20/06/2004

Terras para a Aldeia Kondá – Considerações Jurídico-Legais sobre o caso das famílias Kaingang residentes na cidade de Chapecó – SC, por Rosane Lacerda

I – Introdução;

II – Colocação do problema;

II.1) situação das famílias identificadas;

II.2) causas da migração para Chapecó;

II.3) territorialidade Kaingang;

II.4) reivindicações dos três grupos familiares;

III – Perspectivas identificadas pelo GT quanto à Aldeia Kondá;

IV – Proteção constitucional aos bens indígenas:

IV.1) especificidades culturais ;

IV.2) direitos territoriais.

IV.2.1) tipologia das terras indígenas;

IV.2.2) procedimentos demarcatórios.

V – Possibilidades de encaminhamento.

VI.1)  proteção aos direitos étnicos específicos.

IV.2) proteção aos direitos territoriais.

VI – conclusões.


I – Introdução.

O presente trabalho foi desenvolvido a partir de solicitação do Grupo de Trabalho (GT) constituído pela Portaria n.º 110, de 09 de fevereiro de 1998, da Presidência da Fundação Nacional do Índio – Funai / Ministério da Justiça.

Coube ao referido GT[i] a identificação histórico-antropológica das famílias Kaingang residentes no núcleo urbano do município de Chapecó, em Santa Catarina, trabalho este que resultou no Relatório circunstanciado de identificação intitulado “Os Kaingang de Chapecó. Alteridade, Historicidade, Territorialidade”, datado de março de 1998.

Na parte “IV – APONTAMENTOS FINAIS” do referido Relatório, sugere o GT, “dada a complexidade do caso”, o suporte de uma consultoria jurídico-indigenista ,

“a fim de orientar o encaminhamento do processo dentro dos dispositivos legais nos quais se enquadra este caso específico”.  (p.113)

Procuramos aqui atender a este objetivo, considerando inicialmente os aspectos fáticos  delineados no Relatório do GT.  Observaremos posteriormente os parâmetros constitucionais e infra-constitucionais referentes à situação territorial indígena no país e, por último, sugestões quanto aos possíveis desdobramentos jurídicos.


II – Colocação do problema.

Elencaremos aqui os aspectos que nos parecem centrais sobre o caso em tela, a partir dos dados fornecidos pelo laudo de identificação elaborado pelo GT.

II.1) Situação das Famílias Identificadas.

Em seu levantamento, este identificou, residindo na cidade de Chapecó, uma população de 212 Kaingang, distribuídos em 64 famílias, que formam “um grupo mais ou menos extenso de parentesco”. Os locais onde se encontram constituem-se em emã – residências fixas (p. 05).

Destes 212 Kaingang, a pesquisa identificou que mais de a metade, ou seja 113 indivíduos (53,13% do total) nasceu na própria cidade de Chapecó (p. 05), e que os demais são provenientes de duas áreas indígenas localizadas no vizinho estado do Rio Grande do Sul: Nonoai    53 indivíduos (67,94%)  e Votouro –  16 (20,51%) (p. 06).

De forma particular, o Relatório do GT chama a atenção para o fato de que destes 212 Kaingang, 84 (39,62%) são crianças, na faixa de zero a nove anos de idade (p. 06).

Quanto à distribuição espacial das famílias indígenas na cidade, o GT identificou três pontos de localização: os bairros Tiago, Palmital e São Pedro (p. 07); o primeiro com 04 famílias (23 pessoas), em 04 barracas; o segundo – Aldeia Kondá, com 54 famílias (154 pessoas), em 24 barracas; e o terceiro com 06 famílias (35 pessoas) na favela próxima ao CAIC e famílias dispersas, que não puderam ser contabilizadas (p. 08).

Segundo se depreende do Relatório, a existência dos “acampamentos” Kaingang em terrenos baldios da cidade sempre foi objeto de grandes protestos por parte dos moradores locais, com forte ressonância através da imprensa.

Com isso, a política do órgão indigenista oficial para o caso, e de acordo com pressões da administração municipal, sempre foi a de recolhimento das famílias e sua “devolução” para as áreas indígenas mais próximas. O procedimento, no entanto, nunca logrou êxito. A Funai “levava os índios de volta para Nonoai, mas estes em pouco tempo retornavam.”(p. 08)

Com o auxílio de servidor da ADR de Chapecó (p. 08), o GT pode resumir um pouco da trajetória desta população, de acordo com as providências adotadas pelo órgão indigenista oficial:

A Funai por diversas vezes fez o transporte desses grupos para a AI Nonoai e para  o Chimbangue. Apesar da decisão ter sido tomada depois de reuniões com as lideranças indígenas, Sebastião lembra que ‘o pessoal de Nonoai reclamou’ uma vez que nem todas as famílias eram originárias de lá.”

