17/09/2004

Vítimas indígenas: questão étnica*, por Rosane Freire Lacerda**

I – Introdução


 


É com certa ansiedade e até mesmo impaciência, que algumas das principais agências jornalísticas nacionais e até mesmo estrangeiras aguardam balanços anuais contendo os números da violência contra os povos indígenas no País, sobretudo  casos de homicídios.


 


A avidez é facilmente explicável. Afinal, trata-se de grupos étnicos minoritários, que conseguiram resistir a um holocausto de quinhentos anos e que só recentemente receberam, do Estado Brasileiro, compromissos de proteção especial assumidos nacional e internacionalmente[1]. Respeitados organismos de Direitos Humanos, a exemplo da Anistia Internacional, mantêm vigilância permanente quanto à situação dessas minorias, fazendo repercutir em todo o mundo, com inevitáveis desgastes para a imagem do governo brasileiro, os casos mais graves de violação aos seus direitos fundamentais enquanto pessoas humanas.


 


À primeira vista, dada esta repercussão e o pequeno contingente populacional indígena, pode parecer estarmos diante de condições que levariam a uma cobertura jornalística quantitativa e qualitativamente razoáveis, dos dados de violência quanto a estas populações. Infelizmente, não é assim que tem funcionado. Fatores como sensacionalismo e superficialidade,  já detectados nas coberturas referentes a outros segmentos, interferem também na qualidade do tratamento quanto aos “índios”.  Destacamos aqui as três ordens de fatores que nos parecem  mais específicas quanto a esta realidade.


 


A primeira delas vem da dificuldade de acesso ao local da informação, problema  que a imprensa, como fenômeno essencialmente urbano que é, ainda não superou. As terras indígenas situam-se em recantos às vezes inóspitos, em muitos casos de difícil acesso até mesmo para os núcleos não-indígenas mais próximos. Muito do que ocorre – inclusive com povos sem contato, mas nem por isso a salvo de agressões de invasores de terras -, permanece fora do alcance da imprensa, como se simplesmente não houvesse acontecido.


 


Outro fator tem sido a conjuntura predominantemente anti-indígena naquelas localidades mais próximas. Decorrente de históricos conflitos pela posse da terra associados a antigos preconceitos étnico-raciais, impera via de regra um clima de animosidade explícita ou latente para com a população indígena local, alimentado sobretudo pelas forças políticas e econômicas de interesse direto ou indireto nas terras indígenas e suas riquezas naturais.  Conseqüentemente, o registro de ocorrências de homicídios contra indígenas, tanto pelo poder público quanto pela imprensa local (quando existente) ou regional, muitas vezes deixa de ser efetuado, seja por dificuldades de acesso, seja  por puro desinteresse na divulgação da notícia ou providências a seu respeito.


 


O terceiro fator, que concorre para um tratamento precário e enfoque distorcido dado pela imprensa às ocorrências envolvendo indígenas, é a reprodução de visões preconceituosas e estereotipadas a seu respeito. Uma delas, e a mais visível a partir das manchetes divulgadas, consiste no “índio genérico”, ou seja, aquele considerado a partir de determinadas características raciais e elementos culturais, porém desvinculadamente de um grupo sócio-cultural e lingüístico específico. Em decorrência, tem-se uma idéia de “homogeneidade” indígena, que além de pobre é completamente falsa. Neste sentido, a  Declaração de Barbados III (Articulação da Diversidade. Rio de Janeiro, 10 de dezembro de 1993.) já denunciava que “com demasiada freqüência muitos intelectuais da América Latina continuam produzindo discursos referidos a comunidades nacionais supostamente homogêneas, desvalorizando ou folclorizando as presenças cultuares alternas, … .”


 


Apesar das perseguições, as populações indígenas são detentoras de uma rica diversidade sócio-cultural. Dados oficiais falam em 170 diferentes línguas maternas, faladas pela maioria dos cerca de 215 povos que se localizam por todo o território nacional.


