21/06/2004

Decisões – Acórdão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF 1ª Região)

 

APELAÇÃO CÍVEL Nº 1999.01.00.030341-8/BA

Processo na Origem: 9310005157

RELATOR(A) : JUIZ EVANDRO REIMÃO DOS REIS (CONV.)

APELANTE : APOLINÁRIO ALVES DA SILVA E OUTROS(AS)

ADVOGADO : DALMO MAGALHÃES ALVES

APELADO : FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO – FUNAI

PROCURADOR : ANA MARIA DE CARVALHO MOREIRA

APELADO : COMUNIDADE INDÍGENA PATAXO HÃHÃHÃE

ADVOGADO : VALDIR FARIAS MESQUITA

APELADO : UNIÃO FEDERAL

PROCURADOR : AMAURY JOSÉ DE AQUINO CARVALHO

EMENTA

AÇÃO POSSESSÓRIA – COMUNIDADE INDÍGENA PATAXÓ HÃHÃHÃE – PROVA DE OCUPAÇÃO IMEMORIAL – ARTIGO 231, PARÁGRAFO 2º, DA CARTA POLÍTICA – REINTEGRAÇÃO.

1. O artigo 231, parágrafo 2º, da Constituição Federal, consagrou a posse permanente aos silvícolas das terras tradicionalmente ocupadas, mantendo-se sua perenidade para sempre ao projetar o verbo "destinam-se".

2. Por isso, ainda que tenham os índios perdido a posse por longos anos, por configurar direito indisponível, podem postular sua restituição, desde que ela, obviamente, decorra de tradicional (imemorial, antiga) ocupação, equivalente a verdadeiro pedido reivindicatório da coisa.

3. Comprovado que os silvícolas ostentavam posse imemorial, é procedente a reintegração.

4. Apelação desprovida.

ACÓRDÃO

Decide a 3ª Turma Suplementar do TRF – 1ª Região, à unanimidade, negar provimento à apelação, nos termos do voto do Exmo. Sr. Juiz Relator.

Brasília (DF), 03 de abril de 2002.

Juiz EVANDRO REIMÃO DOS REIS

Relator

RELATÓRIO

O EXMO. SR. JUIZ EVANDRO REIMÃO DOS REIS: Trata-se de apelação contra sentença que julgou parcialmente procedente o pedido, deferindo a manutenção de posse em virtude da sua natureza constitucional.

Às fls. 1.341/1.347, os apelantes alegam, em síntese, que ocupavam as terras em litígio, tendo em vista contrato de arrendamento realizado na década de 50, estando na posse mansa e pacífica dessas áreas por período superior a 40 anos, devendo, portanto, ser considerados os legítimos possuidores das terras.

Contra-razões da Fundação Nacional do Índio às fls. 1.356/1.359.

Contra-razões da União Federal às fls. 1.366/1.369.

Parecer do Ministério Público Federal, às fls.1.377/1.384, pelo improvimento do recurso.

É o relatório.

VOTO

O EXMO. SR. JUIZ EVANDRO REIMÃO DOS REIS: O direito se faz com prova e não com argumentos.

A impugnação recursal, impregnada de forte carga emocional, não conseguiu infirmar a sentença.

Estatui o artigo 231, parágrafo 2º, da Constituição Federal:

"Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

§ 2º – As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes." (grifou-se).

Assim a interpretação do transcrito dispositivo impõe afirmar que a norma supralegal, de forma explícita, consagrou a posse permanente aos silvícolas das terras tradicionalmente ocupadas, (isto é, antigas, no passado), mantendo-se sua perenidade para sempre ao projetar o verbo "destinam-se".

Essa compreensão, que se extrai de indiscutível lógica, permite asseverar que os índios, ainda que tenham perdido a posse por longos anos, têm indiscutível direito de postular sua restituição, desde que ela decorra de tradicional (antiga, imemorial) ocupação. Tal direito deriva da própria situação singular da sua posse reconhecida pela ordem constitucional, daí que inaplicáveis as regras de direito civil à mesma.

Essa particular e significativa outorga de proteção possessória equivale, sem sombra de dúvida, a verdadeiro pedido reivindicatório.