“Quando levaram as famílias para o Chimbangue a Funai deu garantia de alimentação mas ‘o recurso acabou  e a maioria das famílias retornou para a cidade”.

Nos anos 80 as famílias foram mandadas de Nonoai para o Chimbangue; e do Chimbangue para a cidade quando houve um conflito no Chimbangue. Na cidade, acamparam durante meses em frente à ADR de Chapecó.”

“(Nos anos 80) A imprensa, segundo ele (o servidor), ‘bateu pesado em cima da Funai, para retirar os índios da cidade e colocá-los no Chimbangue’. Sebastião lembra que a maioria das famílias era de Nonoai, que na época enfrentava problemas internos de ordem política, envolvendo contrato de retirada de madeira.” (p. 9) (Grifei.)

Esta concepção de solução do “problema” Kaingang através da remoção dos índios continua vigente ainda hoje, a exemplo de pronunciamento do jornalista Jocenir Sérgio Santanna, na coluna “Tribuna”, do jornal Diário do Iguaçu (Chapecó, 04 de abril de 1997), cuja citação, feita no Relatório do GT, transcrevemos parcialmente:

“… A Funai garante que está tentando fazer com que os índios sejam removidos para as suas respectivas tribos, mas enquanto uns vão, voltam outros.” (p. 02) (Grifei.) 

Contudo, apesar de se pensar (pelo menos alguns setores) numa solução via remoção, parece estar presente, paradoxalmente, ser esta uma medida inócua, dado que “enquanto uns vão, voltam outros”.

II.2) Causas da migração para a Chapecó.

Este constante retorno dos índios à cidade de Chapecó encontra-se, como demonstra o Relatório, associado à própria motivação de sua saída das áreas indígenas e migração para aquele local. Conforme identificou o GT,

“… os Kaingang que vivem na cidade não saíram das A.I.s ‘espontaneamente’ (Funai, 9/1/87) …. Muito ao contrário, (…) esta análise mostrou que os índios vêm sendo expulsos das A.I.s pelo conjunto das condições a que são submetidos lá. De qualquer forma, as saídas se caracterizaram  como diferentes formas de fuga das péssimas condições nas A.I.s. Se na cidade enfrentam problemas graves – preconceito, riscos de atropelamento e outros – nas A.I.s, as condições são piores. A saída das A.I.s ocorre para não serem transformados em objeto de exploração permanente – (…) ” (p. 109 – 110) (Grifei.) 

Este “conjunto de condições” apontado pelo relatório do GT como causa da fuga Kaingang das áreas indígenas, creio poder ser resumido nos seguintes pontos:

a) O modelo histórico de aldeamento implementado através do confinamento compulsório de grupos diversos  e etnicamente diferenciados – inclusive  rivais,  num  mesmo espaço territorial.

Informa o Relatório que Nonoai – da qual é egressa a maioria dos Kaingang residentes em Chapecó nascidos no interior de áreas indígenas[ii] – , tem sua origem  sob este fundamento:

“…foi criada para ser um centro de reunião de todos os grupos da região (Moreira Neto, 1971:396 apud Becker, 1976:70-71). Ao grupo comandado por Nonoai foi compulsoriamente integrado um outro (também Kaingang) das proximidades de Passo Fundo…,”  “Nesta mesma época  (1861/62) foram incluídos índios Guarani, reconhecidamente inimigos dos Kaingang desde tempos imemoriais.” (p. 22) (Grifei.)

b) A instrumentalização – pelos representantes da sociedade nacional envolvente (não-índios) em benefício da consolidação da conquista territorial – ,  das rivalidades tradicionais entre os diversos grupos Kaingang, multiplicando os faccionalismos e gerando novas cisões internas (pp. 19-22).

As condições para esta instrumentalização estariam dadas, entre outros fatores, pelo próprio modelo de confinamento de grupos diferenciados num mesmo espaço territorial. Assim, diante da presença dos demais, entre os quais alguns inimigos históricos, ocorreu que:

“Cada grupo capitaneado por seu cacique passou a gestionar, nas estruturas oficiais do indigenismo, vantagens materiais e políticas para seu grupo, em detrimento dos  demais,  e as disputas internas geraram problemas hoje muito difíceis…”  O entrecruzamento de diferentes facções indígenas, separadas por interesses opostos, alianças das facções que se alternam na estrutura indigenista local e regional, estão hoje no centro dos conflitos que dividem as  AIs.” (p. 23) (Grifei.) 

c) “situações de desigualdade e constrangimento que ocorrem nas AIs” tanto por parte dos agentes governamentais encarregados da proteção às populações indígenas, quanto por parte das próprias lideranças indígenas para tanto apoiadas pelos primeiros (p.19).

