Representação do Cimi ao Procurador Geral da República pela Inconstitucionalidade do Decreto 4.412/2002
EXMO SENHOR PROCURADOR GERAL DA REPÚBLICA
CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO – CIMI, pessoa jurídica de direito privado, de caráter religioso e filantrópico, com sede no SDS Ed. Venâncio III, salas 309 à 314, Brasília – DF, representado, nos termos do que estabelece a alínea “a” do art. 11, c/c alínea “a” do art. 12 do Estatuto do CIMI, por seu Vice-Presidente, no exercício da Presidência, Senhor Saulo Ferreira Feitosa, brasileiro, professor, casado, residente e domiciliado em Recife – PE e estabelecido na Rua 13 de maio , 288, Santo Amaro, Recife – PE vem, por seu procurador, protestando desde já pela juntada do instrumento de procuração no prazo legal de 15 dias, tendo em vista o que lhe assegura o § 1º do art. 5º da Lei n.º 8906/94, com fulcro no que estabelece a alínea “a” do inciso XXXIV do art. 5º e no inciso VII do art. 103, ambos da Constituição Federal
REPRESENTAR
no sentido de que seja proposta Ação Direta de Inconstitucionalidade contra o Decreto nº 4.412, de 7 de outubro de 2002, publicado no DOU de 8 de outubro de 2002, pelas razões que passa a expor:
I. O ato normativo impugnado
O Presidente Fernando Henrique Cardoso editou o Decreto nº 4.412, de 7 de outubro de 2002, no qual “dispõe sobre a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal nas terras indígenas e dá outras providências”.
Em seu art. 1º, o Decreto estabelece que:
“No exercício das atribuições constitucionais e legais das Forças Armadas e da Polícia Federal nas terras tradicionalmente ocupadas por indígenas estão compreendidas:
I – a liberdade de trânsito e acesso, por via aquática, aérea ou terrestre, de militares e policiais para a realização de deslocamentos, estacionamentos, patrulhamento, policiamento e demais operações ou atividades relacionadas à segurança e integridade do território nacional, à garantia da lei e da ordem e à segurança pública;
II – a instalação e manutenção de unidades militares e policiais, de equipamentos para fiscalização e apoio à navegação aérea e marítima, bem como das vias de acesso e demais medidas de infra-estrutura e logística necessárias;
III – a implantação de programas e projetos de controle e proteção da fronteira”
O art. 2º do Dec. 4412/2002 dispõe sobre procedimentos que as Forças Armadas e a Polícia Federal deverão adotar para a efetivação do que é previsto no inciso II do art. 1º do mesmo Decreto:
“Art. 2º As Forças Armadas, por meio do Ministério da Defesa e a Polícia Federal, por meio do Ministério da Justiça, deverão encaminhar previamente à Secretaria-Executiva do Conselho de Defesa Nacional plano de trabalho relativo à instalação de unidades militares e policiais, referidas no inciso II do art. 1º, com as especificações seguintes:
I – localização;
II – justificativa;
III – construções, com indicação da área a ser edificada;
IV – período, em se tratando de instalações temporárias;
V – contingente ou efetivo.
Parágrafo único. A Secretaria-Executiva do Conselho de Defesa Nacional poderá solicitar manifestação da Fundação Nacional do Índio – FUNAI acerca de eventuais impactos em relação às comunidades indígenas das localidades objeto das instalações militares ou policiais”
Por fim, o art. 3º do referido Decreto prevê, na sua parte final que as Forças Armadas e a Polícia Federal poderão se envolver na “superação de eventuais situações de conflito ou tensão envolvendo índios ou grupos indígenas”.
II. O cabimento de argüição de inconstitucionalidade do Decreto n.º 4412/2002
O Supremo Tribunal Federal tem admitido o controle concentrado da constitucionalidade de quaisquer atos normativos, desde que tenha caráter autônomo, ou seja não consistam em regulação de qualquer norma infra-constitucional.
O Dec. 4412/2002 é exemplo de ato normativo federal autônomo, na medida em que não decorre de qualquer norma infra-constitucional.
