pensando: impossível serem só 97. Pergunto se são 97 famílias, e ele concorda. Continuo esquecendo que a tal forma diferente de pensar o mundo aparece nas pequenas coisas: quem disse que todos os grupos precisam medir a sua população por indivíduos, se eles se organizam em famílias?


 


Um senhor simpático, uma rezadeira e a história daquele povo


 


Seu Salvador estava sentado na frente de sua casa, acompanhado da esposa e de outras mulheres e crianças. Aqui, a casa não é lugar de ficar dentro durante o dia: são espaços pequenos e o calor é grande. A “sala” fica mesmo do lado de fora, com bancos sob as árvores. Contando que está com dor nas costas, Seu Salvador chega até a cerca para nos cumprimentar e puxa conversa. Pergunto quanto tempo faz que ele vive ali. Desde 1999, quando os primeiros 28 hectares foram retomados. Mas pouco se plantava até então, já que os hectares iniciais iam para o lado do morro, onde o chão é pedregoso. Toda a região de plantações por onde andamos fazem parte dos 400 hectares retomados ano passado, depois da demarcação das terras.


 


“Aqui era mata, empreiteiro da fazenda tirou tudo. Anta, queixada, pati, tatu, mel. Trator passou e colocou no lugar da mata o branquiarão”. Seu Salvador conta que quer viver ali pra sempre. “Nós se criou aqui, minha mãe morreu aqui, meu pai, meu irmão. Morreram de sarampo”. Muitos Guarani-Kaiowá morreram de sarampo e coqueluche, no final da década de 60. Seu Salvador diz que seus pais morreram em 1968.


 


Rezadora


 


Tiramos algumas fotografias e uma das jovens pede para ser fotografada junto com uma senhora que estava sentada em um banco baixo, na entrada da sua casa, que fica em frente à de Seu Salvador. Magrinha, quieta, ela mexia em pedaços de tecido (depois descobrimos que estava fazendo uma rede).


 


Seu Sebastião nos conta que ela é uma das rezadeiras da comunidade, e que ela é “muito, muito velha”. A senhora começa o diálogo conosco mostrando um maracá. Pergunto se é feito de cabaça e ela responde em Guarani. Ela não fala em português, e Seu Sebastião precisa fazer a tradução da “conversa”. Ela entra na casa e traz, para nos mostrar, outros maracás e o chiru, um pedaço de madeira que tem funções rituais. Se entendi bem, disseram que ele é “um santo para os índios”, e que é usado nas preparações para as atividades da comunidade, como as retomadas.


 


Seu Sebastião conta que a filha da rezadeira também morreu de sarampo.


 


A escola como a gente conhece


 


Passamos pela aldeia de Campestre para visitar a Léia, professora e liderança indígena que conheci no Fórum Social Mundial. Ela é coordenadora da escola indígena Marçal de Souza. Marçal de Souza foi uma liderança que participou do início da articulação do movimento indígena nacional e foi assassinado em Campestre, em 1983. Ele ganhou destaque nacional principalmente depois que fez um discurso sobre a situação dos indígenas para o papa, em visita ao Brasil.


 


Léia estava tensa no Fórum, e tinha ido a Porto Alegre com a missão de divulgar os problemas do seu povo. Pergunto como ela está depois da decisão de ontem. Ela abre um sorriso: “Ontem tava um sufoco. O pessoal todo preocupado. Eu ficava correndo daqui pra lá”.


 


A escola indígena de Campestre tem 256 alunos, 9 professores, 2 salas e um barracão com outras duas. Léia conta que as salas estão cheias. A educação é bilíngüe, em Guarani e Português. Os cartazes nas paredes têm palavras nos dois idiomas.


 


Léia conta que a escola tem trabalhando para fortalecer o contato das crianças com a cultura Guarani-Kaiowá. “Os professores de educação artística estão trabalhando com artesanatos, alimentos e animais que tinham aqui e não tem mais”, conta. A escola está começando também um trabalho de contar a história do nome da terra indígena. Nhande Ru significa “o pai” e Marangatu quer dizer “sagrado”. A primeira parte do nome da terra indígena muda a cada geração.


 


Na escola há também aulas para 45 jovens e adultos, maiores de 15 anos, que estudam pela manhã (1ª e 2ª séries) e tarde (3ª e 4ª séries).


 


Crianças voltando da escola. Ou: porque não havia fome para crianças indígenas


 


Na estrada entre a área retomada e a aldeia mais antiga, chamada Campestre, cruzamos com um grupo de umas 10 crianças. Vinham andando sozinhas (sem adultos por perto) e sorridentes pela estrada, vestindo uniforme de camiseta branca com a gola vermelha. Traziam também uns dois sacos de siriguela, bem vermelhinhas. Siriguelas! Claro que, além das fotos, nós pedimos algumas frutas.


 


E aí eu entendi algo que já tinha ouvido falar algumas vezes: as crianças indígenas não comem “na hora”, nem as mães indígenas costumam fazer aviãozinho pra convencer as crianças a comerem: a comida está ali para ser pega, no pé de siriguela ou de banana, ou então está pronta em casa para ser comida na hora da fome. Só que nas aldeias onde a vegetação foi derrubada e onde não há árvores de frutas, as crianças não tem de onde pegar comida. Isso muda todos os hábitos alimentares, bagunça tudo. E até botar a bagunça em ordem…


 


Priscila Carvalho


Especial em Mato Grosso do Sul


 

Fonte: Cimi - Assessoria de Imprensa
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