20/06/2004

Análise Jurídica do Despacho n.º 80/96 do ministro da Justiça, por Rosane Lacerda

I . Introdução

No dia 24 de dezembro p.p. o Diário Oficial da União, seção I, publicou o Despacho n.° 80 da lavra do Ministro de Estado da Justiça, Nelson Jobim, no qual expressou sua decisão acerca dos limites da Terra Indígena Raposa / Serra do Sol localizada no Estado de Roraima.

Como passou a permitir o Dec. 1.775 de janeiro de 96, a proposta de demarcação da área – identificada em 1992 com 1.678.800 ha de ocupação tradicional indígena, recebeu contestações do Governo do Estado de Roraima e de outros, no prazo de 09 de abril conforme o art. 9.° do mencionado Decreto.

Tais contestações receberam pareceres contrários por parte dos advogados do órgão indigenista, que foram acolhidos pelo seu Presidente, mas julgados de modo diverso pelo Ministro da Justiça (Despacho n.° 19 publicado no DOU de 10.07.96.), que determinou a sua devolução à Funai para a realização de novas diligências, juntamente com os autos do procedimento demarcatório, conforme o Inc. II do § 10 do art. 2.° do Dec. 1.775/96.

Encerrando-se em 10 de outubro o prazo para a realização de tais diligências (conforme o inciso anteriormente citado), aguardou-se desde então a decisão do Ministro, que só veio a ser tomada às vésperas do Natal de 1996. 

II . A Decisão Ministerial

Em seu despacho o Ministro Nelson Jobim optou pelo que denominou de “conciliação dos interesses concorrentes”. Desta forma, mesmo declarando julgar improcedentes as contestações, decidiu pela redução dos limites da Terra Indígena em 20%, através da introdução de

“… alguns pequenos ajustes, ditados pelo interesse público, em preservar núcleos populacionais não indígenas, já consolidados, ou em resguardar situações jurídicas estabelecidas pelo próprio Poder Público Federal”.  (Grifamos.)

Desta forma, em sua parte dispositiva, conclui o despacho determinando:

a) a exclusão, da área indígena das 10 propriedades privadas tituladas pelo INCRA a partir de 1982”, e a denominada “Fazenda Guanabara”, de propriedade de Newton Tavares;

b) a exclusão, também dos limites da terra indígena, da sede municipal do recém criado Município de Uiramutã e das vilas existentes como Surumu, Água Fria, Socó e Mutum;

c) a vedação da fruição indígena exclusiva sobre as vias públicas e respectivas faixas de domínio público que existem na área indígena.

Determina por fim à Funai a elaboração de nova planta de identificação com base nos parâmetros explicitados no Despacho, após o que deverão os autos retornar ao Ministério para a edição da competente Portaria Declaratória.

III .  Análise dos fundamentos da decisão Ministerial.

III. a) Quanto à exclusão das fazendas localizadas no interior da Terra Indígena.

            III. a.1. As 10 fazendas tituladas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária [i]

            No item 2.2.3, relativo à “apreciação das manifestações dos interessados”, afirma o Ministro que:

“…embora não sejam suficientes para elidir, por si sós, a caracterização indígena das terras que ocupam, comprovam, contudo, haverem recebido titulações das áreas, por parte do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, que as outorgou com base em levantamento antropológico anterior[ii] e que excluíra tais áreas da delimitação indígena então feita.” (Grifos no original.)

Mais tarde, no item 4.3.2, relativo à “apreciação das questões”, conclui que:

“…tem a Administração Federal o dever ético e político de resguardar os títulos de propriedade outorgados pelo INCRA sobre as áreas então excluídas pela própria FUNAI dos limites da terra indígena.”          (Grifamos.)

De fato, neste ponto como nos demais decididos no Despacho, o ato do Ministro da Justiça se reveste de caráter eminentemente político, porém nem um pouco constitucional, e muito menos ético. Vejamos.

A delimitação a menos realizada pelo GT de 1981, que excluiu tais fazendas, veio a ser posteriormente corrigida pela identificação efetuada em 1992, cuja proposta foi aprovada pelo Parecer n.° 036/DID/DAF/93. O próprio Ministro da Justiça, no Despacho em tela, em nenhum momento afirma e muito menos comprova que tais limites estejam fora da ocupação tradicional indígena.

O que ele afirma – num juízo de valor individual e desprovido de fundamentação científica,  é que o laudo antropológico de 1993 não demonstra “ser esta parte da área indispensável à preservação indígena”.

