15/07/2004

Documento entregue ao Senador Delcídio Amaral

Campo Grande, 02 de julho de 2004


 


 


 


Ao


Senador Delcídio do Amaral


Os Governos Federal e Estadual, bem como o senhor e os demais membros que integram a Comissão do Senado, que elaborou o Relatório Parcial sobre Demarcação de Terras Indígenas, conhecem muito bem os gravíssimos problemas vivenciados pelos povos indígenas no Estado de Mato Grosso do Sul. O seu Relatório os retratam muito bem, em especial através dos depoimentos dos representantes indígenas, ouvidos pela Comissão (ver em seu Relatório, p.  69 a 73). Os representantes da FUNAI, do Ministério Público Federal e todas as pessoas de boa fé, ouvidas pela mesma Comissão reconhecem a situação precária em que vive a população indígena no Mato Grosso do Sul.


As nossas terras estão cada vez mais degradadas, a desnutrição permanece elevada, o alcoolismo, a droga e o suicídio vem adquirindo cada vez mais seguidores nas faixas etárias mais jovens, que não encontram qualquer perspectiva de futuro dentro das áreas indígenas, completamente superpovoadas. Os diversos programas de assistência desenvolvidos pelos Governos Federal e Estadual (cestas básicas, Fome Zero e outros), não têm conseguido reverter essa situação. E os problemas vêm se agravando.


Há, também, clareza (os depoimentos registrados em seu Relatório confirmam isso) que a raiz desses problemas todos está no fato de que os povos indígenas aqui localizados, foram, historicamente, esbulhados de forma vergonhosa de suas terras e confinados, compulsoriamente, em áreas de terra reconhecidamente insuficientes para a sua vida e a de seus filhos. Em alguns casos foram obrigados, de forma violenta, a entregar terras que eram tradicionalmente ocupadas por nossos antepassados, para serem tituladas em nome de colonos e fazendeiros que vinham chegando de fora. E isso aconteceu apesar de já existir legislação proibindo essa prática. Inúmeras violências aconteceram e que resultaram na morte de diversos líderes indígenas.


            O poder legislativo federal, do qual o senhor faz parte, vem reconhecendo esse atropelo histórico dos direitos indígenas à terra. Por isso, essa prática está claramente proibida. Depois veio a Lei 6001 – O Estatuto do Índio, de 1973, que preocupado com o mesmo problema, estabeleceu um prazo legal de cinco anos para o Governo Federal demarcar as terras indígenas, reconhecidas como tais pelos sucessivos textos constitucionais. A Constituição de 1988, reconhecendo a total omissão governamental no cumprimento de suas obrigações, estabeleceu, em seu art. 67, das Disposições Transitórias, um novo prazo de cinco anos para concluir a demarcação das terras indígenas. No entanto, outros 16 anos se passaram.


            Bem, frente a essa histórica omissão dos Governos Federais, não cumprindo as leis referentes aos direitos indígenas, a única opção que nos restou foi retomar algumas áreas das quais nossos pais foram expulsos. Mas essas reocupações, que os fazendeiros chamam de invasões, só aconteceram por causa da total omissão dos órgãos públicos responsáveis pelo cumprimento das leis.


            É importante dizer, senhor Senador, que com a sua eleição e a do Presidente Lula nós alimentávamos a certeza de que, finalmente, teríamos as nossas terras demarcadas, como está garantido historicamente pela legislação brasileira. Por isso, os índios no Estado votaram massivamente no senhor e no Presidente Lula. Bem, o senhor pode imaginar o desapontamento e a indignação que a leitura de seu Relatório provocou em todos nós. Mas sabemos, também, que o senhor está disposto a rever o texto do Relatório e que vai discutir melhor essas questões com o Presidente Lula. E isso nos animou a escrever esse documento. Vamos iniciar com algumas perguntas para depois fazer sugestões que a nosso ver podem ajudar a resolver, também, os problemas dos não-índios que compraram terras que por lei nos pertencem.


