22/09/2004

Índios sofrem com lentidão e retrocesso no poder público

Principal foco de pressão sobre o direito dos povos indígenas recai sobre temas fundiários. Morosidade dos processos de demarcação provocam a “violência que vem do papel”. No Rio Grande do Sul, Funai assume redução para “ajuste” e desvirtua área demarcada.


 


Maurício Hashizume   


 


A pressão que os povos indígenas vem sofrendo com relação às questão fundiária pode ser medida pelo exemplo da Terra Indígena Cantagalo, área tradicional do povo Guarani M’Byá, localizada no Rio Grande do Sul.


A portaria declaratória da demarcação de 286 hectares foi ratificada em uma cerimônia ocorrida na própria área, em 26 de novembro do ano passado, com a presença de três ministros – Márcio Thomaz Bastos (Justiça), Olívio Dutra (Cidades) e Miguel Rossetto (Desenvolvimento Agrário) – e do presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Mércio Gomes Pereira.



Ocorre que o mero trabalho de demarcação física de fixação dos marcos definidos pelas coordenadas geográficas dadas pela portaria simplesmente não vem sendo cumprido corretamente. Sob supervisão de um funcionário da Funai (Francisco Witt), uma empresa de topografia com sede no Maranhão vem alterando os limites determinados pela portaria para diminuir em 50 hectares a Terra Indígena Cantagalo. A própria Funai, por meio de sua assessoria, confirma que “ajustes” de última hora foram mesmo acatados pelo diretor de Assuntos Fundiários, Artur Nobre Mendes. Segundo o órgão do governo federal responsável pela política indigenista, a Cantagalo passa por lotes de colonos e os próprios representantes dos Guarani M’Byá concordaram em reduzir a área para evitar mais um novo conflito agrário na região. “A Funai faz o que os índios querem”, sustenta a assessoria de imprensa do órgão. Como prova da anuência dos indígenas, a Funai confirma ter recebido ata de uma reunião ocorrida na última terça (14) que contou com a participação de três lideranças indígenas – cacique Valdeci Timóteo, Dario Tupã Moreira e Jonatan Benides – em que o “ajustamento” ficou acertado.


O episódio revela o nível de desentendimento dentro da própria Funai. Um dos participantes da mesa na audiência pública organizada pelo Fórum em Defesa dos Direitos Indígenas com representantes do poder público, nesta quinta-feira (16), o procurador-geral da Funai, Luiz Soares de Lima, manifestou à Agência Carta Maior, contrariando a posição assumida pela própria entidade que representa, a necessidade de providências para que os limites definidos na portaria sejam integralmente cumpridos. “Temos que orientar o funcionário e fazer com que seja cumprida a demarcação”.



O precedente para o procedimento de redução de terras indígenas foi aberto ano passado, na definição do contorno final da Terra Indígena Baú, no Pará. “Transigir sobre direitos é extremamente complicado”, tentou justificar o procurador-geral da Funai. De acordo com ele, os próprios índios exigiram de forma veemente a redução da terra. Para Reinaldo Florindo, diretor-substituto de Questões Fundiárias da Funai que também esteve na audiência ocorrida no auditório do edifício-sede da Procuradoria-Geral da República, o caso Baú foi marcado por uma situação de alto grau de dificuldades. “Em um tempo exíguo, tivemos que adotar uma solução administrativa”.



Uma das organizadoras da audiência que reuniu 200 lideranças indígenas de 16 povos de todo o Brasil, Deborah Duprat, subprocuradora-geral da República e coordenadora da 6a Câmara de Coordenação e Revisão de Comunidades Indígenas e Minorias Étnicas, o caso Baú abriu uma possibilidade perigosa. “Como se, diante de um cenário de conflito, bastasse um acordo para reduzir a terra indígena”, criticou.