Observe-se em primeiro lugar que a expressão incorre em imprecisão, uma vez que a Constituição Federal fala em “preservação de recursos naturais” necessários ao bem-estar dos índios, e não de “preservação indígena” como menciona o Ministro.

Em segundo lugar, significa que o próprio Ministro reconhece tais terras como parte dos limites da ocupação tradicional indígena, que, no entanto, por terem sido invadidas (e tituladas em 1982), já não seriam mais indispensáveis aos índios. Ou seja, a invasão de terra indígena teria o efeito jurídico de extinguir um dos elementos que a Constituição define como componentes da ocupação tradicional indígena: a “imprescindibilidade à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem estar” (CF, art. 231, § 1.°).

Em terceiro lugar, ao querer conferir legitimidade aos títulos expedidos pelo INCRA em 1982 sobre tais terras, o Ministro comete um erro inadmissível até mesmo para quem é ainda iniciante em curso jurídico: o de pretender haver direito adquirido contra a Constituição Federal. É que a Carta Política de 1988 dispõe expressamente que:

“§ 6.°. São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo…”  (Grifamos.)

Assim, entender que se possa dar validade a tais atos, é o mesmo que atentar contra este elementar princípio da ordem jurídica, que não reconhece a existência de direito adquirido contra a Constituição.

Observe-se ainda que a razão de ser desta nulidade e extinção constitucionalmente decretadas advém do fato de, na mesma Constituição, estar presente o instituto do INDIGENATO, ou seja, o reconhecimento de os direitos territoriais indígenas são originários, precedendo a formação do próprio Estado Brasileiro.

Para o Ministro, a circunstância de ter a Funai falhado ao excluir tais terras da proposta de demarcação realizada em 1981, levando o INCRA  a proceder à sua titulação em nome de particulares, conduz a um dever ético e político da Administração em resguardar tais títulos. Trata-se esta de uma pretensão absolutamente inconstitucional.

Ora, o Ministro deveria saber, talvez mais do que ninguém, que a única ressalva constitucionalmente prevista contra a nulidade e extinção dos atos que tenham  por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras indígenas, é a ocorrência de relevante interesse público da União conforme disposição de  lei complementar (CF, art. 231, § 6.°). A titulação pelo INCRA, com base numa falha da Funai em 1981, posteriormente corrigida, de nenhum modo caracteriza este relevante interesse público da União. Ademais, inexiste ainda a mencionada lei complementar com base na qual devem ser regulamentadas tais ressalvas.

Deveria também saber o Ministro que o DEVER ÉTICO E CONSTITUCIONAL que tem a Administração Federal em relação às terras indígenas (CF, art. 231, caput) resume-se a demarcá-las, e não a tentar agradar a gregos e troianos com medidas de “conciliação de interesses concorrentes.” Se assim fosse, não teria a Constituição Federal reconhecido o indigenato nem mandado demarcar as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, mas apenas as poucas que não tivessem ainda sido invadidas.

III. a.2.  A Fazenda Guanabara.

Figura no Despacho em tela que a contestação apresentada por Newton Tavares, pretenso proprietário deste imóvel,

“…embora não documente suficientemente a cadeia dominial, ministra indícios de ocupação desde o começo do século, além de ter sido vencedor em ação discriminatória movida pelo INCRA.” (Grifamos.)

Assim sendo,

“de posse privada antiquíssima (…), deverá ser excluída, sem comprometer a integridade da gleba indígena, à luz dos pressupostos constitucionais. É que o referido imóvel (…) é de ocupação privada anterior a 1934, desde 1918 …”     (Grifamos.)

Esta argumentação do titular da pasta da Justiça peca tanto do ponto de vista legal quanto do ponto de vista ético.  Vejamos.

Em primeiro lugar, o Ministro dá prevalência a simples indícios (e apenas indícios) de ocupação antiga da Fazenda Guanabara, contra a antigüidade da ocupação indígena sobre o local, fato totalmente ignorado no Despacho, embora já mencionado no Parecer assinado pelo advogado do órgão indigenista sobre a Contestação apresentada por Newton Tavares[iii].