Por isso, para a procedência da pretensão basta somente a prova cabal da ocupação imemorial, o que foi comprovado nos autos, fls. 692, 693, 694, 695, 707/711, 1240 e 1241, valendo, apenas a título de ilustração, consignar, fls. 1272/1273:

"…que o Serviço de Proteção aos índios- SPI, existente antes da Funai tinha o costume de arrendar terras indígenas para particulares e foi exatamente por tal circunstância que os fazendeiros ingressaram naquelas terras; que o arrendamento era pago ao Chefe do Posto e posteriormente prestava contas às inspetorias; que já trabalhou como chefe de Posto indígena e naquela época recebia valores referentes aos arrendamentos; que conhece o local denominado córrego do mundo novo; que antigamente a área não era nominada; que tem certeza que a área de litígio fica dentro da reserva indígena; que conheceu a reserva em 1.952 e trabalhou na mesma em 1.974 e 1.975; que naquela época morava na referida reserva; que na época em que o declarante trabalhou na reserva existia índios espalhados para todo canto, dentre eles ficou conhecendo Jorge, Amaro, Hipólito, Desidério e Samado que esta aqui presente; que conheceu a índia Barretá e o índio Honrak; que os mesmos viviam na mata; que a alimentação de tais índios era servida pelo próprio declarante; que existia no local os Postos denominados Caramurú, mundo novo e Paraguaçú; que o posto Caramurú ficava perto da cidade denominada Itajú do Colônia; que do posto dava para ver a cidade; que do posto Caramurú ao Mundo Novo deve dar aproximadamente 08 léguas, sendo que cada légua corresponde 06 KM; que em todo trecho de um posto a outro tinha índios habitando; que os fazendeiros pagavam os arrendamentos na sede do posto Caramurú; que tanto a importância recebida quanto os documentos de arrendamentos eram entregues na Sede da Funai; que neste momento o declarante apresenta um contrato firmado, acompanhado de dois recibos juntamente por ele assinado datados de 31.05.1975, cuja juntada é determinada por este Juízo; que o SPI fez barragens nos rios e também cemitérios nas reservas indígenas; que as barragens e os cemitérios ficam nas fazendas atualmente demandadas."

No particular, irrepreensível o parecer ministerial fls. 1.317/1.321:

"Diversas são as provas da tradicional presença indígena na região. Dentre elas, de maneira incontrastável, temos certa a existência, na área sub judice, do posto Indígena Paraguassú, onde foram desenvolvidos sérios trabalhos pelo Ministério da Guerra em 1937 (fls. 85 a 97), bem como por pesquisadores de reconhecida capacidade. Um deles, o renomado Darcy Ribeiro, na sua obra ‘Os índios e sua civilização’, esclarece que os Pataxó localizavam-se no sul da Bahia, afirmando, textualmente, que ‘… habitavam a região próxima ao município de Pau Brasil, município este que, antes de emancipar-se em 1962 (lei estadual 1681) pertencia ao de Camacã, que , por sua vez, já pertencia à Canavieiras, vizinho do de Belmonte.’ E conclui: ‘As reservas dos Postos Indígenas Caramuru e Catarina Paraguassú abrangiam as terras dos Municípios de Itabuna e Canavieiras, entre os rios Colônias e Pardo. O município de pau Brasil está situado entre estes dois rios.’

No mesmo sentido, asseverando que a área das fazendas objeto desta ação se localizam dentro da Reserva Indígena, fazem prova os Laudos Antropológicos (bem assim o parecer respectivo) e Topográfico trazidos à colação pela autora, às folhas 719 a 805 e 807 a 1118, notadamente nas respostas aos quesitos em que o perito informa: ‘A área delimitada pelo próprio Estado reconhece a existência deste território, tendo como marcos básicos ao norte e ao sul, respectivamente os rios Colônia e Pardo.’ (fl.727), bem assim que foram encontrados ‘vestígios claros de cemitério na área do Posto Caramurú…’. Concludentemente, afirma que foram encontrados no município de Mundo Novo vestígios da sede do Posto, edificação da antiga casa de força, barragem e pés de café (fl.769); e que a área da Serra e do Riacho do Mundo Novo é comprovadamente uma antiga zona de ocupação dos indios Pataxó e Kamakã.’ (fl.768).