 


Outro dos estereótipos reproduzidos, advém da tendência e mesmo da expectativa de se considerar como “índios” os portadores de determinadas características físicas (cabelos lisos e negros, olhos oblíquos, tez morena, pele imbérbere, maçãs do rosto salientes). Esta idéia de “índio”, que vem do uso do critério biológico-racial, passou mais recentemente a se mostrar impróprio ou inadequado quanto às populações indígenas no País. Assim, por exemplo, no Nordeste e Sudeste grande parte dos indivíduos pertencentes a comunidades e povos indígenas não apresentam mais aquele fenótipo. Enquanto isso na região Amazônica, a grande maioria da população, embora mantendo aqueles traços fisionômicos, não se identifica nem é identificada  enquanto pertencente aos grupos étnicos ali existentes.


 


O próprio conceito de raça, aliás, vem sendo cada vez mais condenado pois, “tal como é comumente usado, não tem um fundamento científico.[2] (…) Na realidade, os caracteres biológicos, transmitidos por via hereditária, distribuem-se através  de uma linha contínua, nas diversas partes do mundo, de tal modo que, em cada um dos grupos humanos, é possível verificar a predominância de determinadas características. Contudo, os caracteres predominantes num grupo vão-se juntando gradualmente aos dos grupos vizinhos, acabando por não ser possível distinguir um determinado grupo com base nos caracteres biológicos”.  (BOBBIO, 1986: 449).


 


No Brasil juristas mais esclarecidos já atentaram para a inconveniência política e a impropriedade científica do conceito de “raça”,  colocando o ponto chave da identificação  indígena na questão da identidade étnica, porém entendida esta “não propriamente como comunidade de origem que se vincula ao conceito de raça natural,”  justamente por estar fundada  ( a “raça natural” )“no fator biológico, hoje superado…” (SILVA, 1990: 715)


 


A partir daí, na leitura da definição legal de índio[3] (aliás, único segmento populacional com definição expressa em Lei) contida na Lei 6.001/73, “a origem e ascendência pré-colombiana não deve ser entendida como um critério ‘racial’, biológico, que não se sustenta”, mas como “consciência de um vínculo histórico ” com comunidades que se identificam com aquela ascendência (CUNHA, 1987: 23).


 


Importante ressaltar, aliás, que este nível de reflexão científico-antropológica acerca da identidade indígena no País foi de contribuição fundamental para levar a um importante marco na história do Estado Brasileiro, qual seja o de reconhecer-se como pluriétnico e multicultural, como o faz a partir da Constituição Federal de 1988. A Carta Política entende as populações indígenas enquanto grupos étnicos portadores de formas próprias de organização social, usos, costumes, crenças e tradições, bem como possuidoras de línguas maternas e processos próprios de aprendizagem educacional que devem ser respeitados, inclusive no âmbito de suas relações com o próprio Estado brasileiro. Trata-se do reconhecimento do direito ao livre exercício de seu modo de vida tradicional ( sem a perspectiva incorporativista existente no texto constitucional anterior ), e que vem inclusive aliado ao reconhecimento de outra componente importante e indispensável para a sua manutenção: os direitos originários sobre as superfícies territoriais tradicionalmente ocupadas[4].


 


Contudo, o uso do critério racial continua bastante difundido nos meios de comunicação social no que tange à divulgação da imagem indígena. No caso da mídia impressa, pelo menos a reprodução fotográfica e sua publicação parecem estar condicionados ao preenchimento do fenótipo clássico, ou seja, a chamada “cara de índio”. Sem o preenchimento de tal “requisito”, o registro fotográfico pode não ser feito ou a notícia simplesmente não ser publicada. Ou pode ainda a publicação ser feita, mas sem qualquer referência à identidade indígena do envolvido.