 


Violência de gabinete


A manifestação de uma liderança dos Guarani-Kaiowá, do Mato Grosso do Sul, resumiu bem o sentimento dos povos indígenas com relação ao poder público. “Branco fez a lei sobre os povos indígenas que ele mesmo não cumpre. Está pior que o tempo da ditadura militar. Naquela época, sofremos violência física e direta [os militares previam inclusive a extinção irrevogável das nações indígenas no Brasil]. Hoje, a violência vem no papel. Os processos de demarcação ficam todos parados nos órgãos competentes e na Justiça”.


Os Guarani-Kaiowá lutam sob terras em litígio e são vítimas de ameaças de fazendeiros e até de autoridades. Prometeram, durante a audiência, que se nenhuma medida concreta para a demarcação de suas terras for concluída até abril de 2005, eles mesmos farão uma “autodemarcação”. “Se o Estado não faz, nós vamos fazer. Afinal de contas, quem são os invasores?”, complementou o líder. Um grupo de trabalho (GT) foi constituído em 1999 para elaborar relatório sobre a identificação da terras tradicionais dos Guarani-Kaiowá na chamada Aldeia Taquara. O documento ainda não foi concluído.



Outro povo que vive situação dramática é o Krahô-Kanela, que peregrina há 27 anos desde que foi expulso da Terras Indígena Mata Alagada, no Tocantins. Já foram removidos para a terra do povo Javaé na Ilha do Bananal, tiveram que dividir assentamentos com colonos e atualmente estão alojados na antiga Casa do Índio, em Gurupi-TO, ao lado de um lixão. “Não podemos produzir, trabalhar, estudar. É a mesma coisa que uma cadeia”, afirmou uma das líderes do povo. Em 1987, Funai deixou de reconhecer os Krahô-Kanela e eles não puderam mais ter acesso à assistência médica especializada da Fundação Nacional de Saúde (Funasa). A Funai confirmou que recebeu na última quarta-feira (15) o aguardado estudo da antropóloga designada para avaliar o processo sobre os Krahô-Kanela.



O procurador-geral da Funai reconhece que existem problemas no andamento de processos dentro do Poder Executivo. Ele considera que falta também entendimento do Poder Judiciário sobre a questão indígena, em especial, por causa do embate entre direito à propriedade e direito congênito dos povos tradicionais. Para exemplificar, Soares cita o processo mais emblemático da atualidade – a novela da homologação da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol, em Roraima. De acordo com ele, a juíza Selene Maria de Almeida, do Tribunal Regional Federal (TRF) da 1a Região, determinou em sua decisão sobre o caso que o Conselho Nacional de Defesa fosse consultado para demarcações em faixas de fronteira. “Isso estava previsto na Constituição de 1967. Depois veio uma lei de 1982 que reafirmou essa norma. Mas essa exigência foi retirada da Constituição de 1988”, explicou. “O poder público como um todo, incluindo o Judiciário, precisa ter mais sensibilidade”.



Retrocesso no Judiciário



Representante da Advocacia-Geral da União (AGU) na audiência, Sandra Moreira afirmou que, depois de uma análise, constatou um retrocesso no Judiciário com relação à defesa dos direitos indígenas. Uma das medidas anunciadas por ela para atacar esse problema é a realização de um trabalho de sensibilização a respeito da questão indígena entre advogados da União, inclusive com aqueles que trabalham nas seccionais da AGU onde se encontram as terras indígenas.



Juntamente com a subprocuradora Deborah Duprat, ela tem feito visitas a ministros das altas câmaras do Poder Judiciário para tratar do tema. “Não paramos de lutar pela questão da Raposa/Serra do Sol”, declarou Sandra. Segundo ela, representantes da área jurídica do governo federal já estão estudando meios de garantir a homologação em terra contínua, cumprindo a demarcação já realizada na área. “Esses estudos não foram aprofundados e, por isso, ainda não podem ser apresentados”.


 


 

Fonte: Agência Carta Maior
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