Perguntamos: se os povos indígenas foram, historicamente, expulsos de suas terras, mesmo quando já estava em vigor a Constituição de 1934, alguém praticou esse ato e deveria responder por ele. E, ainda, se as leis que garantiam os direitos indígenas foram sistematicamente não-cumpridas, algum órgão público foi displicente e não cumpriu com seu dever e deve ser responsabilizado por isso, como, aliás, o senhor mesmo destaca em seu Relatório. Por que os diversos prazos estabelecidos em lei nunca foram cumpridos, sem que alguém fosse responsabilizado por isso?  Alguém vendeu, indevidamente, terras que eram ocupadas pelos nossos avós e pais (como vem claramente destacado pelo depoimento do Dr Odilon – ver Relatório, p. 80). Quando isso acontece, a justiça intervém e o problema é corrigido. Por que esses princípios que regem o nosso sistema jurídico não valem quando se trata das terras indígenas, mas apenas quando se trata de títulos em mãos de fazendeiros? Porque, nesse caso, as terras das quais fomos expulsos ou retirados indevidamente pelos órgãos públicos (Serviço de Proteção aos Índios) puderam ser vendidas e quando constatado o erro, esse não pode ser corrigido, exatamente em nome da mesma lei. Que lei é essa que acoberta tão clara injustiça histórica, reconhecida pelos diversos legisladores, desde 1934, inclusive durante o regime militar, conforme atesta a Constituição de 1967? Esse problema nos parece mais grave porque, como diversos depoimentos registrados em seu Relatório atestam, foi o próprio Estado que expediu os títulos de propriedade sobre terras que deviam ser indígenas.


Não conseguimos entender, ainda, porque o seu Relatório afirma que os povos indígenas são uma ameaça à soberania do país, sugerindo a não-demarcação de terras na faixa de fronteira? Não admitimos que seja esquecida a importante participação de nossos antepassados nas lutas do Brasil para garantir suas fronteiras nessa região. Se sempre temos contribuído, exatamente, com a segurança das fronteiras, não entendemos porque, nesse momento, somos vistos como uma ameaça! Para onde o Governo pretende transferir as inúmeras aldeias que se localizam (e sempre ainda estiveram aí) nessa faixa de 50 km da fronteira que o senhor propõem como área não passível de demarcação de terras indígenas? Também não conseguimos entender porque as propriedades em mãos de particulares, nem sempre brasileiros, representam, para a Comissão, uma garantia maior das mesmas fronteiras, sabendo, especialmente que as terras indígenas permanecem domínio da União? Nunca os povos indígenas se opuseram a entrada em suas terras dos órgãos de repressão ao crime, como também não consta que sejam índios os responsáveis pelo crime organizado, denunciado por depoimentos registrados em seu Relatório.


            Senhor Senador, entendemos que as sugestões elencadas no final do seu Relatório, se transformadas em lei, vão de fato, significar o fim de qualquer esperança de que o Governo vá resolver nossos gravíssimos problemas de falta de terra.  Sem terras, que perspectiva terão os nossos filhos? A nossa esperança era que o Governo Lula cumprisse, finalmente, o que determina a Constituição Federal e não a alterasse, retirando os nossos direitos, conquistados com tanta luta. Mas, como sabemos de seu interesse em mudar suas propostas, vamos fazer algumas sugestões que consideramos viáveis. Todas elas foram citadas em diversos depoimentos que constam em seu Relatório.


1º Não podemos aceitar qualquer restrição no que se refere à demarcação de terras na faixa de fronteira. Os povos indígenas nunca foram e não podem ser visto como ameaça à segurança nacional. Isso é uma afronta à nossa história e não tem qualquer base de apoio que sustente essa proposta. Por isso, também, não entendemos porque nossos problemas devem ser tratados como questão de segurança nacional, não se justificando a participação do Conselho de Defesa Nacional em decisões sobre demarcação de terras indígenas. O mesmo vale sobre a proposta de inclusão do Senado nessa questão. Achamos que os senadores poderiam contribuir muito com o Governo na solução dos problemas indígenas, mas não através da aprovação dos processos de demarcação que exigem estudos e conhecimentos que os senadores, por falta de tempo, não tem como dominar. Sabemos, também, que muitos Senadores são contra nós, independente da lei.