 


Da mesma forma que o critério racial, a definição da identidade indígena a partir de um critério eminentemente cultural consiste num vício ainda bastante reproduzido pela imprensa. A visão de índio dada por este critério é puramente estereotipada, discriminatória e cientificamente contestada. Por ela, cobra-se dos povos indígenas um engessamento cultural impossível, sob pena da negação de reconhecimento à sua identidade, o que se traduz pelo uso do termo “aculturação”. O preconceito embutido neste estereótipo é facilmente perceptível pois  os índios, como qualquer comunidade étnica, não param no tempo. A evolução pode ser mais rápida ou mais lenta, mas sempre haverá mudanças e, assim, a cultura indígena, como qualquer outra, é constantemente reproduzida, não igual a si mesma.” (SILVA, 1990: 716).


 


Há por fim que se atentar para que na forma como casos de violência contra indígenas aparece na imprensa, reflete-se também a manutenção de outros estereótipos, quais sejam, os da  existência de qualidades ou defeitos intrínsecos à natureza indígena, como algo biológico ou genético. Trata-se das velhas visões que colocam a imagem indígena oscilando ente o “bom selvagem”, e o “bárbaro cruel”,  ambas divorciadas da realidade e com iguais potenciais destrutivos.


 


II – A violência na carne.


 


Os dados a seguir descritos, referentes ao ano de 1997, fazem parte do levantamento anual de violências contra os povos indígenas, realizado pelo Conselho Indigenista Missionário – Cimi. Pelos motivos anteriormente expostos, informações quanto a fenótipo não foram consideradas na identificação quer de vítima quer de agressor. O critério utilizado foi o de sua vinculação a uma identidade étnica própria, mesmo que sob a circunstância  eventual de encontrar-se fora do convívio de sua comunidade de origem.


 


Revela o levantamento que naquele ano, pelo menos 26 indígenas foram assassinados no País. O jornalismo impresso, como sempre, foi a fonte principal, tendo noticiado 18 destes homicídios (70%). Os oito restantes (30%) foram objeto de registro exclusivo de missionários e agentes de pastoral indigenista da Igreja Católica, que não chegaram a repercutir naquele meio de comunicação social.


 


Pelas dificuldades no início apontadas, pode se dizer que certamente este número não expressa com exatidão a totalidade dos casos ocorridos no decorrer do período. Contudo, é bastante representativo da realidade, como amostragem e indicativo de tendências.


 


Falar em 26 casos de homicídios em todo o País pode parecer, à primeira vista, algo insignificante, se comparado aos números extraordinários divulgados todos os dias pela imprensa brasileira para os demais segmentos da população. Mas não o é, se considerarmos o impacto de tal número em relação ao segmento específico atingido. Como foi dito anteriormente, as populações indígenas constituem uma minoria. Dados recentemente divulgados, dão conta de que somam hoje um contingente de cerca de 335 mil pessoas (ÉPOCA, 1998:41)[5]. Quando se considera a quantidade de homicídios em relação ao povo ou etnia atingida, bem como  às demais formas de agressão que vêm associadas, percebe-se mais ainda a gravidade da situação.


 


Estes 26 casos de homicídios de indígenas em 1997 representam cinco a menos que no ano anterior (CIMI, 1997: 34), o que pode consistir tanto na confirmação de uma tendência de diminuição do uso deste tipo de violência, quanto na falta de maior acesso e/ou divulgação da notícia.


 


Nos dados referentes ao ano de 97, aparecem 06 assassinatos de autoria não-indígena (23 %). As mortes de autoria atribuída a outros índios, pelo segundo ano consecutivo, somam a maioria – 12 casos (47 %), e as de autoria desconhecida – categoria que figura pela primeira vez nos levantamentos da entidade, 08 casos (30 %).


 


Vejamos os números a partir da autoria das ocorrências.


 


No caso dos homicídios de autores não-indígenas, chama atenção nesse ano a brutalidade com a qual os crimes foram praticados. O mais conhecido, e que abalou profundamente a opinião pública do país, foi obviamente a morte bárbara do Pataxó Hã-Hã-Hãe Galdino Jesus dos Santos, incendiado vivo enquanto dormia.  As demais cinco mortes foram praticadas com golpes de instrumentos pérfuro-cortantes (principalmente facas). Destas, a mais violenta, sem dúvida, foi o caso do índio Kanela conhecido como Marcelo, 18 anos, morto a golpes de machado e facão. O rapaz teve decepados as orelhas, dedos e pulsos, sendo enterrado de cabeça para baixo. A polícia teve dificuldades para resgatar o corpo, devido à grande quantidade de sangue dentro da cova.