Ao contrário, inova o ordenamento jurídico, atentando contra o princípio constitucional da separação de poderes, por invadir competência legislativa do Congresso Nacional, por força do que estabelece o § 6º do art. 231 da CF, conforme se demonstrará à seguir, evidenciando flagrante inconstitucionalidade material e formal.
Apenas para efeito de esclarecimento, importa anotar que os dispositivos legais e constitucionais que nos quais o Exmo Senhor Presidente da República se fundamenta para a edição do Decreto ora impugnado, não prevêem qualquer medida normativa de natureza regulamentar, a legitimar a previsão de que possa praticar atos que impliquem na posse e na ocupação, temporária ou definitiva de qualquer terra tradicionalmente ocupada por índios.
A Lei n.º 6.001/73, que dispõe sobre o Estatuto do Índio não prevê essa possibilidade, nem o art. 15 da Lei Complementar n.º 97, de 9 de junho de 1999, por dispor sobre o emprego das Forças Armadas, conforme de depreende de seu texto, à seguir transcrito:
“ O emprego das Forças Armadas na defesa da Pátria e na garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem, e na participação em operações de paz, é de responsabilidade do Presidente da República, que determinará ao Ministro de Estado da Defesa a ativação de órgãos operacionais, observada a seguinte forma de subordinação:
I – diretamente ao Comandante Supremo, no caso de Comandos Combinados, compostos por meios adjudicados pelas Forças Armadas e, quando necessário, por outros órgãos;
II – diretamente ao Ministro de Estado da Defesa, para fim de adestramento, em operações combinadas, ou quando da participação brasileira em operações de paz;
III – diretamente ao respectivo Comandante da Força, respeitada a direção superior do Ministro de Estado da Defesa, no caso de emprego isolado de meios de uma única Força.
§ 1º Compete ao Presidente da República a decisão do emprego das Forças Armadas, por iniciativa própria ou em atendimento a pedido manifestado por quaisquer dos poderes constitucionais, por intermédio dos Presidentes do Supremo Tribunal Federal, do Senado Federal ou da Câmara dos Deputados.
§ 2º A atuação das Forças Armadas, na garantia da lei e da ordem, por iniciativa de quaisquer dos poderes constitucionais, ocorrerá de acordo com as diretrizes baixadas em ato do Presidente da República, após esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, relacionados no art. 144 da Constituição Federal”.
Por sua vez, o inciso III do § 1º do art. 144 da CF, dispõe sobre a destinação da Polícia Federal para “exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras”.
Não se trata, de investigar os atos normativos acima relacionados, para aferir-se da inconstitucionalidade das normas impugnadas. Busca-se apenas esclarecer que o conteúdo das normas invocadas pela autoridade da qual emanou ou ato impugnado não enseja qualquer regulamentação por Decreto.
Por tratar-se, portanto de ato normativo autônomo, uma vez que não regulamenta qualquer dispositivo infraconstitucional, cabe a argüição da inconstitucionalidade dessas normas no Supremo Tribunal Federal.
III. A inconstitucionalidade dos incisos II e III do art. 1º , do art. 2º e de parte do art. 3º do Decreto n.º 4.412/2002
1. Inciso II do art. 1º e art. 2º do Dec. 4412/2002
É inaceitável, que o Chefe do Poder Executivo, desconsiderando a tramitação de proposições legislativas de natureza complementar à Constituição, adote, por Decreto previsões que atentam expressamente contra o disposto no § 6º do art. 231 da CF.
Os constituintes originários, ao promulgarem a Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988, estabeleceram, no referido dispositivo constitucional serem nulos e extintos os efeitos jurídicos de quaisquer atos que visem a posse, a ocupação ou o domínio das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos existentes nessas terras, salvo “relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar”.
Dessa forma, o disposto no inciso II do art. 1º do Decreto nº 4412/2002, e por via de conseqüência, seu art. 2º são flagrantemente inconstitucionais, já que somente uma lei complementar poderá prever os atos previstos neste dispositivo do Decreto Presidencial, como ato de relevante interesse da União, validando sua posse e ocupação sobre as terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas.
2. Inciso III do art. 1º do Dec. 4412/2002
No que se refere ao disposto no inciso III do art. 1º do Decreto n.º 4412/2002, suscita-se sua inconstitucionalidade, sob o mesmo fundamento sustentado em relação ao disposto no inciso II do mesmo dispositivo do Dec. 4412/2002.
Constituindo-se, “a implantação de programas e projetos de controle e proteção de fronteira” em atos administrativos que impliquem em limitação da posse da terra tradicionalmente ocupada pelos índios, somente quando esta hipótese for expressamente prevista na lei complementar a que se refere a exceção prevista no § 6º do art. 231 da CF, sua concretização poderá ser concebida sob o aspecto jurídico-constitucional.
Portanto, trata-se de norma autônoma atentatória ao disposto no § 6º do art. 231 da CF, bem como ao princípio constitucional da separação dos poderes
3. Parte final do art. 3º do Dec. 4412/2002
No que se refere ao envolvimento das Forças Armadas e da Polícia Federal na “superação de eventuais situações de conflito ou tensão envolvendo índios ou grupos indígenas”, destaca-se o vício de inconstitucionalidade, já que essa matéria somente por lei pode vir a ser regulada.
O correto, inclusive conforme consta na Lei nº 6001/73, consiste no tratamento de questões dessa natureza pelo órgão da administração pública federal encarregado e especializado no trato das questões indígenas, ou seja a Funai.
Somente em situações limites e ainda assim, muito bem caracterizadas e fundamentadas, num caso específico pela autoridade administrativo-indigenista é que uma providência dessa natureza poderia ser analisada, sendo, por isso desnecessário qualquer Decreto para dispor sobre atribuições constitucionais e legais. Para tanto, a Lei nº 6001/73, em seu art. 34 já prevê que:
“O órgão federal de assistência ao índio poderá solicitar a colaboração das Forças Armadas e Auxiliares e da polícia federal, para assegurar a proteção das terras ocupadas pelos índios e pelas comunidades indígenas”.
Por oportuno, vale lembrar que a Lei nº 6.001/73 dispôs em seu art. 20, que:
“Em caráter excepcional e por qualquer dos motivos adiante enumerados, poderá a União intervir, se não houver solução alternativa, em área indígena, determinada a providência por decreto do Presidente da República.
§ 1º A intervenção poderá ser decretada:
a) para pôr termo à luta entre grupos tribais;
…”.
Das medidas previstas no § 2º do art. 20 da Lei nº 6001/73, cumpre observar que as hipóteses de deslocamento temporário e a remoção de comunidades indígenas relacionadas nas alíneas “b” e “c” desse dispositivo legal, bem como o disposto nos §§ 3º e 4º do mesmo dispositivo legal não foram recepcionados pelo texto constitucional de 1988, por força do que estabelece o § 5º do art. 231, segundo o qual:
“É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ad referendum do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco”.
Nessa mesma linha de argumentação, a própria hipótese de intervenção prevista no art. 20 da Lei nº 6001/73 se revela incompatível com o disposto no § 6º do art. 231 da CF, na medida em que a intervenção consiste em modalidade de ocupação de uma terra tradicionalmente ocupada por índios, salvo se as hipóteses previstas no referido dispositivo legal forem relacionadas na Lei Complementar a que se refere o mesmo § 6º do art. 231 da CF.
Este aspecto, portanto enfatiza a inconstitucionalidade da parte final do art. 3º do Decreto n.º 4.412/2002.
IV. Conclusão
Do exposto, o Conselho Indigenista Missionário – CIMI requer que o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, no exercício da legitimidade constitucional aprecie a possibilidade de propor a competente Ação Direta de Inconstitucionalidade contra os incisos II e III do art. 1º, o art. 2º e o seguinte período do art. 3º: “superação de eventuais situações de conflito ou tensão envolvendo índios ou grupos indígenas”, todos do Decreto n.º 4.412, de 7 de outubro de 2002, publicado no DOU de 8 de outubro de 2002, requerendo-se a suspensão liminar de seus efeitos jurídicos.
N. Termos
E. Deferimento
Brasília, 11 de outubro de 2002