Informa o Parecer, com base na perícia judicial constante nos autos da Ação n.° 92.1634-09 em andamento na Justiça Federal em Roraima – em que se discute a posse da Fazenda Guanabara,    que ao se iniciar a ocupação do imóvel no início do século, as suas terras continuavam marcadas pela antiga presença indígena, cujo curso normal veio a sofrer constrangimentos por parte dos novos ocupantes e por que não dizer invasores.

Como constatou o perito judicial,

“…as terras reivindicadas atualmente com a designação ‘Fazenda Guanabara’ mantinham-se ocupadas nas primeiras décadas do presente século por índios nativos Macuxi – ancestrais diretos e ascendentes nas 2.° e 3° gerações dos índios Macuxi contemporâneos residentes nesta mesma área, sendo especificamente o ano de 1918 (…), a ocasião provável em que teria ocorrido a chegada e a instalação do primeiro colono na região, na condição de criador particular de gado, o Sr. João Menezes da Silva, …”

Informa ainda o Parecer que no exato local onde hoje encontra-se edificada a casa sede da fazenda “Guanabara”, se situava  naquela época  a aldeia  anteriormente denominada “Warimanakem”, cujo Tuxaua,

“conforme depoimento narrado pela sua filha Tereza, testemunha dos fatos quando ainda era criança, … teria sido assassinado pelo jagunço Ambrósio a mando do mencionado posseiro João Menezes da Silva, o que teria provocado a dispersão dos índios … ” [iv]

de acordo com o costume Macuxi de se abandonar o local de habitação dos falecidos, dando origem assim, às aldeias Amália (Puergdá); Jibóia (A-man); Macaco (Iuargá-Epin); Piaba (Savî ) e Santa Cruz (Xununu-Etamu), todas elas localizadas desde então e ainda hoje no interior das terras ora excluídas da demarcação pelo Despacho Ministerial.

Pois bem. Turbada (e não esbulhada)[v] a posse indígena em 1918 – o que se comprova claramente pela continuidade da sua presença – embora que sob constrangimentos, através da existência no local das cinco aldeias acima mencionadas, veio a Constituição Federal de 1934 a encontrar  o mesmo imóvel, em continuação à turbação praticada. Ou  seja, à data da promulgação da Constituição Federal de 1934, os Macuxi encontravam-se ainda na posse do local, embora que turbada pela presença da fazenda atualmente denominada Guanabara.

A contra senso o Ministro da Justiça, porém, decidiu em seu Despacho considerar apenas a posse particular do imóvel, existente em 1934, de modo a descaracterizar totalmente a posse indígena que àquela época, apesar de todos os constrangimentos ilegais, continuava a se desenvolver no local.

Assim, o Ministro confere peso apenas aos meros indícios de ocupação do local pelos antecessores do Sr. Newton Tavares, em total desconsideração à posse indígena, mais antiga e turbada por aquela.

Em segundo lugar, o fato de o pretenso proprietário do imóvel ter sido vencedor em ação discriminatória movida pelo INCRA nunca deveria ter sido sequer mencionado pelo Ministro, pois completamente descabido como fundamento contra a demarcação da área nestes limites.

A discriminatória, seja judicial ou administrativa, constitui no modo  pelo qual a União ou os Estados, através dos seus órgãos fundiários específicos, apuram a existência de terras devolutas que enquanto tal possam pertencer ao seu patrimônio respectivo. As terras em questão, por serem indígenas, não são devolutas, e portanto não estão legalmente sujeitas a sofrer os efeitos da mencionada ação.

Assim, de modo algum a Discriminatória vale para desconstituir ou tornar sem efeito o caráter da ocupação tradicional indígena sobre a área, muito menos para dar prevalência à ocupação privada sobre esta.

Por tudo isto, é completamente sem sentido e beira o cinismo a afirmação do Ministro de que a exclusão da fazenda não comprometerá a integridade da terra indígena, uma vez que, como vimos anteriormente, naquelas terras incidem também  posse indígena atual, comprovada pela ocupação efetuada por cinco aldeias.

Além disso, o Ministro da Justiça agiu também em desacordo com princípios éticos pelos quais deveria se reger. Localizado no interior das terras da aldeia Santa Cruz, o mencionado imóvel vem ao longo dos anos causando irreparáveis danos, morais e materiais, à população indígena local. O fazendeiro Newton Tavares, beneficiário da decisão,

“…tentou confinar a aldeia e seus habitantes, construindo um muro com um portão trancado,  guardado por homens armados, e uma vala de quatro metros de largura e três de profundidade ao longo de dez quilômetros. Além de estarem impedidos de circularem livremente, os índios também estavam impedidos de caçar, pescar, plantar e construir nas suas próprias terras.

