21/06/2004

Mandado de Segurança no Amapá, por Paulo Machado Guimarães

EXMO. SENHOR JUIZ FEDERAL DA VARA DA SEÇÃO JUDICIÁRIA DO ESTADO DO AMAPÁ

 

 Comunidade Indígena Palikur, representada por seu Cacique, Sr Emiliano Iaparrá, brasileiro, solteiro, residente e domiciliado na Aldeia Kumenê, localizada na terra indígena Uaçá, Oiapoque – AP;Comunidade Indígena Karipuna do Incruso, representada por seu Cacique, Sr José dos Anjos Aniká, brasileiro, solteiro, residente e domiciliado na Aldeia Incruso, localizada na terra indígena Uaçá, Oiapoque – AP;Comunidade Indígena Karipuna do Espírito Santo, representada por seu Cacique, Sr Alírio dos Santos, brasileiro, residente e domiciliado na Aldeia Espírito Santo, localizada na terra indígena Uaçá, Oiapoque – AP;Comunidade Indígena Manga Karipuna, representada por seu Cacique, Sr Luciano dos Santos, brasileiro, residente e domiciliado na Aldeia Manga, localizada na terra indígena Uaçá, Oiapoque – AP;Comunidade Indígena Kumarumã Galiby Marworno, representada por seu Cacique, Sr Paulo Roberto da Silva, brasileiro, residente e domiciliado na Aldeia Kumarumã, localizada na terra indígena Uaçá, Oiapoque – AP;Comunidade Indígena Karipuna Paxiuhal, representada por seu Cacique, Sr Felipe Aniká, brasileiro, residente e domiciliado na Aldeia Paxiuhal, localizada na terra indígena Uaçá, Oiapoque – AP;Comunidade Indígena Karipuna Japim, representada por seu Cacique, Sr Ivam Japarra dos Santos, brasileiro, residente e domiciliado na Aldeia Japim, localizada na terra indígena Uaçá, Oiapoque – AP;Comunidade Indígena Karipuna do Estrela, representada por seu Cacique, Sr Alair Sebastião dos Santos, brasileiro, residente e domiciliado na Aldeia Estrela (Km 70), localizada na terra indígena Uaçá, Oiapoque – AP;Comunidade Indígena Karipuna Cariá, representada por seu Cacique, Sr João dos Santos, brasileiro, residente e domiciliado na Aldeia Cariá, localizada na terra indígena Uaçá, Oiapoque – AP;Comunidade Indígena Karipuna Kuripi, representada por seu Cacique, Sr Zacarias dos Santos Oliveira, brasileiro, residente e domiciliado na Aldeia Kuripi, localizada na terra indígena Uaçá, Oiapoque – AP;Comunidade Indígena Palikur de Tawari, representada por seu Cacique, Sr Emílio Leôncio, brasileiro, residente e domiciliado na Aldeia Tawari de Urucauá, localizada na terra indígena Uaçá, Oiapoque – AP;Comunidade Indígena Karipuna, representada por seu Cacique, Sr Ramos dos Santos, brasileiro, residente e domiciliado na Aldeia Santa Isabel, localizada na terra indígena Uaçá, Oiapoque – AP;Comunidade Indígena Karipuna, representada por sua Cacique, Srª Fátima Vidal Barbosa, brasileira, casada, residente e domiciliada na Aldeia Kunanã, localizada na terra indígena Juminá, Oiapoque – AP; e aAssociação dos Povos Indígenas de OiapoqueAPIO, pessoa jurídica de direito privado, situada na cidade de Oiapoque – representada por sua Presidente, Srª Vitória Santos dos Santos, brasileira, residente e domiciliada na cidade de Oiapoque, Município de Oiapoque – AP;

vêm por seu procurador (docs 1 à 14), com base no que lhes assegura os incisos LXIX e LXX, "b" do art. 5º, o inciso XI do art 109 e o art. 232 da Constituição Federal e a Lei nº 1.533, de 31 de dezembro de 1951 impetrar o presente.

MANDADO DE SEGURANÇA

contra ato omissivo do Chefe do Núcleo de Educação Escolar Indígena da Secretaria de Educação do Estado do Amapá, Sr Davi dos Santos Serrão, estabelecido na Secretaria de Educação do Estado do Amapá, na cidade de Macapá – AP, bem como do Presidente do Conselho de Educação Escolar Indígena do Estado do Amapá, do Secretário de Educação do Estado do Amapá e na condição de litisconsorte passivo necessário, o Estado do Amapá, pelas razões que passam a expor:

  1. O fatos

Acolhendo representação da Associação dos Povos Indígenas do Oiapoque, do Administrador Regional da Funai em Oiapoque, do Conselho Indigenista Missionário e por mais cento e dezenove lideranças indígenas, que representam suas comunidades, o Conselho de Educação do Estado do Amapá autuou o pedido de apreciação e aprovação de uma Proposta Curricular para as escolas indígenas, nas Aldeias Karipuna e Galibi-Marworno, no Município de Oiapoque (doc. 15), protocolada em 25 de junho de 1998, formando o Processo nº 73/98 (doc. 16).

