Análise da Proposta de Emenda à Constituição n.º 38, de 15/09/1999, por Cláudio Luiz Beirão
1- Introdução:
O senador Mozarildo Cavalcante (PFL/RR) apresentou proposta de emenda à Constituição Federal para adicionar ao art. 52 um inciso e alterar a redação dos artigos 225 e 231, passando o texto para a seguinte forma:
"Art. 1º Adicione-se ao art. 52 da Constituição Federal o inciso XV, com a seguinte redação:(grifamos)
"Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal:
………………………………………………………….
XV – aprovar o processo de demarcação das terras indígenas."
Art. 2º O inciso III do art. 225 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação:
"Art.225. ………………………………………………………………..
III – definir, em todas as unidades da Federação, observados os limites fixados no art. 231, § 2º, territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção;"
Art. 3º O caput do art. 231 da Constituição Federal passa a vigora com a seguinte redação:
"Art. 231. São reconhecidos aos índios a sua organização social, costumes. línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-la, proteger e fazer respeitar todos os seus bens, e ao Senado Federal aprovar o processo de demarcação."
Art. 4º Adicione-se ao art. 231 da Constituição Federal o § 2º, com a seguinte redação, renumerando-se os demais:
"§ 2º As áreas destinadas às terras indígenas e às unidades de conservação ambiental não poderão ultrapassar, conjuntamente, 30% (trinta por cento) da superfície de cada unidade da Federação."
Art. 5º Esta Emenda entra em vigor na data de sua publicação.
A proposta do parlamentar segue em duas medidas. A primeira é de limitar o tamanho dos territórios indígenas e das unidades de conservação de forma que não ultrapasse, conjuntamente, a um determinado percentual. Na proposta inicial este percentual era de 30 %, mas foi alterada na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania – CCJ para 50%. Já a segunda medida proposta na PEC 38 é de que o Senado Federal passe a ter competência para aprovar as demarcações das terras indígenas.
Na justificativa da PEC já se pode observar qual a verdadeira intenção do senador ao propor estas modificações na Constituição. Sob um argumento desenvolvimentista e de progresso o senador coloca como fator de impedimento de desenvolvimento dos estados, principalmente do Norte do País a existência destes dois institutos.
No que diz respeito às terras indígenas o parlamentar argumenta que a União demarcou território com superfície desproporcional ao número de indígenas existentes. Além disso, o senador propõe que as demarcações sejam precedidas da oitiva dos representantes do Senado, por representarem os estados da federação naquela Casa.
2- Análise da Proposta de Emenda Constitucional:
I – Da inconstitucionalidade de limitação dos territórios indígenas
A PEC 38 incorre em flagrantes inconstitucionalidades. A principal destas é a parte que limita o espaço físico das terras indígenas.
A Constituição Federal reconhece que os povos indígenas têm direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam (posse permanente e usufruto exclusivo entre outros) e determina que a União às demarque. O conceito de terras indígenas está definido no próprio texto constitucional (§1º do art. 231): são aquelas habitadas pelos índios em caráter permanente; utilizadas para as suas atividades produtivas; imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao bem-estar destes; e as necessárias à reprodução física e cultural dos índios.
Não pode agora o legislador, como constituinte derivado, modificar este conceito impondo limites que a própria Constituição não admite. Terra indígena é considerada com tal não pela quantidade de pessoas que nela habitam, mas sim pelos quatro aspectos acima descritos determinados pelos usos, costumes e tradições de cada povo. A União ao definir e delimitar o tamanho de uma terra indígena tradicional deve levar em consideração este preceito constitucional.
II – Da Alteração de Cláusula Pétrea
Outra medida proposta pelo senador afeta ao princípio constitucional da separação dos Poderes do estado. A pretensão do senador de alterar o artigo 231 da CF interfere na atribuição do Poder Executivo de demarcar as terras indígenas.
Como já referido anteriormente a Constituição determina que a União demarque as terras indígenas. É o Poder Executivo, através do órgão indigenista federal (Funai), quem realiza esta atividade que consiste em um procedimento administrativo com diversas etapas definidas em decreto presidencial. A Lei n.º 6.001/73 (Estatuto do Índio) estabelece no artigo 19 que:
"As terras indígenas, por iniciativa e sob orientação do órgão federal de assistência ao índio, serão administrativamente demarcadas, de acordo com o processo estabelecido em decreto do Poder Executivo."
Atualmente é o Decreto n.º 1.775, de janeiro de 1996 que dispõe sobre este procedimento. A fase final deste procedimento, previsto no decreto, é a homologação da demarcação pelo presidente da República. A mesma norma infra constitucional, acima citada, já orienta que este ato final é competência do Poder Executivo, a saber:
Art. 19. (…)
§ 1º A demarcação promovida nos termos deste artigo, homologada pelo Presidente da República, será registrada em livro próprio do Serviço do Patrimônio da União (SPU) e do registro imobiliário da comarca da situação das terras.
Com a proposta do parlamentar este ato declaratório do Presidente da República, sobre os limites de uma terra indígena, ficaria sob a aprovação de outro Poder da República.
A proposta do Senador atingi a separação dos poderes, uma das cláusulas pétreas da Constituição Federal. Segundo dispõe o art. 60, § 4º "não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:(…) a separação dos Poderes; (…)" . No mesmo sentido determina o inciso III, § 1º do artigo 354 do Regimento Interno do Senado Federal.
Segundo ensina o jurista José Afonso, "Atribuir a qualquer do Poderes atribuições que a Constituição só outorga a outro importará tendência a abolir o princípio da separação dos Poderes". Ou seja, para considerar uma emenda inconstitucional não é necessário que esta expressamente declare a inconstitucionalidade, é suficiente demonstrar que esta tem tendência de fazer, mesmo que remotamente, com que um Poder realize atribuição exclusiva de outro. No caso em tela está demonstrado que a proposta de emenda a Constituição tende a afrontar o princípio constitucional da independência dos Poderes do Estado.
3 – Conclusão:
Portanto, no nosso entendimento a PEC n.º 38 não deveria ser objeto de deliberação do Senado Federal por tender a abolir Cláusula Pétrea. Não tendo sido este o entendimento da CCJ deverá esta PEC ser rejeitada pelo plenário do Senado Federal por trata de matéria que só pode ser objeto de modificação da Constituição Federal em Assembléia Nacional Constituinte.
Brasília, setembro de 2002.
Cláudio Luiz Beirão
Assessor Jurídico