 


É importante observar no caso destes homicídios, de autoria não-indígena, o importante aspecto simbólico que encerra o meio empregado – geralmente arma branca, pois que “o  uso destas armas, geralmente, antes de matar as vítimas, as fere, as mutila, dilacera os corpos (…) Se o efeito demonstração das armas de fogo é a destruição imediata, destas é primeiramente o da punição e do sofrimento.” (BANDEIRA, 1989: 66)


 


A brutalidade destas mortes  não se revelou apenas nos métodos de execução, mas também nos seus “motivos”. No caso do Pataxó Hã-Hã-Hãe queimado vivo, o ato teria sido praticado por  “diversão” ou “brincadeira”, não em razão de sua identidade indígena, mas por ter sido confundido com mendigo, numa demonstração clara de preconceito contra pessoas social e economicamente desfavorecidas.  É no caso do índio Kanela  que encontramos as evidências claras de preconceito étnico e racial. Fora esquartejado e enterrado de cabeça para baixo,  devido à notícia de seu namoro com a filha do dono da fazenda onde trabalhava como peão.  Nos demais casos as motivações variam, consistindo em vingança, crime passional e discussão por dívidas. Desta vez, conflitos de terra não surgiram como motivação, pelo menos explícita, em nenhum dos casos apontados.


 


Quatro dos seis crimes (66,6 %) apresentam evidências de extrema frieza, não tendo sido praticados no calor de qualquer discussão ou em estado de embriaguez. Nestes casos as vítimas foram simplesmente surpreendidas, duas enquanto dormiam  (Galdino Pataxó Hã-Hã-Hãe e Alfredo Guajajara), uma enquanto estava recolhida ao barraco onde morava (Marcelo Kanela) e outra enquanto retornava a uma visita social. Em apenas uma das seis ocorrências praticadas por não-índios foi registrado o uso de bebida alcoólica antes do crime.


 


Cinqüenta por cento de tais homicídios foram praticados no meio urbano (Lábrea – AM, Brasília – DF e São Gabriel da Cachoeira) onde as vítimas encontravam-se de passagem. Dois dos casos ocorreram no interior de fazendas, e em apenas um caso o assassinato ocorreu no interior da terra indígena. Duas das mortes ocorreram com invasão de domicílio.


 


Os acusados pelas práticas destes homicídios constituem tipos bastante variados. À exceção dos jovens de Brasília – de classe média alta e famílias influentes -, os demais parecem bastante representativos do universo sócio-cultural e econômico regional com o qual boa parte da população indígena se relaciona, geralmente na condição de subserviência: o comerciante atravessador de produtos indígenas; o fazendeiro; o peão de fazenda; o popular sem referências de antecedentes criminais.


 


No caso dos homicídios de autoria indígena, percebe-se que o perfil das agressões apresenta algumas diferenças em relação àquelas de autoria não-indígena. A primeira  é quanto ao meio ou instrumento utilizado. Nas mortes praticadas entre índios, o uso de armas de fogo foi registrado em 25 % dos casos, contra nenhum nas agressões praticadas por não-indígenas. Em apenas um caso foi apontado o uso de arma branca (facadas), mais utilizada por agressores não-indígenas.


 


O segundo dado a chamar atenção, refere-se às circunstâncias destas mortes entre índios. Enquanto que nas praticadas por não-índios  predominaram o estado de sobriedade e a ausência de desavenças imediatamente anteriores às investidas dos agressores, pelo menos cinco dos oito homicídios praticados pelos próprios índios (41,6%) foram cometidos no calor de discussões, incluindo dois praticados após a ingestão de bebida alcoólica.