Os próprios réus, na vã tentativa de infirmar a versão verdadeira, são flagrantemente paradoxais em seus argumentos. Num dado momento, chama os autores de falsos índios. Em outro, todavia, os reconhece como ‘aborígenes’, identificando-os por tribos e admitindo, inclusive, que ‘são incontáveis os registros históricos que provam de maneira cabal e indiscutível, que índios de diversas tribos como Pataxós, Baená, Kiriri ou Sapuyá…’ (grifos nossos). No mesmo parágrafo, diz ainda que estes jamais se fixaram em caráter permanente na área objeto do litígio permanente e que os mesmos apenas perambulavam, vagueavam na mesma. Certamente, apenas fizeram tais colocações, absolutamente favoráveis ao autor, por ignorar que, de fato, algumas tribos indígenas são nômades, e vivem nos lugares em que o meio ambiente lhe proporcione melhores condições de pesca, caça, desenvolvimento de suas atividades culturais e de trabalho, etc; o que torna impossível exigir a permanência das comunidades em determinado lugar. Reconhecendo essa peculiaridades – tardia, mas felizmente -, a nossa Carta Política, em seu artigo 231, assegurou aos índios a sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, além dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam.

Analisemos, enfim, os importantes depoimentos orais colhidos.

Maria Hilda B. Paraíso, ouvida às fls. 242 a 244 e 692 a 693, que esteve na área objeto do litígio por várias vezes entre os anos de 1976 e 1986, afirma: ‘pelos estudos feitos, e pela sua presença na área, diversas vezes, que havia índios na região em litígio quando da chegada de Gener Pereira Rocha…’, que ‘…encontrou ainda em pé dois postos indígenas, o do Mundo Novo, que estava ocupado por fazendeiros, e o Posto Indígena Caramuru, …’, e ainda, com absoluta segurança, assevera ‘…que afirma que os quatro imóveis objeto desta ação com certeza estão na região do Mundo Novo, pois o limite leste da reserva indígena passa a muitos quilômetros do Mundo Novo…’.

Os demandados, certamente receosos da verdade que se apresenta, arquem a suspeição desta testemunha, sob a alegação de que, em virtude da sua formação como antropóloga, estaria comprometida com a causa indígena. Longe de serem imprestáveis ou eivadas de qualquer falsidade, as declarações desta testemunha, devidamente compromissada, justamente por tratar-se de uma antropóloga, tem um valor incomparável, pois comprometida, isto sim, com os fatos por ela observados in loco.

Descrédito merecem, sim, as declarações das testemunhas dos réus, a exemplo de Jose Pedro Lira (fl.710), que afirmaram jamais ter visto índios – ou, segundo aquele, ‘pessoas que se dizem índios’ – naquela região de Pau Brasil-Mundo Novo/BA, antes da ocupação da fazenda São Lucas. E assim manifestam-se, não por necessariamente estarem mentindo, mas por trazerem consigo uma imagem de índio que, em face do acentuado aculturamento decorrente da aproximação com a civilização, não mais corresponde a da imensa maioria dos membros de várias comunidades indígenas.

Decisivo também o depoimento de José Silveira de Souza (fl. 1240 a 1241), antigo chefe de posto indígena da Reserva dos Pataxó Hãhãhãe, onde residiu enquanto lá trabalhava, o qual afirmou que ‘a área em litígio está dentro da reserva pertencente à comunidade indígena Pataxó Hãhãhãe’; ‘que a área ocupada pelos requeridos fica dentro da reserva indígena’; ‘que o Serviço de Proteção aos índios- SPI, existente antes da FUNAI tinha o costume de arrendar terras indígenas para particulares e foi exatamente em tal circunstância que os fazendeiros ingressaram naquelas terras’; que ‘…recebia valores referentes aos arrendamentos;’; que ‘conheceu a reserva em 1.952 e trabalhou na mesma em 1.974 e 1.975’; ‘que na época em que o declarante trabalhou na reserva existia índios espalhados para todo canto.’

