Política Indigenista: Senador prevê intervenção do Legislativo em demarcações
Postura reticente do governo federal no cumprimento da Constituição vem cedendo espaço para uma articulação de políticos que exige apenas uma coisa: que as futuras homologações de terras indígenas passem pela aprovação do Senado.
Em política, não há vácuo. Quem acompanha o cotidiano do poder aconselha os desavisados a não menosprezarem essa “regra de ouro”. No caso específico da política indígena, a postura reticente do governo federal no cumprimento da Constituição vem cedendo espaço para uma articulação de atores interessados na Esplanada dos Ministérios, com um foco bastante atuante dentro do Congresso Nacional.
Nesse quadro, a eclosão de uma série de conflitos envolvendo povos indígenas desde o início do governo Lula tem sido o mote para que parlamentares retomassem a tentativa de revolver os artigos da legislação brasileira que definem os direitos dos povos indígenas e excepcionalmente não favorecem os donos de terra. Resultado de ampla discussão durante o processo da Assembléia Constituinte de 1988, o processo legal de demarcação e homologação de terras indígenas, que por sinal segue os acordos internacionais ratificados pelo Brasil, é o principal alvo desse movimento cuja bandeira é o direito à propriedade.
Entre as diversas proposições de emenda constitucional que vêm sendo protocoladas tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado, uma, em especial, vem sendo trabalhada pelos setores favoráveis à mudança para se tornar “unanimidade”: a exigência de que as futuras homologações passem pela aprovação do Senado. O senador Delcídio Amaral (PT-MS), autor de um relatório e um projeto de lei – ambos aprovados na Comissão Temporária Externa de Questões Fundiárias – que definem mudanças constitucionais para aumentar o “controle” do processo de legalização das áreas onde vivem os povos indígenas, dá essa alteração quase como certa. “Tudo que foi proposto pode ser negociado, mas existe um entendimento amplamente favorável à exigência de que as demarcações sejam homologadas pelo Senado. E isso não se restringe a parlamentares. Temos apoio de pessoas importantes do Palácio do Planalto”.
Em conversa por telefone, o senador petista deixou claro que tanto a proposta de lei como o relatório aprovados na Comissão do Senado fazem parte de uma estratégia para “criar gordura” na negociação política da questão. “Evidentemente que ‘caprichamos na tinta‘ em itens polêmicos. O fato é que existe inflexibilidade do lado da Funai [Fundação Nacional do Índio, órgão do Ministério da Justiça], da Procuradoria-Geral da República e de setores ligados a eles”, afirmou.
Entre os pontos que podem ser considerados como “gordura”, os documentos de autoria do senador sugerem: um dispositivo legal que proíbe a conclusão do processo homologatório de terras indígenas ocupadas antes da demarcação oficial – semelhante ao que dispõe a medida provisória (MP) editada para casos de desapropriação destinada à reforma agrária -; a presença de um advogado da União, um economista do Ministério da Fazenda e um técnico do Senado no grupo técnico responsável pela demarcação; a criação dos Títulos de Dívidas Indígenas para facilitar o ressarcimento de não-indígenas; e a intervenção do Conselho de Defesa Nacional para áreas localizadas dentro de uma faixa de 150 quilômetros de fronteira. “Do jeito que está, não dá mais.Temos que buscar soluções. A população não pode esperar mais. Não podemos criar um clima de beligerância”, apontou Amaral, cujo currículo é extenso: ex-ministro de Minas e Energia do governo Itamar Franco, ex-presidente do Conselho de Administração da Companhia Vale do Rio Doce (CVDR), ex-diretor da Petrobras e ex-funcionário das transnacionais Shell e General Eletric (GE).
Desenvolto e articulado na defesa dos direitos dos não-índios que vivem em terras indígenas, Amaral veste a camisa dos donos das 14 fazendas – “alguns deles com escritura de 40 anos” – ocupadas por índios no Mato Grosso do Sul, mas não descarta a possibilidade de soluções emergenciais que dispensam mudanças imediatas na lei. “São situações restritas e distorções localizadas – pontos fora da curva que provocam um drama muito grande”.
“É um tema extremamente delicado”, definiu o senador, citando a importância da criação de um grupo de trabalho interministerial (GTI) no Poder Executivo para tratar da resolução dos conflitos. “Além dos problemas relativos à dificuldade de livre-circulação das Forças Armadas e a bagunça que impera na exploração mineral, a questão indígena tem como pano de fundo a atuação de organizações não-governamentais (ONGs) internacionais junto aos índios”, analisou. “Por isso você não pode ir ‘manso’ para uma negociação como essas. Tem que colocar o ‘bode’ na sala”.
Em reação ao “bode” colocado na sala pelo senador, cerca de 150 representantes de movimentos sociais do Mato Grosso do Sul se uniram a 100 lideranças Terena e Guarani-Kaiowá em uma plenária na cidade de Campo Grande. Ao final do encontro, os participantes divulgaram documento que aponta “o aumento nas dificuldades no processo demarcatório com a inclusão de novas instâncias de decisão”, previsto no relatório e no projeto de lei de autoria do senador Delcídio Amaral, como fator determinante para que a homologação das terras indígenas fique ainda mais complicada, “num patamar próximo do impossível”.
Ainda na nota, a plenária defendeu a criação, em caráter de urgência, de um conselho nacional “composto por representantes dos povos indígenas, de órgãos governamentais e de entidades indigenistas da sociedade civil para garantir a demarcação e a formulação de políticas públicas nas áreas de agricultura, saúde, educação, meio ambiente e segurança”.
A articulação dos movimentos sociais com a luta dos povos indígenas do Mato Grosso do Sul teve início, depois de mais de cinco anos de desmobilização, a partir de iniciativas desencadeadas pelo povo Guarani-Ñandewa para recuperar o território Yvy Katu, em dezembro de 2003. A Plenária, por conseguinte, também renovou apoio aos povos locais “impedidos de usufruto do direito constitucional de ir e vir por conta das ameaças de morte dos fazendeiros e pistoleiros” e defendeu “a demarcação das terras indígenas dos povos do Mato Grosso do Sul”.
Foi marcado um encontro dos representantes dos povos indígenas com o senador Delcídio Amaral, para o dia 2 de julho. A programação definida na Plenária prevê também uma reunião com a secção do Estado da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-MS), cuja pauta será a criação de uma comissão indígena no âmbito da entidade, e uma participação ativa na Conferência Nacional de Direitos Humanos, que começou dia 29 de junho e foi até dia 2 de julho.
Maurício Hashizume – Agência Carta Maior
Publicado no Jornal Porantim – edição 266