Entre estas situações constrangedoras às quais os índios foram submetidos no interior das áreas, o relatório aponta para o sistema de cativeiro ou panelão (p. 23) – trabalho compulsório dos homens nas roças coletivas ou “do posto” (anos 60 deste século). O sistema continuou a ser praticado nas décadas de 70 e 80, em Votouro – área de onde é egressa outra parcela (20,51%)  da população Kaingang residente em Chapecó. Forçados ao trabalho, os índios não teriam obtido qualquer retorno, tendo sido parte da produção, apropriada  pelos chefes de posto e parte enviada à Funai (p. 23), a título de “Renda Indígena”[iii]. Informa ainda que segundo Simonian (1994:20), “atos de rebeldia eram punidos com a cadeia, em condições desumanas. ” (p.23-24)

Em seu relatório, o GT conseguiu identificar ainda outras formas constrangedoras de tratamento aos índios no interior das áreas, como resultante da referida instrumentalização dos faccionalismos tradicionais:

“…a presença do tronco e/ou da cadeia nas AIs kaingang; a transferência – de uma AI para outra – imposta pela chefia de Posto, cacique e grupo paramilitar de apoio; e a exclusão das famílias dos serviços de assistência a que têm direito – assistência técnica, sementes, serviços médicos e remédios, remoção de doentes para hospitais. (p. 24)  (Grifei.) 

d) A redução dos espaços territoriais, trazendo o agravamento das dificuldades para a reprodução demográfica, econômica e étnico-cultural, com conseqüentes agravamentos das disputas internas.

Ambas as áreas de onde os Kaingang do caso em tela são provenientes (Nonoai e Votouro), assim como as demais, sofreram escandalosas reduções em suas superfícies. Segundo o relatório do GT, Nonoai foi reduzida de 34.900 ha (1848), para 14.910 ha (1962), enquanto que Votouro foi reduzida de 31.000 ha (1850), para 3.053 ha (1918), e depois para 1.440 (1962). Com o passar dos anos, a redução da superfície das áreas foi inversamente proporcional  ao crescimento demográfico local. O GT chama a atenção para  que:

“se usarmos o mesmo critério – do branco – , os Kaingang de Votouro poderiam reivindicar mais que a triplicação de sua  A.I.” 

O que ocorre é que, muito ao contrário do cantado e decantado discurso da existência de “muita terra para pouco índio” a realidade comprova que  as superfícies atuais das áreas indígenas são extremamente insuficientes para garantir  a continuidade da existência dos Kaingang enquanto identidade étnica diferenciada, mas seria insuficiente até mesmo  segundo critérios puramente de produção econômica.

e) O esgotamento das riquezas naturais nas áreas indígenas, levando à sobrevivência em meio a condições de extrema miserabilidade.

A situação resulta, em primeiro lugar, da submissão dos índios ao confinamento, à imposição de sua transformação em “pequenos agricultores sedentários[iv] nas reservas, em abandono ao modelo tradicional de perambulação em busca de caça e coleta. Resulta, em segundo lugar, da adoção de práticas econômicas ambientalmente  predatórias e socialmente perversas. Como diz o GT em seu relatório,

“A década de 60 marca o início da destruição dos pinhais nas AIs, impulsionada nos anos 70 com a instalação de serrarias dentro das reservas, com o argumento de que a madeira serviria para a construção de casas para os índios. Os índios são unânimes em afirmar que não houve esse retorno social.” (p.24) 

Em conseqüência, tem-se nas áreas um quadro sério de escassez  alimentar.

É portanto como fuga a todas essas situações de conflito e exclusão, que o GT identifica a  causa da evasão das famílias Kaingang das áreas indígenas (notadamente Nonoai e Votouro) para a cidade de Chapecó. Diante de tais condições os índios fogem,

“… para não serem transformados em objeto de exploração permanente – daí a grande preocupação dos velhos e adultos com o futuro das crianças -, e para que seus descendentes possam viver como Kaingang.” (p. 110) 

Isso explica também, em parte, o fracasso  das operações de transferência compulsória dos índios da cidade para as áreas indígenas.

Além disso, o GT identificou também o equívoco de se  considerar estes índios como “desaldeados” e  “desarraigados”.  Muito pelo contrário, o deslocamento foi feito por famílias, e na cidade têm se organizado em torno de famílias extensas.  As famílias residentes no Bairro Palmital, por exemplo, denominam-se como Aldeia Kondá, como identificação de um ancestral e líder comum, o Cacique Kondá, que no século passado estabeleceu um acordo de paz com os colonizadores brancos….