“No dia 5 de julho de 1987, jagunços da fazenda armados agrediram um casal da aldeia Santa Cruz,  espancando o homem e violentando a mulher. O fato foi denunciado à Funai, mas não houve nenhuma providência. No dia seguinte, os Macuxi, em represália, detiveram três jagunços. No dia 11 de julho, a Secretaria de Segurança Pública do Estado comandou uma invasão à aldeia que envolveu 150 homens, entre policiais civis e militares e dois oficiais do Exército. A operação resultou na prisão ilegal de dez índios, entre eles cinco menores de idade, e no espancamento de vários outros, inclusive crianças e uma mulher grávida. O fato teve diversas conseqüências, mas sem que o fazendeiro fosse retirado da Área ou houvesse qualquer punição às arbitrariedades cometidas.

“Em 1990, Manuel Ferreira dos Santos, um outro jagunço da mesma fazenda, após fazer várias ameaças de morte e queimar a casa de índios da aldeia Santa Cruz, assassinou a tiros os índios Damião Mendes e Mário Davis, o último alvejado pelas costas. Levado a julgamento em 10 de novembro de 1993, em função da omissão da Funai, de um péssimo trabalho do Ministério Público Estadual e da hostilidade aos índios existente em Boa Vista, Miguel foi julgado e absolvido.”[vi]  (Grifamos.)

Como se vê, além de não estar legalmente amparado em suas pretensões, o beneficiário do despacho ministerial também é apontado como presença nociva, que não mede atos de violência para consolidar a invasão da área indígena, e o mais grave, tudo isso sob o amparo do próprio poder público.

III.b) Quanto à exclusão das vilas e da sede do Município de Uiramutã, situados no interior da área indígena.

No mencionado relatório do Ministro Maurício Correia este sugere à Administração Pública Federal, quando da demarcação da terra indígena Raposa / Serra do Sol,

“…providências acautelatórias, para que, a par de oficiar essa homologação, não fira direitos que imponham sejam protegidos na aplicação da justiça administrativa, para que não se deixe ao oblívio  e ao relento os chamados civilizados que possam se encontrar no pleno direito, uso e gozo dessas propriedades que lá possuem, e que herdaram muitos deles, de seus pais, avós e tataravós.”[vii]   (Grifamos.)

Julgando agir com base neste entendimento, decidiu o Ministro da Justiça também excluir dos limites a serem demarcados, as vilas e a recém criada sede municipal de Uiramutã, sob o argumento de que :

“… tais áreas de ocupação pública, … , em que o Poder Público mantém órgãos de administração e de prestação de serviços, devem ser preservadas em atenção ao fato social consolidado e em respeito ao próprio interesse público.” (Grifamos.)

Ora, a sugestão de “providências acautelatórias” aos direitos de terceiros ocupantes de terras indígenas, de que trata o Ministro do STF, tanto neste ponto quanto nos relativos às fazendas, não pode ser interpretada como significando um aval para a redução dos limites da área.

Redução de limites de terra indígena, nela deixando os seus invasores, sejam eles quais forem,  não é ato de resguardo a “direitos” de terceiros, uma vez que estes inexistem em terras de comprovada ocupação tradicional indígena conforme o já mencionado § 6.° do art. 231 da Constituição Federal de 1988:

“São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, …” (Grifamos.)

Ao praticar tal ato, o que a Administração Pública está fazendo é cometer violações contra a Constituição Federal,  que determina à União os deveres  de DEMARCAR as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios (CF, art. 231, caput), e PROTEGER E FAZER RESPEITAR  os  seus  direitos  originários de posse permanente e usufruto exclusivo das riquezas naturais de seu solo, rios ou lagos (CF, art. 231, caput e § 2.°). É violar também a cláusula constitucional da INDISPONIBILIDADE das terras indígenas (CF, art. 231, § 4.°).

Os direitos que cabem a terceiros, a serem observados em sede administrativa pela União, são a “indenização de benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé” (CF, art. 231, § 6.°), e o reassentamento, conforme dispõe o próprio Dec. 1.775/96:

“art. 4.°. Verificada a presença de ocupantes não índios na área sob demarcação, o órgão fundiário federal dará prioridade ao respectivo reassentamento, segundo o levantamento efetuado pelo grupo técnico, observada a legislação pertinente.”

