23/09/2004

Povos Indígenas, Direitos Humanos e Governo FHC*, por Rosane Lacerda**

I. Introdução.


 


Ainda não se sabe exatamente o total da população indígena no país. Para a Fundação Nacional do Índio – Funai, somam 345 mil índios. Já o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, aponta cerca de 701.462 indivíduos[1]. O Conselho Indigenista Missionário – Cimi calcula esteja distribuída em cerca de 255 povos[2], e 180 línguas distintas, apesar dos 500 anos de massacres e dominação impostos pela colonização européia.


 


Com o ressurgimento de povos dados como “extintos”, o Cimi calcula haver hoje 758 terras indígenas, das quais 237 (31,36%), por estarem registradas no Patrimônio da União e nos Cartórios de Registro de imóveis de municípios, tiveram concluídas todas as etapas de sua demarcação administrativa. Enquanto isso, 506 terras indígenas (66,73%) ainda se encontram pendentes de várias etapas do procedimento demarcatório[3], como se vê abaixo:


 

























13,58%


Homologadas


Com Decreto do Presidente da República, mas aguardando Registro no Patrimônio da União e no Cartório de Registro de Imóveis.


8,00%


Declaradas


Com Portaria Declaratória do Ministro da Justiça, mas aguardando demarcação física pela Funai e homologação pelo Presidente da República.


5,40%


Identificadas


Com estudos conclusivos da ocupação tradicional indígena, mas aguardando Portaria Declaratória do Ministro da Justiça.


16,49%


A Identificar


Aguardando a constituição, pelo Presidente da Funai, dos respectivos Grupos Técnicos de comprovação da ocupação tradicional indígena.


23,35%


Sem Providências


Aguardando serem incluídas pela Funai na listagem de terras “a identificar”.

Cimi – Secretariado Nacional, 02/04/2002.


 


Este alto percentual de pendências quanto às demarcações continuou gerando inseguranças e tensões, de modo que em 2002 estes povos permaneceram vivendo, em maior ou menor grau, sob um clima constante de violências.


 


O presente artigo aborda os principais fatos relativos à situação dos direitos fundamentais dos indivíduos e povos indígenas no Brasil, ocorridos durante o ano de 2002. Traz também, aproveitando o importante momento político atual, uma avaliação sucinta do tratamento da questão durante os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso – FHC, na Presidência da República.


 


II. Principais violências em 2002.


 


Em 2002, ataques armados de pistoleiros a serviço de ocupantes de terras indígenas foram registrados ao menos em três terras indígenas. Na Caramuru-Catarina Paraguaçu (BA), foram seis ataques, resultando em dois Pataxó Hã-Hã-Hãe mortos e um ferido. A impunidade e a morosidade do Judiciário no julgamento de uma Ação (ACO n.º 312, no Supremo Tribunal Federal – STF) que há 20 anos pede o reconhecimento da nulidade dos títulos dos fazendeiros, estão entre as principais causas dessa violência que há anos vitima esse povo indígena. Na área Pataxó de Barra do Cahy (BA), por várias vezes a casa do cacique foi alvejada a tiros por  homens a cavalo. A tensão na área agravou-se a partir de 09 de abril, com a assinatura, pelo Ibama/MMA e Funai, do Programa de Gestão Ambiental Participativa e Integrada do Monte Pascoal, que desconsidera os direitos originários dos Pataxó sobre a área. Nos Xukuru (PE), um ataque promovido por um grupo de 16 posseiros e pistoleiros, juntamente com 14 indígenas cooptados por políticos ligados à prefeitura de Pesqueira, resultou em três índios feridos à bala.


 


Agressões a pessoas identificadas como aliadas dos índios também foram registradas. Foi o caso, por exemplo, do repórter fotográfico francês Antoine Juarez, espancado e amarrado ao mastro da bandeira nacional em Uiramutã, município encravado na Terra Indígena Raposa/Serra do Sol (RR). Foram os casos, também, relativos às terras indígenas Guarani do Araça’í (SC) e Kaxinawá de Seringal Curralinho (AC). Em ambos, a reação violenta da população local contra a presença dos índios, de servidores da Funai e de missionários do Cimi, fomentada por empresários e políticos, acabou por suspender os trabalhos dos respectivos Grupos Técnicos que levantavam as provas da ocupação indígena.