 


Relacionados a este consumo, aliás, foram registrados pela primeira vez, em 1997, dois casos cujas vítimas foram crianças, ambas com dois meses de vida. Os acusados, os próprios pais, teriam provocado suas mortes jogando-as no chão, depois de discussões domésticas e bastante alcoolizados. No total, foram três mortes vinculadas à bebida (41,6 %), sem contar outros dois casos de autoria desconhecida, cujas vítimas encontravam-se embriagadas.


 


Este dado, do consumo de bebida alcoólica associado à prática de homicídios por  ou contra indígenas, consiste em aspecto extremamente preocupante. Como se sabe, ao longo destes 500 anos e em todo o Continente a introdução e disseminação de bebida alcoólica sempre foi utilizada como uma das armas mais eficazes de dominação e destruição das populações indígenas. Por esse motivo a legislação especial passou a tipificar como  conduta criminosa “contra os índios e a cultura indígena” o fornecimento e disseminação de bebida alcoólica, prática que sujeita o seu autor a pena de detenção, de seis meses a dois anos[6].


 


Pode-se dizer que o consumo de álcool nas comunidades indígenas, diante das condições adversas às quais encontram-se submetidas, tem consistido não apenas em veículo de distanciamento de uma dura realidade de opressão e esbulho, como também em  mecanismo de autodestruição decorrente da falta de perspectivas de superação desta realidade. Dados evidenciam que o alcoolismo, juntamente com a prática  de violências entre os próprios índios vem aumentando. Indígenas apontados como autores destas ocorrências são  responsabilizados criminalmente conforme a legislação penal comum, mas o mesmo não ocorre, entretanto, com os autores ou responsáveis pela prática da disseminação da bebida alcoólica – geralmente comerciantes ou garimpeiros e madeireiros invasores das terras indígenas.


 


Quanto aos motivos das ocorrências, outras diferenças são encontradas. Três das doze mortes entre índios (25%)  teriam tido motivação passional. Dos demais quatro casos identificados, dois (16,6%), teriam sido  gerados por conflitos internos, em torno de antigas desavenças entre grupos  familiares  e insatisfações quanto à condução de organização associativista, e outros dois (16,6%) motivados pelo alcoolismo.


 


Relativamente ao local das agressões, pelo menos nove (75 %) foram praticadas no interior das terras indígenas. Dos dois praticados fora da área, um teve lugar numa fazenda onde os índios trabalhavam como bóias-frias, e outro uma cidade vizinha à área indígena.


 


Ainda no que tange à ocorrência de assassinatos entre os próprios índios – o que, como dissemos anteriormente indica em dois anos seguidos ter superado a quantidade de ocorrências de autoria não-indígena – ,  cremos ser necessário passar por uma análise mais detida, o que certamente não cabe no momento. No entanto, cremos ser oportuno chamar a atenção  desde já  para uma circunstância  que nos parece contribuir para uma compreensão mais exata a respeito da situação.


 


Trata-se do fato de que pelo menos 50% das áreas onde ocorreram tais crimes passam por problemas territoriais extremamente graves, e que se arrastam há muitos anos. Todas as terras indígenas incluídas neste percentual, embora já tenham sido objeto de providências administrativas (demarcação) concluídas ou bastante adiantadas, ou sofreram violentas reduções em suas superfícies territoriais, ou continuam sob a presença de invasores, presença esta ostensiva e predatória. Isso sem falar na aglomeração forçada de etnias distintas num mesmo e reduzido espaço territorial. De todo modo, a falta de privacidade  e de liberdade destes grupos internamente e externamente (em relação aos invasores não-indígenas) é uma constante. Somando-se isto à degradação ambiental decorrente da depredação das riquezas naturais por parte dos invasores, e à falta de assistência médico-sanitária entre outras, tem-se assim uma violenta queda da qualidade de vida, o que somado às sucessivas frustrações quanto a uma solução do problema por parte do poder Executivo, quer do Judiciário, produz no âmbito das comunidades efeitos psicológicos extremamente negativos e autodestrutivos. Pode-se colocar então, sem qualquer exagero, que em última instância a elevação dos índices de tais ocorrências tem origem justamente na omissão do poder público.