Em 25 de agosto de 1998, o Presidente do Conselho de Educação Escolar do Estado do Amapá, Prof. Paulo Roberto A. Melo remeteu o Processo nº 73/98 para o Secretário de Educação, recomendando seu envio "à DIOE".

Em 9 de setembro de 1998, o Processo foi remetido para uma equipe de análise (fls. 35). Em 2 de dezembro do mesmo ano, a Análise da Proposta Curricular foi encaminhada para as escolas indígenas do Município do Oiapoque. E por fim, na mesma data os autos foram encaminhados ao Gabinete do Secretário de Educação do Estado do Amapá (fls. 35 – proc. 73/98).

Ainda no mesmo dia 22 de dezembro de 1998, o Secretário de Educação do Estado do Amapá, Dr Clécio Luis V. Vieira, por intermédio do Ofício nº 07354/98-GAB/SEED, encaminhou o Processo ao Presidente do Conselho Estadual de Educação, Dr Paulo Roberto de Andrade Melo com a "Análise preliminar da proposta curricular para as escolas indígenas Karipunas e Galibi Marworno no Município de Oiapoque", na qual a Divisão de Inspeção e Organização Escolar – DIOE conclui que:

"A equipe de análise é favorável ao encaminhamento desta Proposta ao Conselho Estadual de Educação para apreciação e emissão de parecer".

Em 26 de janeiro de 1999, a Assessora Técnica Elmira Fonseca Magalhães, do Cnselho Estadual de Educação, concluindo não existir manifestação do Núcleo de Educação Indígena – NEI e da Divisão Técnico Pedagógica, "responsável pela questão pedagógica" e entendendo caber à Secretaria de Estado da Educação a responsabilidade da decisão sobre a implantação da proposta curricular, opina no sentido de que o processo seja encaminhado à Câmara de Ensino Fundamental, para onde os autos foram remetidos por despacho do Presidente do CEE-AP, datado de 22 de março de 1999.

No dia seguinte, o Presidente do CEE-AP remeteu o processo para a Secretaria de Estado da Educação e em 31 de março de 1999, os autos foram encaminhados à Coordenadoria de Ensino e ao Núcleo de Educação Indígena, ambos da SEED.

Em 21 de junho de 1999 o processo foi encaminhado à Chefia do NEI/SEED, que por sua vez, em 05 de julho de 1999, remeteu a matéria "para conhecimento, análise e parecer", à Chefia da Unidade pedagógica do NEI/SEED.

Somente em 08 de março de 2001, após um ano e nove meses de espera no NEI/SEED a autoridade coatora manifestou-se nos autos nos seguintes termos:

"Em meados de 1999, iniciou-se a discussão com a Equipe de Consultores do IEE da Pec sobre a Proposta/Diretriz do Estado do Amapá."

Em 2000 foi acordado com a Coordenadoria de Ensino, ASTEC "Eunice" e Dougal/DEF-PUC, a formação de uma Equipe de consultores da Educ. Escolar Indígena: Antonella, Donizete etc. Isto não foi realizado.

Em 2001 através da Portaria nº 1038/2000, foi instituída a Comisão Responsável pela Legalização das Escolas Indígenas e Implementação do Programa de Formação em Magistério Indígena e de Proposta Curricular, para as Escolas Indígenas. Portanto, agora oficialmente, está se viabilizando uma Estrutura Legal para implementação da proposta ora em aprêço.

A citada Comissão possui como meta:

Fev/Março e Abril/2001 – Legalizar as Escolas;

Maio e Junho/2001 – Propostas Curriculares;

Julho e Agosto/2001 – Projeto de formação Turé.

Transcorrido dois meses do referido despacho, nenhuma escola indígena foi legalizada e portanto não há qualquer indicativo de que o cronograma acima indicado pela autoridade coatora venha a ser implementado.

  1. Preliminar de Competência Jurisdicional

O inciso XI do art. 109 da Constituição Federal estabelece competir aos juízes federais processar e julgar: "a disputa sobre direitos indígenas".

Na medida em que a administração pública estadual nega às impetrantes seu direito ao ensino fundamental em sua própria língua e de acordo com seus processos próprios de aprendizagem, nos termos de uma proposta curricular, cuja apreciação se encontra abusiva e ilegalmente paralisada, estabeleceu-se conflito de interesse, que somente pode vir a ser ordenadamente solucionada com a devida prestação jurisdicional, diante do que se estabeleceu como disputa sobre direitos indígenas educacionais.