 


Tensões entre índios e militares intensificaram-se  nas terras indígenas Raposa / Serra do Sol (RR) e São Marcos (RR). A construção do quartel do 6.º Pelotão Especial de Fronteira (PEF), em Uiramutã[4], a notícia da realização de uma operação militar ostensiva próxima às aldeias[5],  e o anúncio do projeto de construção de uma  Usina Hidrelétrica – UHE, em local sagrado dos Makuxi, para abastecer a vila de Uiramutã e o 6.º PEF, transtornou a população indígena. As tensões aumentaram com as declarações do General Alcedir Pereira Lopes e do Ministro da Defesa Geraldo Quintão, que responderam às acusações de abuso sexual de mulheres Yanomami (AM/RR) por soldados do Batalhão de Surucucus, dizendo tratar-se de fatos a serem encarados  com naturalidade[6].


 


Casos de desrespeito à organização social indígena por agentes públicos também foram registrados. Nos Xukuru (PE), agentes da Funai foram acusados de alimentar uma falsa divisão interna do povo, em detrimento de sua organização tradicional. Até um delegado e o superintendente da Polícia Federal no Estado teriam se manifestado[7], no sentido de caber à corporação identificar quem é e quem não é Xukuru, e propor “nova escolha de caciques”. Ao mesmo tempo, os Truká (PE) acusam a Polícia Federal por transtornos em razão do uso da própria terra indígena como campo de pouso para operações de repressão no polígono da maconha.


 


Em 2002 percebeu-se o avanço da criminalização do movimento indígena. Em Pernambuco, as investigações do assassinato da liderança Chico Quelé Xukuru[8], foram utilizadas para tentar incriminar as próprias lideranças daquele povo, favorecendo a impunidade dos verdadeiros responsáveis pelo crime. Também os Truká são alvos preferenciais da Polícia no que se refere a suspeitas de envolvimento com a produção de maconha na região. No Rio Grande do Sul, o bloqueio em razão de atropelamentos, da RS – 324, que corta a terra indígena Nonoai, ocasionou a prisão e indiciamento pela Polícia Federal de cinco líderes Kaingang.


 


Destacou-se por fim a edição do Decreto n.º 4.412, de 07 de outubro de 2002, que dispõe sobre “a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal nas terras indígenas[9]. O decreto reforça as idéias de militarização e criminalização da questão indígena, e choca-se com a Constituição Federal por abrir a possibilidade de interferência desrespeitosa na organização social interna dos povos indígenas, e por dispor de algo cuja competência é exclusiva de lei complementar: regulamentar a possibilidade excepcional (e apenas por motivo de relevante interesse público da União) de atos que restrinjam o pleno exercício da posse territorial pelos indígenas (art. 231, § 6.º). O Cimi e a Comissão Episcopal de Pastoral – CEP, da CNBB, representaram à Procuradoria-Geral da República e ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, solicitando a impetração, no STF, de Ação Direta de Inconstitucionalidade contra a norma.


 


III. Direitos Humanos e Povos Indígenas no Governo FHC (1995-2002).


 


Apesar da vigência no país de um bom repertório legal protetivo, o cotidiano dos Povos Indígenas, nestes oito anos de governo FHC, foi marcado por uma extensa gama de situações de violência. Às formas já tradicionais de agressão, como por exemplo assassinatos e ameaças a lideranças, somaram-se violações possibilitadas por avanços tecnológicos, a exemplo da comercialização clandestina e não consentida de culturas de células sanguíneas humanas.


 


Além de extensos, os números das violências contra os povos indígenas no governo FHC permaneceram altos. Como se pode ver nas tabelas que seguem, só para mencionar casos mais gritantes de violações de direitos humanos tendo em vista o resumido espaço deste artigo, tem-se que no período FHC mais de 323 indígenas cometeram suicídio (284 só entre os Guarani, no MS), 167 indígenas de povos diversos foram vítimas de assassinato, mais de 127 sofreram tentativas de assassinato e mais de 10.500 foram ameaçados de morte.


 


Assim, só em relação a óbitos por homicídios e suicídios, chega-se a 490 indígenas mortos nestes oito anos. Isto sem contar com as mortes decorrentes de doenças, desnutrição, acidentes de trânsito e outras. Relativamente ao suicídio, as ocorrências entre os Guarani no Mato Grosso do Sul permaneceram em evidência, denunciando as condições desumanas a que estão submetidos com a privação de seus espaços territoriais tradicionais.


 


Suicídios e Homicídios de indígenas no período FHC (1995-2002)









































































Suicídios

Ano


 


Vítimas


(Guarani)


Vítimas
(outras)


Totais


1995


 


55


03


58


1996


 


27


15


42


1997


 


29


11


40


1998


 


29


__


29


1999


 


45


10


55


2000


 


34


?


+ de 34


2001


 


43


?


+ de 43


2002[10]


 


22


__


22


Totais


 


284


39


+ de 323


Homicídios

Ano


Assassinatos


(por  agentes públicos)


Assassinatos


(por particulares)


Fonte: Cimi - Assessoria Jurídica

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