 


Das 08 ocorrências de autoria desconhecida, que tanto podem ter sido praticadas por não-indígenas quanto por outros índios, em pelo menos 06 casos as vítimas já foram encontradas mortas.


 


Novamente chamam a atenção, em três destes casos, os tipos de lesão externa encontrados nos cadáveres, indicados como tendo sido provocados por pauladas, o que aponta para o uso de grande violência pelos agressores. Num, a vítima, uma mulher Guajajara (MA), teve os olhos furados, braço quebrado e apresentava hematomas pelo corpo, tendo sido morta depois, por estrangulamento. Num segundo, um Xukuru-Kariri (AL) foi encontrado com sinais de espancamento a pauladas, mas a família estaria suspeitando de atropelamento. E num terceiro, um Guarani-Kaiowá (MS) foi encontrado apresentando traumatismo craniano.


 


Outro ponto em comum nos três casos, é que os corpos foram encontrados fora das respectivas áreas indígenas. Pelo menos no primeiro e no terceiro casos, as vítimas haviam saído a passeio, e encontravam-se embriagadas no momento em que foram mortas.


 


Em outros três casos as notícias dão conta de que as vítimas foram mortas à bala, também fora da área indígena.


 


III – A violência na fonte.


 


Como dissemos anteriormente, desses 26 casos de homicídios de que o Cimi teve conhecimento em relação ao ano de 1997, oito casos  (30%) não foram divulgados pelos órgãos noticiosos. Isso indica que no que tange à imprensa, a falta de uma maior cobertura jornalística  à qual nos referimos no início, com certeza se mantém. Conseqüentemente, a quantidade de ocorrências continua ainda sendo subnotificada.


 


Uma primeira constatação a fazer, é de que no caso das violências cometidas contra os povos indígenas, inclusive relativamente a casos de homicídio, a informação jornalística é quantitativamente insuficiente. Dadas as proporções populacionais indígenas serem minoritárias, todos os dados de ocorrências são extremamente preciosos. Decorre que é impossível trabalhar  neste caso unicamente com informações provenientes da imprensa escrita, sob pena de se ter um comprometimento dos dados em termos quantitativos, ainda que se compreenda o seu caráter de amostragem  – e não exaustivo – da realidade.


 


Além deste aspecto quantitativo, há outros, de natureza qualitativa, que podemos abordar tomando em consideração os 18 casos noticiados pela imprensa.


 


O primeiro, mais visível, refere-se à  falta de uma maior preocupação com a precisão ou a inclusão de dados relativos à realidade específica dos povos indígenas. Informações importantes tais como o povo ao qual pertence vítima ou autor e denominação correta da terra indígena ainda aparecem de forma incorreta ou sequer constam nas matérias.  Da mesma forma, talvez procurando dar mais importância à notícia, divulga-se como ocupante de certas funções na organização social como  “cacique” ou “liderança” a pessoas que não possuem tais funções nas suas comunidades.


 


O segundo aspecto consiste na manutenção de uma imprecisão terminológica[7], que longe de ser uma questão meramente semântica, envolve a opção consciente ou inconsciente por conceitos que podem encerrar toda uma sorte de estereótipos e preconceitos sobre os quais já  nos referimos introdutoriamente. Neste sentido é recorrente o uso da expressão “tribo” para identificar a origem dos envolvidos, conceito este atualmente rejeitado pelo segmento mais consciente do movimento indígena – sobretudo nos demais países da América Latina  e condenado pela ciência antropológica  “por sua imprecisão, por sua plasticidade altamente manipulável, por ser um termo utilizado por conquistadores para se referir a conquistados …” (RAMOS, 1986: 10).


 


O terceiro aspecto consiste na ausência de contextualização das ocorrências, principalmente nas agressões praticadas entre indígenas. Dados relativos à situação jurídico-administrativa da terra indígena e conflitos a ela relacionados, formas de organização social das comunidades, tipo de relacionamento com a sociedade regional envolvente, aspectos sócio-econômicos relativos à qualidade de vida, e percentual populacional da comunidade ou povo atingindo,  tudo isso, de maneira geral, permanece fora do eixo de preocupações da notícia.


