A morte de crianças Guarani, terra e etnocídio, por Egon Heck
Após o anúncio da quinta morte, por desnutrição, de crianças Guarani-Kaiowá no Centro de Recuperação de Crianças desnutridas na Terra Indígena de Dourados, neste início de ano, uma pergunta que se impõe é a causa desta seqüência de mortes que certamente continuará seu curso. Ou seja, ou se tomará medidas eficazes na raiz do problema ou as conseqüências traduzidas em preciosas vidas ceifadas continuarão. Nesse caso o ônus perante a sociedade e o mundo será de conivência com um processo de caráter etnocida.
Alguém poderia objetar de que o governo tem reagido ao quadro dramático distribuindo centenas de cestas básicas e bolsas família para os indígenas em estado de extrema miséria e fome. Além disso, o próprio presidente Lula quando recentemente esteve na região pediu à Funasa especial atenção e medidas que sustassem essa situação que tanto está maculando a imagem do governo pelo país e pelo mundo. Louváveis são todas as ações que matam a fome e impedem as mortes. Porém não podemos apenas adiar as mortes e empurrar a fome com a barriga até logo adiante. A questão é crucial e a causa principal das mortes em nada foi atacada. Os Guarani e Kaiowá continuam confinados a alguns míseros espaços a que foram reduzidos há quase um século. De lá para cá esses espaços mínimos foram ainda invadidos e reduzidos mais ainda e totalmente devastados. Tanto que hoje é a pior situação do país em termos de terras indígenas. E isso apesar deles terem sido incluídos entre os povos prioritários em termos de regularização das terras já nos últimos dois anos pela Funai.
Das 29 terras deste povo no Mato Grosso do Sul, a quase totalidade está em processo de regularização. Mesmo as poucas registradas estão em fase de revisão de limites ou estão com partes tradicionais de seus territórios sendo reivindicados pelos índios ou com ações de retomadas. Porém, a maioria desses processos encontram-se paralisados por ordens judiciais. A Terra Indígena Nhanderu Marangatu está com liminar de reintegração de posse expedida contra os índios a favor dos fazendeiros. Essa tem sido a tônica nos últimos anos. Os índios vivem sobressaltados na eminência de verem contingentes militares acionados para expulsa-los de sua terra já demarcada e plantada com várias espécies de alimentos. Será que o judiciário também está sensibilizado com as inúmeras mortes de crianças por fome e desnutrição? Será que continuando a negar aos índios o sagrado e constitucional direito às suas terras tradicionais, ele está dando sua resposta para por fim a essa vergonha nacional, que é gente morrendo de fome em meio a uma das economias estaduais mais prósperas do país?
Além das terras em regularização existem dezenas delas que necessitam iniciar esse processo. Isso exigiria do governo decisão política e recursos para constituir imediatamente dezenas de grupos de trabalho com esta finalidade. Além disso, exigiria que no mínimo fossem cumpridos os prazos instituídos no Decreto 1775 para que os processos não fossem sempre interrompidos. E aí vem as outras forças antiindígenas que contestam o direito dos índios à terra e a própria lei de regularização. Tanto é verdade que os fazendeiros estão com ações dizendo que essa lei é inconstitucional. E para agravar o quadro, iniciativas recentes no Senado Federal, como o Projeto de Lei 188/2004, de autoria do senador Delcídio Amaral (PT/MS) e de outros, vierem a ser aprovados, dificilmente alguma terra indígena Guarani será regularizada.
Estamos diante não apenas de um fato de mortes isoladas, mas de um quadro que cada vez mais impede esse povo a viver e especialmente de verem a esperança de terem suas terras regularizadas. Portanto é um quadro de forte caráter etnocida, conforme tem afirmado recentemente o Cimi em manifestação pública. Ou se demarcará as terras, começando pela homologação de Nhanderu Marangatu, e se investirá efetivamente na recuperação da economia Guarani ou se estará açoitando o ar e contribuindo que o quadro piore ainda mais.
Chapada dos Guimarães (MT), 27 de fevereiro de 2005.
Egon Heck
Cimi Regional MS