II.3) Territorialidade Kaingang.

O Relatório do GT registra ainda dois fatores de extrema importância para a compreensão do fenômeno da migração destas famílias Kaingang para a cidade de Chapecó.

O primeiro refere-se à manutenção da consciência, entre os Kaingang de um modo geral, acerca de um espaço territorial próprio, que não se cinge às fronteiras estabelecidas pelo invasor não-indígena através das chamadas reservas ou aldeamentos.

A prática do wãre[v], por exemplo, seria uma explicitação clara da manutenção desta territorialidade.

O segundo, e que diz respeito mais especificamente às famílias da Aldeia Kondá, do bairro Palmital, refere-se à sua vinculação histórica com a própria fundação da cidade de Chapecó, afora a própria inserção desta naquele espaço territorial. 

Conforme levantou o GT,  estas famílias descendem justamente do casal fundador da cidade de  Chapecó, o mineiro José Raymundo Fortes – chegado ao local entre 1838/1839, e a Kaingang Ana Maria de Jesus. Tratando-se esta de filha do Cacique, chamado Gregório, o casamento teria possibilitado uma espécie de acordo de paz (p. 75) entre os Kaingang  ali encontrados e a expedição à qual pertencia Raymundo Fortes, ocasionando ainda uma série de casamentos entre indígenas do local e não-indígenas recém chegados.

Isto possibilitou a que em seguida, o mineiro abrisse uma clareira no local (“a primeira clareira no sertão”), vindo a denominá-lo de “Campina do Gregório”[vi], em alusão ao sogro, cacique dos Kaingang ali encontrados.

Na seqüência, o GT relata que:

 “Até findar o século passado ainda existia um (toldo) situado no lugar onde está assentada a cidade, sede do município, o que constitui a origem de sua denominação: Passo dos Índios, e que vigorou  até o ano de 1938, sendo substituído pela denominação  Chapecó … (Antônio Selistre de Campos, 1950 – Juiz de Direito da comarca de Chapecó).” (p.80) 

O referido Grupo de Trabalho teve inclusive a oportunidade de tomar depoimentos de pessoas mais idosas, que informaram tratar-se o local onde se encontra atualmente a área urbana de Chapecó, em área tradicional de caça e coleta dos Kaingang, e que “nunca deixou de ser explorada pelos índios” (p. 10).

“A concepção de território Kaingang apresenta uma dimensão sócio-político-cosmológica mais ampla do que para o branco: é onde estão enterrados os seus mortos e onde pretendem enterrar os seus umbigos; é onde habitam os espíritos de seus ancestrais e outros seres sobrenaturais; é o espaço onde se encontram o passado e o presente, ou melhor, onde se unem os tempos mítico e histórico (Tommasino, 1996). Apesar de todas as mudanças, Chapecó faz parte da memória coletiva como espaço onde viveram, morreram e foram enterrados os seus avós e hoje está incorporada como parte do seu modo de vida. Por isso, território o qual ultrapassa qualquer delimitação feita pelo branco.” (p. 110) (Grifamos.) 

Por isto tudo, a migração para a cidade de Chapecó significa também que:

“ Os Kaingang se encontram organizados, reivindicando o direito à terra que seus ancestrais ocuparam no passado.” (p. 79) 

Assim, a circunstância histórica da criação (e consolidação) da cidade de Chapecó não foi suficiente para fazer desaparecer, entre os Kaingang, a sua visão de pertença daquele local ao espaço territorial indígena.  Em outras palavras, apesar de as terras onde hoje se assenta a cidade  terem se configurado enquanto espaço urbano,  voltado para o atendimento das necessidades dos seus novos ocupantes  (os cidadãos Chapecoenses), o modo Kaingang  de ver o local – como parte de seu território, sofreu alterações, mas não desapareceu.