 


Como decorrência, deparamo-nos com um quarto aspecto, consistente no tratamento fragmentário e policialesco dado aos casos.  Assim, para as ocorrências praticadas por não – indígenas, os homicídios transparecem como fatos motivados por questões individuais, e isolados do conjunto de um contexto sócio-econômico e político.


 


Ao mesmo tempo, em relação aos assassinatos praticados pelos próprios índios, ecoa com perfeição a reflexão de Eduardo Galleano em palestra proferida no II  Congresso Mundial da Associação Mundial para a Comunicação Cristã (WACC), quando afirmava que por parte da imprensa “la violencia casi siempre se exhibe como el fruto de la mala conducta de los seres de tercera clase que habitan el llamado Tercer Mundo, condenados a la violencia porque ella está en su naturaleza: la violencia corresponde, como la pobreza, al orden natural, al orden biologico o quizás zoológico de un sub-mundo que así es porque así ha sido y así seguirá siendo.” (Galleano, 1995: 13.)


 


É de se observar ainda que mesmo no caso Galdino, cuja repercussão foi fulminante, duradoura[8], e sem precedentes – mesmo se comparado à divulgação de casos de massacres de grupos indígenas, como o de Haximu na área Yanomami (RR), mesmo alí não se esteve a salvo de incorreções e imprecisões como as acima apontadas, como por exemplo, a sua identificação como “Cacique”, o uso da denominação “tribo”, a associação de sua vinda a Brasília – DF para as comemorações do “Dia do Índio”, a sua vinculação à terra indígena Pataxó Coroa Vermelha em Porto Seguro (BA), etc.


 


IV) Considerações finais.


 


O número de homicídios de indígenas que se tem notícia continua preocupante. Entre 1990 e 1997, no mínimo 231 foram vítimas deste tipo de crime, o que significa uma média de pelo menos 28,8 casos anuais.


 


A preocupação advém não apenas em relação ao que representam os homicídios frente à eliminação da pessoa humana individualmente considerada.


 


Em 1956,  a Lei n.° 2.889 passava a anunciar, entre as condutas definidas, como crime de genocídio, os atos de “matar membros do grupo”, “causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo” e “submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial”, atos estes praticados com a “intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso.[9]


 


Trazemos a lembrança do texto da Lei à tona por um motivo. Dentro de cada micro-universo de uma comunidade indígena, cada assassinato repercute  provocando danos imprevisíveis e irreparáveis, não só para os parentes mais próximos ou entes queridos, mas para todo o conjunto da comunidade. A proporção da perda gerada por essas mortes é extremamente impactante.


 


Mas é imprescindível considerar, também, que as mortes por homicídio não  consistem nas únicas perdas que recaem sobre estas comunidades. Como populações altamente vulneráveis que são, encontram-se sempre sujeitas a processos de depopulação extremamente graves e que podem por em risco a continuidade de sua existência enquanto grupo étnico, enquanto coletividades possuidoras de uma identidade própria.


 


Freqüentemente são mortes por doenças e/ou desnutrição, quer devido à queda da qualidade de vida em decorrência da perda de espaço territorial, quer em razão da  transmissão de doenças infecto-contagiosas trazidas pelos invasores. Outras vezes são também mortes por suicídio, em decorrência da falta de solução de problemas territoriais e conseqüentemente de  perspectiva de vida.


 


Assim, no caso dos povos indígenas no Brasil, os homicídios  consistem numa forma grave de violência contra o ente coletivo, mas não a única forma. É necessário ser considerada sempre no conjunto das demais  violências, pois seus efeitos, somados, podem ser devastadores, dando-se aquelas condições de existência  potencialmente destrutivas de que fala a lei sobre genocídio.


 





















 


AUTORIA


 


 


Não-Indígena


Indígena


Desconhe-cida


Total


 


OCORRÊNCIAS POR AUTORIA


06


12


09


Fonte: Cimi - Assessoria Jurídica

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