Vale ressaltar, ademais, que os réus, em seus depoimentos (fls.246 a 248), sem exceção, informaram a esse digno Juízo que não se preocuparam em conhecer a cadeia sussessória das fazendas das quais alegam ser ‘proprietários’, demonstrando, senão a falta de cuidado normal que negócios desta natureza requerem, pelo menos, a certeza de que seriam vitoriosos em qualquer eventual litígio decorrente, haja vista a fragilidade dos índios.

Os depoimentos das testemunhas dos réus também são úteis para a verificação da procedência do pedido inicial, senão vejamos.

Nelson de Freitas Lima (fl.707), embora declare jamais ter se encontrado com índios naquela região , informa que, quando chegou ao município de Pau Brasil, aos 10 anos de idade, ouviu falar na existência de uma área que seria considerada reserva indígena, não sabendo o nome de tal reserva ou seus limites; mais adiante, entretanto, esclarece que ainda existe uma área conhecida como reserva indígena, e que as fazendas dos réus ficam situadas nessa área. Por sua vez, José Araújo Cardoso (fl.708), declara que já ouviu falar na existência de um posto indígena, no município de Itaju do Colônia, há muitos anos, não sabendo se ele ainda existe. No mesmo sentido, relata a testemunha Jose Vieira da Silva (fl.711) que ‘já ouviu falar que as fazendas dos réus estão na área da reserva indígena, mas também ouviu dizer que essas terras foram tituladas do Governo de Roberto Santos."

Destarte, é inevitável afirmar as provas demonstram a ocupação tradicional (imemorial) dos índios Pataxó HãHãHãe, sendo imperativo sua reintegração na posse dos imóveis reclamados.

Pelo exposto, nego provimento à apelação.

É como voto.

CERTIDÃO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 1a. REGIÃO

SECRETARIA JUDICIÁRIA

CENTRAL EXECUTIVA DE APOIO PROCESSUAL

7ª Sessão Ordinária do(a) TERCEIRA TURMA SUPLEMENTAR

Pauta de: 06/03/2002 Julgado em : 03/04/2002 AC 1999.01.00.030341-8 / BA

Relator: Exmo (a). Sr(a). JUIZ EVANDRO REIMÃO DOS REIS (CONV.)

Revisor: Exmo (a). Sr(a).

Presidente da Sessão: Exmo(a). Sr(a). Juiz(a) ANTÔNIO SÁVIO DE OLIVEIRA CHAVES

Proc. Reg. da República: Exmo(a). Sr(a).Dr(a). FRANKLIN DA COSTA

Secretário(a): TAMARA SOCOLIK

APTE :APOLINARIO ALVES DA SILVA E OUTROS(AS)

ADV :DALMO MAGALHAES ALVES

APDO :FUNDACAO NACIONAL DO INDIO – FUNAI

PROCUR :ANA MARIA DE CARVALHO MOREIRA

APDO :COMUNIDADE INDIGENA PATAXO HA HA HAE

ADV :VALDIR FARIAS MESQUITA

APDO :UNIAO FEDERAL

PROCUR :AMAURY JOSE DE AQUINO CARVALHO

Nº de Origem: 93.10.00515-7 Vara:

Justiça de Origem: JUSTICA FEDERAL Estado/Com.: BA

Sustentação Oral

……………………………………XX…………………XX………..

Certidão

Certifico que a(o) egrégia (o) TERCEIRA TURMA SUPLEMENTAR, ao apreciar o

processo em epígrafe , em Sessão realizada nesta data , proferiu a seguinte decisão:

A Turma, à unanimidade, negou provimento à Apelação, nos termos do voto do(a) Exmo(a) Senhor(a) Juiz(a) Relator(a).

Participaram do Julgamento os(as) Exmos(as) Sr.(as) Juízes ANTONIO SAVIO DE OLIVEIRA CHAVES e LEÃO APARECIDO ALVES (CONV.).

Brasília, 03 de abril de 2002.

TAMARA SOCOLIK
Secretário(a)

Publicado no DJ de 29.05.2002.
Transitou em julgado em 25.07.2002.

Fonte: Cimi - Assessoria Jurídica
Share this: