10/08/2004

Missão – Para uma Mística Missionária Militante

 


Por Paulo Suess (Assessor teológico do Cimi)


No retrovisor da „mística missionária militante“, o caminho percorrido pelas pastorais populares está cheio de pedras e flores. Ao escutar os companheiros e as companheiras, vejo três pedras no caminho: a pedra da orfandade, do desencantamento e do aburguesamento. A meditação das pedras nos remete às inspirações primeiras da caminhada, à missão, à militância e à mística que são os pilares que sustentam o teto da memória, do projeto e da esperança.


As pedras


As pedras no meio do caminho são alertas que têm muitos nomes. Falarei das pedras da orfandade, do desencantamento e do aburguesamento. A pedra da orfandade aponta para a perda do ninho político. A pedra do desencantamento aponta para o desgaste unilateral entre os pólos que constituem a vida em sua dimensão holística (corporal, espiritual, emocional, intelectual; social, individual, coletivo; trabalho, lazer); aponta também para a perda de equilíbrio na micropolítica do afeto. A pedra do aburguesamento representa o desejo difuso de participar das apropriações privilegiadas da elite.


A orfandade


Os que lutam em movimentos sociais sofreram uma decepção profunda ao perceber que “seu“ partido que se dizia ser um partido para todos, abandonou a militância e se debruçou sobre o projeto da elite até então combatida. O que seria a primeira mesada – um round tático – tornou-se mesa única. Para os peões ficou a promessa de “fome zero“.


A militância nos uniu ontem ainda com os governantes de hoje. Estávamos juntos nos protestos da rua, na marcha para Brasília, nas manifestações de Porto Seguro, nas ocupações do latifúndio, nas campanhas contra a ALCA. Parte significativa dos movimentos, hoje, está no governo e, na hora H, desliga o celular. Muitos ex-companheiros e ex-companheiras perderam, com a “sabedoria” de governar, a coragem de agir.


E agora José? Perdemos companheiros e companheiras de luta no campo de batalha e na burocracia das repartições do novo governo. Ficamos com a sensação de abandono; com a dor da orfandade que se junta a uma dúvida que não se cala: Será que não aprendemos bem a lição da história? Mas, a orfandade também tem seu lado positivo. Aponta para a necessidade de crescer, de criar relações adultas com os governantes e romper laços com os compadres no Planalto. Podemos repensar a diferença entre favor e direito, priorizar a formação de lideranças.


O desencantamento


O grande peso que a “luta” e o “projeto” têm na vida de agentes pastorais e líderes populares, causa, muitas vezes, um desgaste unilateral na esfera privada. A vida dos militantes é semelhante a um pneu de carro mal calibrado. Enquanto o carro roda, adia-se a revisão na oficina. Os pólos que constituem a vida inteira – razão e emoção, epiritual e material, trabalho e lazer, luta e contemplação, privado e público, individual e coletivo – criam tensão, mas geram também luz. O preço da luz é a tensão entre os pólos.


A luta tem seu preço. O desencantamento que uns entendem como novo realismo e outros como traição política, se insere num desencantamento da própria civilização ocidental que, a partir do século 17, fez do conceito de racionalidade o pivô do seu pensamento. A equação custo-benefício paira no ar como uma inspiração divina.


O processo de racionalização produziu o desencantamento do mundo. Expulsou o mistério pela razão e a gratuidade pelo cálculo. O cristianismo, com sua ética de trabalho e de ascese, descrita por Max Weber, contribuiu para a racionalização do mundo ocidental. A ética de trabalho e de ascese está na origem da acumulação.


Pressionados pela urgência da luta, muitas vezes, os movimentos imitaram os atalhos do autoritarismo dos adversários, a burocracia dos aparatos e a racionalidade do progresso que combateram. Valeu a pena subordinar a micropolítica do afeto, do lazer e do prazer à macropolítica da “causa” e do “projeto”? “Desencantados” vulneráveis, às vezes, nos sentimos “livres” para trocar “parceiros”, em vez de mudar de atitudes, trocar projetos, em vez de clarear horizontes.


O aburguesamento


O aburguesamento da antiga “classe operária” e de movimentos que se transformaram em ONGs, é uma vitória do pensamento hegemônico e do mercado total. O mundo dominado pelo capitalismo de cunho neoliberal investe a maior parte de sua criatividade em propaganda, design e marketing. Tudo vale para transformar o próximo em cliente e as relações humanas em relações de mercado. O mercado disfarça o preço, destaca o prazer imediato e apela à libido. O latifúndio dos meios de comunicação produziu uma nova colonização. E nós, junto com lideranças indígenas e populares, não somos isentos e autônomos frente aos aliciamentos do capitalismo. Somos atravessados pelos desejos de poder, lucro e prazer que combatemos.


O prazer que ontem expulsamos com um radicalismo unilateral e o afeto que subordinamos à agenda de luta, se vingam como “demônios expulsos” que voltam com mais força. Algo dentro de nós está gritando por uma fatia de realização dos desejos e da utopia, já. Somos contemporâneos não só do socialismo, mas também do neoliberalismo. Assistimos a acomodação de campanheiros e companheiras e de nós mesmos ao espírito do tempo. Parece que venceu a data da nossa vacina contra a utopia consumista.


O horizonte


Dedicamos nossa vida ao “projeto” e à “causa” dos povos indígenas e dos movimentos populares. A partir da nossa opção de fé, “causa” e “projeto” fazem parte do projeto maior do Reino de Deus, anunciado por Jesus de Nazaré. O projeto maior do Reino está presente na vida cotidiana, na metodologia de trabalho, nas pequenas vitórias e derrotas, na esperança que dá sentido a nossa vida.


A missão


Nossa missão é uma missão de justiça e esperança que visa à transformação das macro-estruturas e à transformação do coração de cada um. A fé inspira sempre novas razões de esperança e novos caminhos de libertação. Contra as mensagens insistentes dos meios de comunicação e seus sinais sedutores a serviço do mercado, a missão produz sinais de justiça e cria imagens de esperança.


Missão significa memória de um passado colonial ainda próximo e projeto de libertação em curso. Memória e projeto são constitutivos para a caminhada missionária. A memória rompe com a repetição obsessiva e traumática do passado. O projeto é a visão de uma outra sociedade que se inspira na concepção real e utópica das sociedades indígenas. Nelas prevalece a construção da pessoa sobre a produção de bens, o ócio sobre o negócio, a participação sobre a competição, a partilha sobre a acumulação, a liberdade sobre o “vigiar e punir”.


Por causa da nossa fé, a nossa missão junto ao próximo e ao outro é universal e contextual. Não nos contentamos com uma libertação provincial ou uma salvação privilegiada para alguns. Os cristãos não têm o estatuto de uma “classe redentora” ou de um “povo eleito” para si. A salvação, como ensinou Jesus, se realiza através do Outro que caiu nas mãos do ladrão. A mediação da libertação/salvação acontece através das vítimas do sistema, não através dos puros nas Igrejas. Sem articulação com o outro-vítima tampouco há salvação. O ladrão da parábola do Bom Samaritano age, hoje, mundialmente. Por causa das vítimas, a nossa missão é “sem fronteiras” e “exogâmica”. Ela vai sempre além das fronteiras familiares, institucionais e geográficas. Nossa missão rompe com o corporativismo institucional que visa poder, privilégios e prestígio. Ela é universalmente contextualizada.


Missão é organização e articulação contra a violência da fome, contra a fatalidade da exclusão e contra a banalidade do sonho consumista. Para a organização da esperança não vale a normatividade de uma suposta “qualidade total”, que é concorrencial e eliminatória, mas a excelência do pobre, a lógica do Evangelho e as regras da fraternidade.


A missão configura nosso “estar em movimento”, organizadamente. Não somos partido, somos movimento, construtores da vida inteira. Caminhar é a forma mais radical da partilha. A missão nos transforma diariamente. Somos eternos “mutantes”, herdeiros de bandeirantes e indígenas. Afinal, quem somos?


Militância


Nossa mística é militante porque a causa indígena nos coloca no centro de uma cadeia de grandes conflitos: a redistribuição dos bens acumulados e o reconhecimento dos outros e das outras em sua alteridade. A mística reforça a resistência da vida contra a morte. Nessa resistência se forja o horizonte do sentido. A vida tem sentido, apesar das contingências, das mortes e do desespero de muitos.


No mundo globalizado todos os conflitos têm uma dimensão que ultrapassa a região e o país. Os conflitos em torno da terra/território dos povos indígenas nos colocam em conflitos com o latifúndio como sinônimo de privilégio e desigualdade. Os beneficiados pelas desigualdades – os latifúndios da terra, do capital, dos meios de comunicação e do saber – estão mundialmente articulados em parcerias lucrativas.


A indignação contra este quadro de acumulação e exclusão pode tornar-se o ponto de partida para a missão profética de justiça e esperança. A indignação preserva a missão da submissão. Não somos remendos novos em odres velhos, mas areia na máquina do opressor. A experiência pascal que simboliza essa ruptura, ilumina a caminhada dos peregrinos que chegam dos vales de resistência. Experiência pascal significa contestação da morte do justo, porque Deus rasgou a sentença do injustiçado. Justiça é sempre justiça da ressurreição; ressurreição das vítimas do sistema de acumulação e exclusão.


Ao anunciar o Reino, a presença missionária produz sinais de justiça e imagens de esperança. Neste anúncio está seu núcleo antisistêmico. Sinais de justiça e imagens de esperança produzem rupturas significativas para que o mundo seja habitável para todos. Através da missão militante, replantamos os sonhos dos povos indígenas e dos pobres nas rachaduras do sistema.


A colaboração na organização da esperança dos povos indígenas, arrancando do latifúndio pedaço por pedaço dos seus territórios indevidamente apropriados, dá sentido à nossa vida e razão à nossa esperança. Participar da luta significa participar da festa que é a socialização da “divina abundância” e uma das condições de igualdade social. A festa dos povos indígenas não significa “inserção no mercado”, como muitas festas religiosas cristãs. As lutas e as festas dos povos indígenas são instâncias críticas frente à sociedade de consumo privilegiado e de acumulação. A partilha da experiência, do pão e do caminho, da história e do horizonte entre peregrinos que chegam dos vales da morte, aponta para novas possibilidades e alternativas de viver.


Mística


A palavra “mística” tem múltiplas conotações. Pode significar espiritualidade, reza, esoterismo, experiência de Deus e prática religiosa. Os povos indígenas, quando preparam uma luta importante, pintam seus corpos, fazem danças e invocam seus espíritos para favorecer o empreendimento. A mística dos oprimidos, geralmente, é uma vivência comunitária de coragem e o fortalecimento de uma responsabilidade em rede.


A nossa mística está enraizada na fé. Acreditamos no projeto de Jesus. Ao revelar o incógnito de Deus no mundo, como os hóspedes na tenda de Abraão (Gn 18) e o forasteiro de Emaús (Lc 24,13ss), os povos indígenas e os pobres são sinais de Deus no tempo.


A utopia do Reino está presente em atitudes e relações, não em sistemas, instituições ou partidos. Tomamos partido, mas não somos partido. No caminho do Reino, os partidos têm, como as próprias Igrejas, um caráter transitório. A aproximação da utopia, como nova criação, está vinculada a uma diminuição institucional.


A mística tem pouca visibilidade. Não cabe na mídia. As tentativas miméticas de algumas Igrejas, recorrendo ao showbusiness da fé, são espiritualmente superficiais, teologicamente sectárias e eticamente vazias. Legitimam a violência em curso, porque escondem a cruz de Cristo e os rostos dos crucificados. Nós, porém, contemplamos nos crucificados da história nosso irmão e mestre, fundador crucificado e ressuscitado. Num ato de justiça definitiva, Deus rompeu com os sacrifícios humanos. Não precisamos fazer, nem pagar promessas. Precisamos converter-nos. E conversão significa, neste contexto, romper o círculo vicioso sacrificial e reassumir nosso compromisso com os povos indígenas, na lógica e na loucura da gratuidade que é a condição de um mundo sem violência.


Fonte: Cimi - Porantim
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