Como vimos anteriormente, apenas uma ressalva a tal regra é permitida pela Constituição Federal, e não contempla o que o Ministro denomina de “interesse social consolidado” nem um interesse público qualquer. Esta exceção à nulidade dos títulos e aos atos de ocupação, posse, domínio e usufruto sobre as terras indígenas (e portanto à cláusula da indisponibilidade) tem como critério exclusivamente o

“…relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, …” (CF, art. 231, § 6.°)  (Grifamos.)

Observe-se que tal interesse público, além de ser exclusivamente da União (e não de estados membros ou de municípios), deve ser qualificado como relevante, e não de qualquer magnitude. 

Portanto ao decidir “em atenção ao fato social consolidado” e “em respeito ao interesse público”, que não caracteriza como sendo da União, nem de relevância, o Ministro da Justiça  age em completo desprezo às regras estabelecidas pela Constituição do País, que se destinam à proteção não só do patrimônio público federal como também dos direitos  originários dos povos indígenas.

Também causa espécie a concepção expressa no despacho ministerial, que descaracteriza a ocupação tradicional indígena nos locais em que foram erguidas as vilas. Diz o Ministro:

“… os espaços físicos ocupados por tais aglomerações urbanas não se incluem nos pressupostos constitucionais elencados no art. 231, § 1.°: (a) não são habitados exclusivamente por indígenas; (b) não são utilizados, nem utilizáveis, para atividades produtivas indígenas; (c) não são imprescindíveis para a preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem estar, posto que tal requisito é atendido por outros espaços; e (d) não são necessárias   à   sua   reprodução   física   e  cultural,  segundo  os  seus  usos, costumes e tradições. O fato incontestável da existência de tais aglomerados e do longo tempo a que remontam demonstra a sua não inclusão nos círculos constitucionais definidores das terras indígenas.” (Grifamos.)

Trata-se exatamente da interpretação restritiva ao § 1.° do art. 231 da Constituição Federal, que desde os primeiros meses de sua gestão à frente da Pasta da Justiça o Ministro Jobim já ameaçava adotar.

Como informa o Parecer n.° 036/DID/DAF/93, que aprovou o relatório de identificação realizado em 92, as pequenas vilas preservadas pelo Ministro no interior da Terra Indígena Raposa / Serra do Sol,

“…funcionam como ponto de apoio e de abastecimento para os ocupantes da área, em especial os vaqueiros das fazendas, garimpeiros e funcionários públicos.”

A continuidade de sua presença no interior da área, agora legitimada pelo Despacho ministerial, significa mais do que a consolidação das invasões até hoje praticadas naquela área, mas o consentimento para o desenvolvimento de focos permanentes de conflitos que se projetarão para o futuro.

III.c) Quanto à vedação da fruição indígena exclusiva sobre as vias públicas no interior da Terra Indígena.

A decisão a este respeito foi dada sem maiores esclarecimentos além da rápida menção ao “interesse público”, de modo a

“…assegurar a livre circulação de pessoas e veículos em tais estradas”.

Tais vias públicas, à exceção da BR-202, que liga à sede do Município de Normandia, consistem todas em estradas estaduais, utilizadas principalmente para o trânsito de garimpeiros ilegais no interior da área.

Novamente aqui o Ministro da Justiça viola a cláusula constitucional da indisponibilidade das terras indígenas (CF art. 231, § 4.°), e a regra também constitucional pela qual a única possibilidade de legitimação a atos de ocupação, domínio e  posse de terceiros sobre tais terras encontra-se na ocorrência de relevante interesse público da União, prevista em lei complementar (CF, art. 231, § 6.°).

IV) Conclusões

O Ministro de Estado da Justiça, no Despacho n.° 80, de 20.12.96 (DOU 24.12.96, Seção I, p. 28282), em que ordena a redução de limites da Terra Indígena Raposa / Serra do Sol,

a) considera válidos os títulos de propriedade concedidos a particulares pelo INCRA, em detrimento da ocupação tradicional indígena;

b) dá primazia a meros indícios de ocupação particular, em total desconsideração à anterior e continuada posse indígena nas mesmas terras;

c) considera a ocupação particular em terra indígena na data do advento da Constituição Federal de 1934, sem questionar-lhe a legitimidade em relação à sua origem;

d) considera ação discriminatória de terras devolutas da União como meio válido para a comprovação de direitos de particulares sobre as terras tradicionalmente ocupadas por indígenas;

e) considera o “interesse social” de invasores e o interesse público municipal como válidos para dar legitimidade à ocupação, posse e domínio sobre as terras indígenas;