II. 4) Reivindicações dos três grupos familiares.

Apesar dos aspectos comuns relativos à motivação da migração das famílias Kaingang para a cidade de Chapecó, o GT identificou distintas expectativas de futuro, pelo menos a curto prazo, entre os três grupos lá residentes:

No caso das famílias da Aldeia Kondá (bairro Palmital), constatou-se  reivindicarem

“… uma terra para onde possam se mudar, desde que ela contenha dimensões e qualidades suficientes para uma vida melhor, para viverem de acordo com os costumes, para não serem explorados como nas AIs.” (p.112)

Quanto à aldeia do bairro Tiago foram identificadas duas posições distintas:

  uma, expressa pelas famílias de Júlio da Silva e de Batista Garcia, consistente no

“… interesse em morar nessa nova terra com as famílias da aldeia Kondá, até porque fazem parte da mesma rede de parentesco e afinidade.” (p.112) 

– a outra, das famílias de Edemar Floriano e Geraldino Sales, a respeito da qual  aponta-se unicamente  a falta de desejo de aderirem ao grupo da Aldeia Kondá. (p.112) 

Sobre o terceiro grupo, das famílias que vivem esparsas no bairro São Pedro e adjacências, o relatório menciona apenas que 

“…desconhecem a reivindicação de uma terra por parte das famílias que vivem na Aldeia Kondá, apesar da pesquisa ter mostrado que há  pessoas da família dos Fortes[vii] vivendo naquele bairro…” (p. 112) 

Diante disso, o GT coloca a necessidade de esforços no sentido de atendimento à reivindicação da Aldeia Kondá e parte das famílias do bairro Tiago, ou seja, de uma terra para viverem de acordo com os costumes Kaingang.

Entretanto, alerta para que, uma vez atendida esta reivindicação,

“… este processo não deverá ter o caráter de uma ‘limpeza étnica’ – o que parece estar na cabeça de algumas autoridades e cidadãos chapecoenses.” (p. 112) 

Ou seja, não poderá constituir, de forma alguma, na legitimação do “repatriamento” das outras famílias para o interior das áreas indígenas, sob pena de se incorrer nos mesmos erros até então perpetrados, e de, ao mesmo tempo, não se solucionar o “problema” da presença indígena na cidade.


III – Perspectivas identificadas pelo GT quanto à Aldeia Kondá.

O relatório do GT deixa extremamente claro que, se por um lado não é viável o retorno das famílias Kaingang às áreas indígenas, por outro lado a vida na cidade – para onde migraram, não consiste numa aspiração em termos de futuro  (pelo menos no caso da Aldeia Kondá), uma vez que a cidade:

“…não oferece as condições básicas (territoriais, naturais e sociais) para reproduzirem uma vida digna, isto é, de acordo com a sua especificidade cultural.” (p.109) 

Quanto ao que as famílias da Aldeia Kondá reivindicam, podemos sistematizar os seguintes aspectos identificados pelo GT:

a) que lhes seja garantida uma terra “fora da cidade” (p.110), para onde possam transferir o seu “emã”:

“… uma terra onde possam viver melhor, onde possam manter a sua especificidade sociocultural, querem criar seus filhos em lugar mais seguro e onde haja matas e espaço suficiente para os de hoje e os de amanhã …” (p. 13)

“Querem um emã numa área que tenha espaço para cultivo, matas e água natural. Esse espaço deve comportar as gerações de hoje e do futuro porque a população está crescendo, fato natural que os brancos não consideraram quando delimitaram as AIs e por isso as AIs estão ‘lotadas’  e as terras devastadas e degradadas.” (p. 110)

b) ao mesmo tempo, os Kaingang da Aldeia Kondá querem que esta terra (fora da cidade) seja, ao mesmo tempo,  próxima à cidade de Chapecó uma vez que “não estão abdicando do espaço social urbanizado”. Reivindicam o direito a “continuar utilizando seus equipamentos públicos  e como mercado para seu artesanato”; querem  continuar vendendo seu artesanato na cidade de Chapecó” (p. 03) que, conclui o GT,

“… é hoje  o centro de seu território atual de subsistência e se constitui como o equivalente lógico do espaço de caça e coleta transformado historicamente.” (p.110)  (Grifei) 

Isto posto, passemos a levantar, nos próximos tópicos, de que forma o caso pode ser analisado do ponto de vista jurídico-legal, ou, mais especificamente, à luz do Direito Indigenista.


IV – Proteção Constitucional aos Bens Indígenas:

IV. 1)  Especificidades Culturais.

Com o intuito de resgatar parte de uma enorme dívida histórica para com os povos indígenas, o Constituinte Originário de 1988, fez reconhecer o que durante estes 500 anos de contato foi sistematicamente negado: a existência de organização social e valores culturais próprios dessas populações.

Assim, o caput do art. 231 da Constituição Federal de 1988 reconhece a existência desses elementos sócio-culturais próprios e diferenciados, que passam então a ser percebidos como bens imateriais destes povos. Ao  mesmo tempo, determina expressamente à União Federal o dever de cuidar de sua proteção e respeito, abolindo completamente a perspectiva anterior de “incorporação à comunhão nacional[viii]”:

 “Art. 231 – São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, (…), competindo à União …, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.”  (Grifei.) 