Por esta razão, o presente Mandado de Segurança é impetrado na Seção Judiciária Federal do Estado do Amapá.

A ilegalidade agravada pelo abuso de poder da autoridade coatora e o direito líquido e certo das impetrantes

O art. 79 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, coerente com o que estabelece o art. 211 da Constituição Federal fixa a responsabilidade dos Sistemas de Ensino dos Estados e dos Municípios "no provimento da educação intercultural às comunidades indígenas, desenvolvendo programas integrados de ensino e pesquisa", assegurado às comunidades indígenas sua audiência no planejamento dos programas integrados de ensino e pesquisa (§ 1º do art. 79 da Lei 9394/96).

Considerando esses parâmetros normativos, as impetrantes, no exercício constitucional do direito de petição requereram que a Proposta Curricular por elas elaborada fosse apreciada pela instância administrativo-educacional do Estado, de forma que os objetivos relacionados no § 2º do art. 79 da Lei nº 9394/96 fossem atingidos.

Em conseqüência, a Divisão de Inspeção e Organização Escolar – DIOE concluiu em 22 de dezembro de 1998, parecer favorável ao encaminhamento da proposta ao Conselho Estadual de Educação para apreciação e emissão de parecer.

Não obstante, em 05 de julho de 1999, após ter permanecido por quase três meses na Coordenadoria de Ensino, os autos foram remetidos à autoridade coatora, Chefe do NEI/SEED, onde o processo permanece até hoje, sem qualquer providência destinada a atender, no todo ou em parte ou mesmo a rejeitar a proposta curricular apresentada pelas impetrantes.

Mesmo o lacônico despacho de 08 de março de 2001, portanto quase dois anos após o processo estar com sua tramitação abusivamente paralisada pela autoridade coatora, não foi, como não é suficiente para descaracterizar a ilegalidade decorrente do abuso de poder, consistente na injustificável paralisia da tramitação processual.

A gravidade da conduta da autoridade coatora emerge, ainda da explicitação constante na Resolução nº 3, de 10 de novembro de 1999, da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, que "fixa diretrizes nacionais para o funcionamento das escolas indígenas" e na qual consta no inciso II do seu art. 9º que:

"II – aos Estados competirá:’.

  1. responsabilizar-se pela oferta e execução da educação escolar indígena, diretamente ou por meio de regime de colaboração com seus municípios;
  2. regulamentar administrativamente as escolas indígenas, nos respectivos Estados, integrando-as como unidades próprias, autônomas e específicas no sistema estadual;
  3. prover as escolas indígenas de recursos humanos, materiais e financeiros, para o seu pleno funcionamento;
  4. instituir e regulamentar a profissionalização e o reconhecimento público do magistério indígena, a ser admitido mediante concurso público específico;
  5. promover a formação inicial e continuada de professores indígenas;
  6. elaborar e publicar sistematicamente material didático, específico e diferenciado, para uso nas escolas indígenas.

III – aos Conselhos Estaduais de Educação competirá:

  1. estabelecer critérios específicos para criação e regularização das escolas indígenas e dos cursos de formação de professores indígenas;
  2. autorizar o funcionamento das escolas indígenas, bem como reconhecê-las;
  3. regularizar a vida escolar dos alunos indígenas, quando for o caso’

Se houvesse razão jurídica relevante para que a pretensão das impetrantes não fosse apreciada pelo Estado do Amapá, somente para efeitos de análise especulativa, à partir do disposto na referida Resolução nº 03/99, nada mais obstaria o atendimento da demanda.

Mesmo que por um absurdo se encontrasse explicação para a injustificável omissão da autoridade coatora, com a promulgação da Lei nº 10.172, de 09 de janeiro de 2001, que aprovou o Plano Nacional de Educação, no qual em seu capítulo 9 trata da Educação Indígena, os ógãos estaduais teriam à sua disposição referências totais para a implementação da educação escolar das impetrantes, nos termos do que fora solicitado.

Nada porém, foi feito. A omissão da autoridade coatora é ainda agravada pela omissão conivente da Presidência do Conselho Estadual de Educação do Amapá e do próprio Secretário de Educação Estadual, por permitirem, na condição de litisconsortes passivos, que esta situação se perpetue, sem qualquer providência administrativa.

Trata-se, na realidade de violação ao princípio constitucional do respeito ao devido processo legal, inscrito no inciso LIV do art. 5º da Constituição Federal, na medida em que as impetrantes estão sendo privadas de seus direitos a terem ensino fundamental regular nas suas respectivas línguas e processos próprios de aprendizagem, conforme lhes assegura o § 2º do art. 210 da Constituição Federal, sem razoável e adequado fundamento.