Por tudo isto, o Ministro da Justiça:

a) viola o princípio jurídico da inexistência de direitos adquiridos contra a Constituição, e viola a própria Constituição Federal de 1988, especialmente seu art. 231, nos seguintes dispositivos:

– o caput, que determina à União o dever de demarcar e proteger as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios;

– o § 4.°, que grava as terras indígenas com as cláusulas da indisponibilidade e da inalienabilidade;

– o § 6.°, que declara nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios;

– o mesmo § 6.°, onde exige o relevante interesse público da União, segundo o disposto em lei complementar, para dar validade a tais atos considerados nulos;

b) não resolve o problema da terra indígena em questão, favorecendo, pelo contrário, a permanência e o crescimento das invasões, e estimulando a continuidade e provavelmente o aumento dos já alarmantes índices de violência contra indivíduos e comunidades indígenas no estado de Roraima, especialmente de Raposa / Serra do Sol;

c) abre perigosos e graves precedentes para a situação de muitas outras terras indígenas no restante do País, demarcadas ou ainda a demarcar, cujas invasões semelhantes (por fazendas existentes em 1934, ou de titulações recentes pelo INCRA; pequenas vilas e estradas estaduais) podem ser agora fortalecidas;  

Tratou-se, enfim, de decisão exclusivamente política, onde os próprios pareceres elaborados pelo departamento jurídico do órgão, com o auxílio de advogados contratados e pagos para o desenvolvimento da tarefa, foram completamente ignorados e portanto inócuos, numa situação que o Conselho Indigenista Missionário – CIMI já previa e denunciava desde o início.

Por tudo isto impõe-se ao Ministro – que está a pretender uma vaga no Supremo Tribunal Federal, que reveja a decisão, fazendo incluir nos limites da Terra Indígena Raposa / Serra do Sol as áreas onde se encontram a Fazenda Guanabara, as outras 10 Fazendas anteriormente mencionadas, os locais onde se encontram as vilas e a recentíssima sede do município de Uiramutã, e reconheça os direitos exclusivos dos índios sobre as vias estaduais lá existentes, conforme ampara a Constituição Federal que estabelece, como única ressalva, a ocorrência de casos de relevante interesse público da União Federal.

É o parecer, SMJ.

Brasília – DF, 13 de janeiro de 1997.

Rosane Lacerda
Assessora Jurídica do Conselho Indigenista Missionário – Cimi

 



[i] FAZENDA DOIS IRMÃOS , de  Alaísa Valéria Paracat Costa; FAZENDA MARAVILHA, de Roberto José da Costa Neto; FAZENDA NOVA ESPERANÇA, de Raimundo de Jesus Cardoso Sobrinho; FAZENDA CEARAZINHO, de Severiano Barroso Sales; FAZENDA CARINAMBU, de João Gualberto Sales; FAZENDAS NOVO DESTINO E JACARÉ, de Valmir Gonçalves de Oliveira; FAZENDA RONDÔNIA, de Edimilson Peixoto Sales; FAZENDA TREZE DE MAIO, de Domício de Souza Cruz; FAZENDA MANGUEIRA, de Napoleão Zeolla Machado.

[ii] Refere-se ao relatório de identificação realizado em 1981, que concluía pela proposta de demarcação de 1.347.810 ha.

[iii]  Otávio Uchoa Guedes Cavalcanti. Brasília, 05 de junho de 1996.

[iv] Otávio Uchoa, idem, p. 6.

[v]  A diferença entre os atos de turbação e de esbulho consistem em que na primeira o possuidor ainda se mantém, de algum modo,  na posse das terras, apesar da invasão praticada por terceiro. A situação de esbulho, pelo contrário, implica no total desapossamento. 

[vi]  Euclides Pereira Makuxi, Coordenador do Conselho Indígena de Roraima – CIR. Roraima, um Estado de Violência Institucionalizada. In: Povos Indígenas no Brasil 1991/95 – Instituto SócioAmbiental, 1996, p. 167.

[vii]  STF, Ministro Maurício Correia, Relatório na Ação Direta de Inconstitucionalidade n.°1512-5 / RR, p. 15.

Fonte: Cimi - Assessoria Jurídica
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