Portanto, tem-se em primeiro plano que a organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, de cada um dos povos indígenas, constituem-se em bens a serem protegidos pela União Federal.

Trata-se de uma proteção especial, que não poderia deixar de ser em razão da extrema vulnerabilidade dos grupos étnicos indígenas existentes no País, que sempre foram tratados de forma dominadora  e extremamente desrespeitosa durante todo o processo de contato. Com estes reconhecimentos, o Estado Brasileiro passa a enxergar a si próprio como multiétnico e pluricultural.

Seguindo o princípio da Unicidade da Constituição, todo o texto Constitucional de 1988, no que se refere às populações indígenas do País é guiado no sentido do estabelecimento de condições que garantam a continuidade da sua existência, não só física como étnico-cultural.

Analisando os princípios norteadores do Direito Indigenista Brasileiro, o Procurador da República Paulo de Bessa Antunes (1998 : 140) esclarece que

“O significado profundo do princípio jurídico ora expresso é o de assegurar o reconhecimento, o mais amplo possível, ao direito à alteridade, isto é, ao direito de ser diferente. O direito à diferença possui uma radicalidade, uma força tão poderosa que, sem dúvida alguma, é a principal dificuldade no relacionamento entre os povos civilizados e os povos aborígenes. A aceitação da diferença implica em que a nossa cultura não é a única forma de cultura válida. Tal concepção, como é óbvio, é geradora de insegurança para aqueles que se imaginam como centro e razão de ser do universo.”  (Grifei.) 

A importância deste direito à diferença e a responsabilidade do Poder Público Federal  no tocante à sua proteção são tão fundamentais para a sobrevivência dos povos indígenas, que se fez constar no Programa Nacional de Direitos Humanos (1996:31),  e tendo no rol das medidas de curto prazo, a formulação e implementação de

“políticas de proteção e promoção dos direitos das populações indígenas, em substituição a políticas assimilacionistas e assistencialistas.”  (Grifei.) 

IV. 2) Direitos Territoriais.

IV.2.1) Tipologia das Terras Indígenas.

Como vimos anteriormente, o Constituinte de 1988 procurou resgatar parte de uma dívida histórica de 500 anos com os povos indígenas, reconhecendo e determinando a proteção especial da União à diversidade étnico-cultural formada pela organização social, costumes, línguas, crenças e tradições daqueles povos.

Ao mesmo tempo, procurou resgatar também outra parcela da mesma dívida, reconhecendo aos povos indígenas, direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam (CF/88, art. 231, caput), significando isto, segundo Celso R. Bastos (1992:13), que

"…a posse indígena decorre de uma realidade que preexiste a qualquer ato civilizatório. É um direito originário, congênito, independente de legitimação. É o indigenato"      (Grifei.) 

Ou seja, a Constituição Federal resgata o  instituto do INDIGENATO, o qual, como informa o Constitucionalista José Afonso da Silva (1990:718), consiste em

“… velha e tradicional instituição jurídica luso-brasileira que deita suas raízes já nos primeiros tempos da Colônia, quando o Alvará de 1.° de abril de 1680, confirmado pela Lei de 6 de junho de 1755, firmara o princípio de que, as terras outorgadas a particulares, seria sempre reservado o direito dos índios, primários e naturais senhores delas.” 

A fim de dirimir quaisquer dúvidas e prevenir contra manipulações interpretativas, o próprio texto constitucional cuidou de  definir em que consistiria este tipo reconhecido de terra indígena, como  aquela que reuniria quatro elementos distintos e complementares: habitação em caráter permanente; utilização para atividades produtivas; imprescindibilidade à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar; e necessidade para sua reprodução física e cultural (CF/88, art. 231, § 1.º). Tudo isto mensurável não de acordo com a lógica civil ou economicista reinante em nossa sociedade, mas de acordo com os usos, costumes e tradições indígenas, ou seja, a partir do seu ponto de vista.

Como diz ainda Afonso da Silva (1990:720),

"O tradicionalmente refere-se, não a uma circunstância temporal, mas ao modo tradicional de os índios ocuparem e utilizarem as terras e ao modo tradicional de produção, enfim, ao modo tradicional de como eles se relacionam com a terra (…). Daí dizer-se que tudo se realize segundo seus usos, costumes e tradições." (Grifei.) 