Em magistral lição, o Prof. Celso Antônio Bandeira de Mello observa:

"Convém finalmente reiterar, e agora com maior detença, considerações dantes feitas, para prevenir intelecção equivocada ou desabrida sobre o alcance do princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado na esfera administrativa. A saber: as prerrogativas que nesta via exprimem tal supremacia não são manejáveis ao sabor da Administração, porquanto esta jamais dispõe de ‘poderes´, sic et simpliciter. Na verdade o que nela se encontram são ‘deveres-poderes’, como a seguir se aclara. Isto porque a atividade administrativa é desempenho de ‘função’."

Tem-se função apenas quando alguém está assujeitado ao dever de buscar, no interesse de outrem, o atendimento de certa finalidade. Para desincumbir-se de tal dever, o sujeito de função necessita manejar poderes, sem os quais não teria como atender à finalidade que deve perseguir para a satisfação do interesse alheio. Assim, ditos poderes são irrogados, única e exclusivamente, para propiciar o cumprimento do dever a que estão jungidos; ou seja: são conferidos como meios impostergáveis ao preenchimento da finalidade que o exercente de função deverá suprir.

Segue-se que tais poderes são instrumentais: sevientes do dever de bem cumprir a finalidade a que estão indissoluvelmente atrelados. Logo, aquele que desempenha função tem, na realidade, deveres-poderes. Não ‘ poderes’ , simplesmente. Nem mesmo satisfaz configurá-los como ‘ poderes-deveres’, nomenclatura divulgada a partir de Santi Romano. Com efeito, fácil é ver-se que a tônica reside na idéia de dever;não na de ‘poder’. Daí a conveniência de inverter os termos deste binômio para melhor vincar sua fisionomia e exibir com clareza que o poder se subordina ao cumprimento, no interesse alheio, de uma dada finalidade.

Ora, a Administração Pública está, por lei, adstrita ao cumprimento de certas finalidades, sendo-lhe obrigatório objetivá-las para colimar interesse de outrem: o da coletividade. É em nome do interesse público – o do corpo social – que têm de agir, fazendo-o na conformidade da intentio legis. Portanto, exerce ‘função’ , instituto – como visto – que se traduz na idéia de indeclinável atrelamento a um fim pré-estabelecido e que deve ser atendido para o benefício de um terceiro. É situação oposta à da autonomia da vontade, típica do direito privado

Com efeito, a administração pública não pode, em hipótese alguma paralisar a tramitação de qualquer demanda, sob pena, inclusive dos agentes responsáveis por tal ato omissivo correrem o risco de coadunar sua conduta com tipos penais, praticando ainda em ato de improbidade administrativa.

A administração pública além de não poder parar, não pode negar aos cidadãos resposta ou esclarecimento adequado sobre suas ações. Se algo não está sendo feito, somente por determinação legal, tendo em vista o princípio da legalidade. Manter qualquer pedido injustificável e ilegalmente paralisado evidencia mesmo atentado contra o princípio da moralidade administrativa, a merecer pronta e enérgica prestação jurisdicional.

  1. Pedido

Do exposto, as impetrantes requerem:

  1. que seja ordenada a notificação da autoridade coatora e dos demais litisconsortes passivos, do conteúdo da presente petição, acompanhada dos respectivos documentos, para que no prazo de 10 dias preste as informações que achar necesssárias;
  2. a notificação do representante do Ministério Público Federal para intervir em todos os atos do processo, por força do que estabelece o art. 232 da Constituição Federal;
  3. que após transcorrido o prazo a que se refere o inciso I do art. 7º da lei nº 1533/51, o representante do Ministério Público seja ouvido, em cinco dias, nos termos do que estabelece o art. 10 da Lei nº 1533/51;
  4. a concessão da segurança para determinar:
    1. à autoridade coatora, o Chefe do Núcleo de Educação Escolar Indígena da Secretaria de Educação do Estado do Amapá, que remeta o Processo nº 73/98 para o Presidente do Conselho Estadual de Educação do Amapá;
    2. que o Conselho Estadual de Educação do Amapá e o Secretário de Educação do Estado do Amapá adotem as providências administrativas no sentido de aprovar o programa curricular das escolas das impetrantes, legalizando o ensino fundamental, com a audiência das impetrantes.

Dando à causa o valor de R$ 1.000,00 (mil reais), para efeitos fiscais, requer, desde já a isenção do pagamento das custas, tendo em vista o disposto no art. 61 da Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973.

T. em que

E. Deferimento

Macapá, 11 de maio de 2001

Paulo Machado Guimarães
OAB-DF nº 5.3

Fonte: Cimi - Assessoria Jurídica
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