27/07/2004

Informe n.º 2 – II Encontro Continental dos Povos e Nacionalidades Indígenas das Américas


“A força de nossos antepassados, a sabedoria milenar e a nossa espiritualidade queremos aqui partilhar e manter para o futuro de nossos povos” (Maria Verata – Maia da Guatemala)


O ambiente está tomado de faixas, posters e cartazes num grande tecido de cores e mensagens das diversas organizações, povos e lutas aqui presentes. Esse tom plural é uma mostra do que se busca e da riqueza sócio, cultural e política aqui presente.


Abertura e Instalação  da 2° Cumbre Continental dos Povos e Nacionalidades Indígenas das Américas


Fizeram parte da mesa Leônidas Iza, presidente da CONAIE, Humberto Chulango presidente de ECUARINARI e Sebastião Manchineri, presidente de  da Coica.


Além desses foram convidados vários indígenas que estiveram fortemente empenhados na organização deste encontro, dentre eles Blanca Chancoso. Para ela esse 2° Encontro tem uma importância especial pelo seu caráter de autoconvocação, dando a possibilidade de uma participação ampla dos povos indígenas do Continente. Além disso, ele está sendo decidido e coordenado exclusivamente pelo movimento indígena e suas organizações demonstrando dessa forma um grau de autonomia que vai sendo conquistado.


Também foram convidados representantes indígenas mais expressivos de alguns países


Uma música com informações da 1a. Cumbre, realizada no México em 2001, deu seqüência ao cerimonial de abertura.


Palavras de Leolindas Iza – CONAIE


“Estamos muito alegres e muito contentes porque os povos originários do continente estão presentes para debater os graves problemas que envolvem nossos povos e traçar  políticas  que nos possibilitem avançar na construção de um futuro cada vez melhor para todos”.


“Estamos aqui como a família grande de América. Vamos discutir os grandes problemas que temos no Planeta”.


Fala de Sebastião Manchineri – Coica


“Quero destacar algo que para nós é muito significativo. Temos visto nos diversos lugares do mundo o desafio de continuarmos vivendo como povos distintos. Esse encontro representa o início da união de nossos povos para a busca de solução de nossos problemas. Vamos tratar de temas muito críticos e sensíveis como a Autonomia,  Território e Livre Determinação e Militarização….


Uma frase para a esperança da liberdade para continuarmos afirmando e sendo cada um aquilo que são nossos povos”.


Humberto Cholango – ECUARUNARI


“Irmãos e irmãs dos diferentes povos e nacionalidades de América, aqui da metade do mundo Equador, queremos deixar nosso abraço.


Queremos enxergar nosso caminho até onde podemos caminhar… Queremos unir as lutas de nossos povos, pois estamos ameaçados por governos débeis e processos de desenvolvimento, pois estamos sendo acusados de perigo para a democracia. Claro que somos um perigo quando não nos querem ouvir e respeitar…


Vamos dedicar este segundo Encontro a todos os lutadores, espíritos de nossos antepassados”.


Depois das breves palavras de abertura e saudação aos participantes indígenas e seus aliados dos quatro cantos do continente, foi feita a composição da mesa diretiva com representantes da América do Norte, Meso-América e América do Sul. Inicialmente essa composição indicada foi quase exclusivamente de homens, porém após uma observação crítica sobre a não presença das mulheres nesta composição, ela foi alterada contemplando esse aspecto. Aliás, as mulheres estão com uma grande e importante participação não apenas do ponto de vista numérico, mas especialmente sobre suas contribuições em todos os momentos do encontro.


Conferências


Antes de iniciar as colocações dos diversos conferencistas foi anunciado a chegada de delegações de mais alguns países como do Suriname e Guiana Inglesa. Também foram lidas mensagens de solidariedade e apoio vindas de diversas organizações.


Territórios, Autonomia e Livre Determinação


Sobre esse tema, que é amplo e central para os povos indígenas, Sebatião Manchineri destacou alguns aspectos, para que se aprofundem os desafios e se tracem estratégias de luta, nos debates e nos trabalhos que serão realizados nos diversos grupos.


“Território é o espaço que compartilhamos com outros seres vivos, é a liberdade incondicional para a manifestação de nossas espiritualidades, culturas e tradições. Não se pode pensar um desenvolvimento sustentável sem o vínculo que temos com os territórios com suas montanhas, águas, terras, floresta, subsolo e céu, onde identificamos nossas existências…


Quando falamos de nosso direito ao território não é apenas à terra que estamos nos referindo, falamos do exercício de um poder, assim como de um município, por exemplo, onde temos o direito de exercer nossa autonomia e direitos. Quer dizer, o direito de exercer o manejo e controle sobre o que ocorre neste espaço, como se usam e dispõem dele. É  a decisão, como coletividades, nas decisões que afetam esses territórios e os recursos ali existentes…


Se aplica dentro de nossos territórios nossas normas, costumes e tradições. Ali também podemos autoregular nossas formas de organização social e de representação, orientar e administrar nossa economia e aproveitamento das riquezas e recursos naturais ali existentes e buscar o equilíbrio ecológico e evitar a degradação ambiental.


A territorialidade como tal implica em nossa consolidação como povos no exercício do direito de ser livre e gozar a paz e nossos territórios, na consolidação de nossas autonomias”.


A livre determinação é o exercício de nossos próprios sistemas jurídicos e sociais a partir de nossa sabedoria e espiritualidade”.


No final de sua fala Sebastião ressaltou a importância de auto-afirmação da livre determinação dos povos indígenas a partir do reconhecimento da existência de cada um e do apoio mútuo entre todos. Isso implica no desafio de viver como povos distintos, mas ao mesmo tempo unidos. E isso não é fácil, especialmente neste momento em que nos encontramos bastante divididos, a partir dos interesses dos estados nacionais e dos grandes grupos multinacionais. “Com a lei ou sem a lei dos Estados vamos continuar existindo”, concluiu.


Diversidade de Plurinacionalidade


Luiz Macas, um dos importantes pensadores indígenas do Equador, destacou em sua fala a necessidade de contribuir, enquanto povos indígenas, com todos os povos da América Latina, fazendo avançar a reflexão e a prática da interculturalidade.


Depois explicitou  o que implica a  interculturalidade:


– Reconhecimento da diversidade de povos, culturas, processos históricos e identidades distintas dentro dos Estados nacionais;


– A consciência dos povos originários de suas origens, fortalecendo-se em suas particularidades. Só  identidades fortes e bem embasadas poderão contribuir a partir de seus valores e especificidades;


– A determinação de que nossas contribuições constituem-se como alternativas às estruturas estatais e organizativas existentes hoje. Estas vêm de outras concepções de mundo e de outros interesses. Por isso mesmo os povos indígenas têm sido um permanente questionamento às estruturas dos Estados e desse sistema econômico capitalista neoliberal.


O desafio é como falar de interculturalidade numa realidade marcada por um sistema dominante que esmaga e oprime os povos indígenas.


Outro questionamento levantado por Luiz Macas foi sobre o significado da democracia para os povos indígenas. Para ele os povos indígenas têm seus sistemas baseados em outros valores fundamentais como a reciprocidade e a busca do consenso.


Temos que valorizar as concepções vigentes em nossas comunidades para que continuem válidos e se fortaleçam. Por isso precisamos valorizar os saberes locais e identitários de cada povo.


Diante da atual crise dos Estados nacionais mais do que nunca nós povos originários deste continente somos atuais e se tornam cada vez mais importantes e até imprescindíveis as nossas contribuições para a construção de uma nova América, Abya Yala.


Direito dos Povos, Nacionalidades e Movimentos Sociais dentro do Fórum Social Mundial


Nícia Maldonada, presidente da  Confederação das Nacionalidades Indígenas da Venezuela, deu à sua fala uma conotação de militância no processo de mudanças e afirmação de novos valores e formas organizativas como o que vem ocorrendo na Venezuela. E é a partir desse seu engajamento que fez críticas às recentes posturas de ONGs que estão mais alinhadas com os poderes dominantes e interesses imperialistas. A mesma crítica dirigiu a organismos de cooperação internacional, cuja atuação tem mais servido para manter a dominação do que possibilitar processos de autonomia dos povos.


Nícia fez referência à grave situação de fragmentação, cooptação e domesticação dentro do movimento indígena em vários países. Criticou o processo de alinhamento e submissão de muitas organizações indígenas à lógica e interesses do sistema neoliberal. Diante disso, afirmou, é necessária uma postura forte e radical do movimento indígena do continente e nos diversos países. E concluiu com as palavras de ordem “Lutaremos contra o império! Façamos uma grande união, pois assim como nos dividiram para nos dominar, estaremos agora nos unindo para mudar essa situação”.


Militarização


O líder Kichwa do Equador Marlon Schati fez uma veemente denúncia sobre a militarização, especialmente na região de seu povo. “Depois de três anos de resistência pacífica, só nos resta resistir por todos os meios disponíveis contra as invasões, seja das companhias petroleiras, seja do Exército, que está defendendo os interesses dos grupos multinacionais” disse ele. E relatou a repressão, violências, prisões de que têm sido vitimas várias lideranças de seu povo.


Mencionou com muita indignação as recentes declarações do governo do Equador de que iria utilizar a força para garantir a exploração petroleira na Amazônia equatoriana.


Depois afirmou que “a militarização é uma grave ameaça aos povos indígenas e à nossa autonomia. Com o discurso de que somos uma ameaça à segurança e soberania nacional, invadem nossas terras, se estabelecem em nossos territórios para nos controlar e submeter”.


“Sob o pretexto de temor do Plano Colômbia, cuja atuação está bem longe de nossa região, estão militarizando essa área onde por séculos vivemos em paz”.


“Tratam de nos satanizar dizendo que nossos atos são terrorristas, dizendo-nos responsáveis pela desestabilização do governo. Agora estão jogando os militares contra nós, quando simplesmente queremos nossos direitos à vida”.


Também fez um desabafo lamentando as lideranças indígenas que traíram sua mãe e seus irmãos.


Concluiu fazendo uma convocação à união de todos os povos indígenas para defender seus direitos e construir uma nova realidade neste continente Abya Yala.


Um representante da Guatemala chamou atenção para o que denominou de “repressão sistemática e seletiva”, como tem acontecido na Guatemala durante 33 anos de guerra onde foram destruídas mais de quatrocentas aldeias.


“Fala-se de modernização do Exército, constituindo as guardas nacionais, com equipamentos modernos, instruções especiais e até de universidades especiais para os militares… A questão que fica é: a serviço de quem estarão, se não do grande capital, como as mineradoras, madeireiras… Essa modernização não é apenas para aprimorar suas estratégias de controle das populações a serviço do grande capital?”


Disse que o tema da militarização é muito grave neste momento, exigindo um pronunciamento continental contra esse processo.


As mulheres na construção de Nações Plurinacionais

Vicenta Chuma ressaltou a importância crescente da participação das mulheres nas lutas de seus povos, pois as mulheres indígenas sempre têm sido as guardiãs da sabedoria. Porém, diversos processos de dominação e migrações forçadas estão gerando morte e destruição dos povos indígenas. Alertou para o risco que representa a imposição de um certo enfoque da questão de gênero que estão querendo impor aos povos indígenas e que apenas servirá para enfraquecer as lutas mais amplas. “Estamos presentes e ativas nos levantes e nas marchas”, afirmou Vicenta, concluindo “assim como dizem – nunca mais um mundo sem nós os povos indígenas”, dizemos “nunca mais sem as mulheres os povos seremos completos”.


Passeata, inauguração e boas-vindas

Pelo meio da tarde todos os participantes partiram para uma marcha passeata pelas principais ruas de Quito. Com as faixas, bandeiras, cartazes mais de meio milhão de indígenas das Américas, em seus trajes coloridos, enfeites e ornamentos, e com muita emoção, revolta e entusiasmo gritaram pela nova América, dando vivas a Abya Yala e gritando contra a dominação, a Alca: “Não queremos e não nos dá vontade de ser uma colônia norte-americana”, gritavam. Em frente à Embaixada dos EUA havia um forte aparato militar, com tropa de choque. Ao passarem em frente gritaram apontando para a embaixada: “aí estão, aí estão os que roubam a nação”.


Outros gritos foram de: “aplaudam, aplaudam não deixem de aplaudir que todos os corruptos terão que morrer”.


A passeata chegou sem nenhum incidente até o anfiteatro da Universidade Politécnica Salesiana, onde se realizou um cerimonial religioso e de boas-vindas a todos os participantes. Também foram apresentadas encenações, músicas, danças…


Também foram feitos pronunciamentos pelas lideranças das organizações promotoras do Encontro, dentre outros.


Quito, Equador, 23 de julho de 2004.

Egon e Rosha

Fonte: Cimi
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