2º De outra parte, entendemos a situação dos proprietários não-índios que adquiriram terras dos próprios Governos. Pelo que sabemos, essa é a situação dos títulos na maior parte dos atuais conflitos. Conforme reconhece o Dr. Odilon (ver Relatório p. 80), referindo-se ao Estado, ”vendeu o que não era do Estado, o que a União lhe havia transferido. Quem vende o que é dos outros, responde por evicção”, sugerindo que os proprietários prejudicados ajuízem contra o Estado e a União, que participou ativamente do processo de esbulho das terras indígenas. O mesmo argumento é retomado pelos Procuradores da República (ver p. 83), lembrando que o Estado de Mato Grosso considerou, equivocadamente, terras indígenas como devolutas, vendendo-as, com a conivência da União. Conclui o procurador, afirmando que se trata de responsabilidade civil, por prática de ato ilícito e por isso essas duas instâncias devem assumir a responsabilidade pela indenização das propriedades vendidas nessas condições. E o que é mais importante, não se trata de indenizar terras indígenas, mas de corrigir um ato envolvendo a venda indevida de um bem.


Aliás, não entendemos porque a Comissão não incorporou essa proposta, que nos parece sinalizar claramente uma solução para os que têm títulos de propriedade emitidos pelos Governos, permitindo o ressarcimento do valor pleno do imóvel e que é importante, sem qualquer mudança na Constituição Federal. Essa solução parece importante porque permitiria uma distinção entre títulos eventualmente fraudulentos e títulos de boa fé, aqueles dados pelos próprios Governos. E com isso a maior parte dos conflitos estariam resolvidas, recebendo os donos pelo valor da terra e os índios retornariam a terras das quais foram historicamente retirados.


Porém, como bem lembra o Dr. Odilon (ver p. 81), são necessários recursos para pagar essas demandas. Aliás, aí tem outra contradição em seu Relatório que não conseguimos entender. Se o que impede a implementação da iniciativa acima destacada, como afirma o Dr. Odilon, é a falta de recursos, esse problema não será resolvido por nenhuma mudança constitucional, como o Relatório sugere. Sabemos todos que a disponibilidade maior ou menor de recursos tem a ver com as prioridades e a vontade política dos Governos. É aí, senhor Senador, que o Congresso Nacional tem uma grande responsabilidade, de modo especial os parlamentares de nosso Estado. O que custaria fazer emendas anuais coletivas ao orçamento da União, visando a criação de um fundo destinado a indenização desses títulos. Isso permitiria estabelecer prazos possíveis de serem cumpridos e acompanhados pelos povos indígenas de nosso Estado. Por isso, Senador, a alegada necessidade de mudanças na Constituição parece-nos muito mais uma estratégia para dificultar cada vez mais o já difícil processo de demarcação das terras indígenas do que buscar efetivamente resolver conflitos.


Concluindo, queremos dizer ao senhor e pedimos que leve essa mensagem também ao Presidente Lula. Ainda temos esperança de não sermos novamente traídos por aquelas pessoas que vieram às nossas aldeias pedindo apoio e prometendo resgatar a enorme dívida histórica da demarcação das terras. As recomendações que constam em seu Relatório não só não ajudam a resolver qualquer um dos muitos problemas que vivenciamos, mas agravarão em muito os conflitos. Vamos seguir acompanhando com muito interesse suas iniciativas na esperança de que contribuam para acelerar, finalmente, o processo de demarcação de terras e assim superar os inúmeros conflitos em nosso Estado.


 


Atenciosamente.


 


 


 


Comissão de Representantes Indígenas do Mato Grosso do Sul


 


 


 

Fonte: Cimi
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