Apesar de sua importância, as terras tradicionalmente ocupadas não consistem em tipo único disposto pelo ordenamento jurídico brasileiro, no que se refere aos povos indígenas. A Lei n.º 6.001, de 19 de dezembro de 1973, que dispõe sobre o Estatuto do Índio, prevê ainda outros dois tipos de terras indígenas: 

“Art. 17. Reputam-se terras indígenas:

I – …[ix]

II – as áreas reservadas de que trata o Capítulo III deste Título;

III – as terras de domínio das comunidades indígenas ou de silvícolas.”    (Grifei) 

A definição e o tratamento das áreas reservadas encontram-se dispostos no artigo 26 do mesmo diploma legal, como se vê:

“Art. 26 – A União poderá estabelecer, em qualquer parte do território nacional, áreas destinadas à posse e ocupação pelos índios, onde possam viver e obter meios de subsistência, com direito ao usufruto e utilização das riquezas naturais dos bens nelas existentes, respeitadas as restrições legais.

Parágrafo único. As áreas reservadas na forma deste artigo não se confundem com as de posse imemorial das tribos indígenas, …”  (Grifei.) 

Ou seja, trata-se de áreas sobre as quais as comunidades indígenas não possuem nenhuma relação de ocupação tradicional, mas são destinadas à posse e ocupação indígena através de ato constitutivo do poder público federal. Diferem portanto das de ocupação tradicional em razão de que, enquanto naquelas os direitos de posse e usufruto são originários e portanto objeto de simples reconhecimento, nestas dependem de criação por ato formal da autoridade competente. 

A Lei n.º 6.001/73 estabelece ainda a divisão das áreas reservadas em quatro modalidades distintas: reservas, parques, colônias agrícolas, e territórios federais indígenas:

“Art. 27 – Reserva indígena é uma área destinada a servir de habitat a grupo indígena, com os meios suficientes à sua subsistência.

Art. 28 – Parque Indígena é a área contida em terra na posse de índios, cujo grau de integração permita assistência econômica, educacional e sanitária dos órgãos da União, em que se preservem as reservas de flora e fauna e as belezas naturais da região.

Art. 29 –  Colônia agrícola indígena é a área destinada à exploração agropecuária, administrada pelo órgão de assistência ao índio, onde convivam tribos aculturadas e membros da comunidade nacional.

Art. 30 –  Território Federal indígena é a unidade administrativa subordinada à União, instituída em região na qual pelo menos um terço da população seja formado por índios.” (Grifei.) 

Das quatro modalidades só se tem registro, até o momento, de casos de  constituição de Reservas e de Parques Indígenas, mais comumente utilizados no período anterior ao advento da Constituição Federal de 1988. Após a sua promulgação, consagrando o reconhecimento aos direitos originários sobre as terras tradicionalmente ocupadas, a criação dos Parques foi abolida, encaminhando-se a demarcação das áreas enquanto aquele tipo constitucionalmente definido.

As Reservas, no entanto, continuam ainda passíveis de constituição, mas em casos restritos,  onde a terra tradicionalmente ocupada seja comprovadamente inexistente.   

Há que se registrar por último a previsão do Estatuto do Índio quanto às terras dominiais, consistentes naquelas cuja propriedade pertence à comunidade ou ao indígena individualmente considerado, diferentemente das demais cuja propriedade pertence à União Federal:

“Art. 32 –  São de propriedade plena do índio ou da comunidade indígena, conforme o caso, as  terras havidas por qualquer das formas de aquisição do domínio, nos termos da legislação civil.” 

É importante observar que tanto as áreas reservadas (entre elas as Reservas Indígenas) quanto as dominiais, ambas relacionadas como “terras indígenas”, ficam sujeitas a algumas vedações opostas pela Lei n.º 6.001/73 contra a possibilidade histórica de esbulho, como se vê nos dispositivos abaixo transcritos:

“Art. 18 – As terras indígenas não poderão ser objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico que restrinja o pleno exercício da posse direta pela comunidade indígena ou pelos silvícolas.

§ 1.º – Nessas áreas, é vedada a qualquer pessoa estranha  a prática da caça, da pesca ou coleta de frutos assim como de atividade agropecuária ou extrativa” ;

(…)

“Art. 38. – As terras indígenas são inusucapíveis e sobre elas não poderá recair desapropriação …” (Grifei) 

Portanto, a exemplo das terras tradicionalmente ocupadas (mas guardadas as diferenças de ordem constitucional), as áreas reservadas e as dominiais também encontram-se sujeitas à proteção do poder público, através de algumas vedações legais.

IV.2.2) Procedimentos Demarcatórios.

Conforme determina a Constituição Federal de 1988 (art. 231, caput), cabe à União Federal o dever[x] de demarcar as terras indígenas tradicionalmente ocupadas, imperatividade que visa, em última instância, garantir a proteção fundamental à continuidade da existência daqueles grupos étnicos.

Segundo os termos do Estatuto do Índio, de 1973, a forma pela qual deve ser processada a demarcação  deve estar prevista em decreto:

“Art. 19 – As terras indígenas, por iniciativa e sob orientação do órgão federal de assistência ao índio, serão administrativamente demarcadas, de acordo com o processo estabelecido em decreto do Poder Executivo.” 

Dispõe atualmente sobre a matéria o Decreto n.º 1.775, de 08 de janeiro de 1996, que seguindo neste ponto a lógica de regulamentações anteriores[xi], dispõe sobre a necessidade de o procedimento ser iniciado através  da identificação da  natureza jurídico-antropológica da terra objeto do estudo, bem como do levantamento dos imóveis porventura incidentes na mesma:

“O órgão federal de assistência ao índio designará grupo técnico especializado, composto preferencialmente por servidores do  próprio quadro funcional, coordenado por antropólogo, com a finalidade de realizar estudos complementares de natureza etno-histórica, sociológica, jurídica, cartográfica, ambiental e o levantamento fundiário necessários à delimitação.” (Dec. n.º 1.775/96, art. 2.º, § 1.°) 

A finalidade do estudo é não apenas o de confirmar a natureza jurídico-antropológica da área estudada (de  sua configuração ou não como tradicionalmente ocupada), mas também, e sobretudo, de reunir todos os elementos de comprovação desta natureza, que devem nortear a ação da administração pública.

Isto é de fundamental importância, pois só estando descartada, mediante este estudo,  a caracterização tradicional da ocupação indígena, é que se  pode dar à área reivindicada pelas comunidades indígenas, encaminhamento diverso, ou seja, conforme os demais tipos previstos no Estatuto do Índio (como área reservada ou como dominial indígena).


V – Possibilidades de encaminhamento.

V. 1) Proteção aos Direitos Étnicos Específicos.

No que se refere às famílias Kaingang do caso em tela, o relatório do GT não deixa dúvidas quanto ao enorme esforço e criatividade que desenvolvem no sentido de poderem viver, mesmo dentro do espaço urbano, de acordo com o seu modo de vida tradicional. Neste sentido, informa o Relatório que os três grupos pesquisados na cidade de Chapecó desenvolvem:

“… a estruturação de uma rede social que preserva os mesmos princípios estruturadores da territorialidade kaingang: ao local de residência fixa – a cidade – agregam-se dezenas de outros locais (morada dos parentes, locais de venda de artesanato, centros religiosos, etc.), revelando o amplo espaço de mobilidade e (re) territorialização dos Kaingang atuais.” (p. 28) (Grifei.) 

Também a prática dos acampamentos provisórios, relacionada como mecanismo de obtenção de fonte de renda através da venda de artesanato,  cumpre importante função na manutenção dos costumes e tradições Kaingang:

“No período em que ficam fora – semanas ou meses – acampam na beira das rodovias ou na periferia das cidades. Logo, estabelecem um wãre[xii]. Geralmente saem em pequenos grupos que incluem adultos e crianças.” (p. 28) (Grifei.) 

Ilustrando com dados trazidos pelo trabalho de Tommasino (1995 :15), o GT informa que a prática dos acampamentos é observada em muitos outros grupos da mesma etnia, que

“acampam na cidade (Londrina – PR) de forma organizada, recriando na cidade um espaço Kaingang.” 

Não só em razão das necessidades de sobrevivência e de uma “vida melhor”, é que deixaram as áreas indígenas de origem. O fizeram também na busca de espaços próprios que lhes assegurassem o exercício de uma liberdade, de uma autonomia, frente às pressões desenvolvidas nas áreas pelos agentes governamentais e movimentos das facções rivais as quais, como vimos anteriormente, foram confinadas compulsória e indevidamente num mesmo espaço territorial.

Esta autonomia figura como essencial para a manutenção da identidade étnico-cultural de tais famílias, e a busca pela sua conquista é expressa justamente pelo movimento de “fissão/migração” (p. 19), quando da ocorrência de situações-limite como as encontradas atualmente no interior das áreas indígenas.

Todas estas especificidades sócio-culturais Kaingang, identificadas entre as famílias residentes na cidade de Chapecó, bem como o seu direito de autonomia, constituem em seus valiosos bens imateriais, e devem  ser alvo de proteção especial por parte do poder público federal, conforme determinação de princípio constitucional da mais alta relevância (“são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, … competindo à União, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.”[xiii])

Neste sentido, a hipótese  de “devolução” destas famílias às áreas indígenas (Nonoai, Votouro ou qualquer outra), ou o impedimento à prática dos wãre nas cidades

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