Considerações ao pacote indigenista do presidente FHC assinado nos dias 05 e 08 de janeiro de 1996, por Rosane Lacerda
I. Introdução
Desde o terceiro mês do Governo Fernando Henrique Cardoso – março de 1995, o Ministro da Justiça Nelson Jobim anunciava a intenção do Executivo Federal em alterar o Decreto nº 22 de 04 fevereiro de 1991 que dispunha sobre o procedimento de demarcação de terras indígenas. O objetivo da alteração era incluir no procedimento demarcatório o princípio do "contraditório" e da "ampla defesa" aos ocupantes das terras indígenas. Como conseqüência, as terras então demarcadas seriam objeto de revisão, exceto as que já se encontrassem registradas em cartório e no patrimônio da União como terras indígenas.
Nos nove meses que se seguiram, o CIMI opôs-se radicalmente à decisão expressa pelo ministro, denunciando-a como um violento retrocesso político e um acinte às disposições constitucionais de proteção aos direitos indígenas e ao patrimônio público nacional, consagradas em 1988. Através da mobilização da opinião pública internacional – sobretudo dos organismos europeus de cooperação econômica e humanitária, de algum espaço na imprensa nacional, do apoio à mobilização indígena através da Comissão Executiva do CAPOIB e organizações indígenas regionais, e do incentivo à rearticulação do Fórum em Defesa dos Direitos Indígenas, a entidade conseguiu contribuir concretamente para impedir a realização dos planos do governo durante o ano de 1995. Ao mesmo tempo, contudo, o governo manteve paralisados todos os procedimentos demarcatórios durante o período.
Agora, aproveitando-se das férias e recesso de início de ano da maioria dos assessores e diretores do CIMI, bem como de grande parte dos dirigentes de organizações indígenas, e não-governamentais atuantes na defesa dos direitos indígenas, o Presidente Fernando Henrique Cardoso assinou, no último dia 08 de janeiro (segunda-feira) o Decreto nº 1.775 através do qual adota uma nova sistemática de demarcação de terras indígenas, conforme o pretendido desde março de 1995. O Decreto, publicado no Diário Oficial da União em 09 de janeiro, revoga enfim o mencionado Decreto nº 22/91 juntamente com o Decreto nº 608, de 20 de julho de 1992.
Antes disso, como já vinha anunciando, assinou na sexta-feira 05 de janeiro, as homologações das demarcações de 17 terras indígenas localizadas nos Estados do Amazonas, Acre, Bahia, Pernambuco, Roraima, Pará, Mato Grosso e Rio de Janeiro. O pacote não contemplou, contudo, a Terra Indígena Raposa Serra do Sol (RR), como se anunciava anteriormente.
Tecemos a seguir, à guisa de uma primeira contribuição, um comentário em linhas gerais sobre o Pacote, seus significados e implicações jurídicas e políticas.II. Comentários
a) o tipo de terras a que se destina o Decreto nº 1.775/96:
Diferentemente dos Decretos que lhe antecederam (88.118/83; 94.945/87; 22/91), este não faz qualquer menção à demarcação das terras reservadas ou de domínio indígena. Destina-se apenas às terras tradicionalmente ocupadas, o que pode significar a edição posterior de um outro decreto a respeito daqueles casos.
Este detalhe deve ser considerado pois apesar de a grande importância estar nas terras de ocupação tradicional, casos há em que povos ou comunidades indígenas, estando impossibilitados de nelas se localizarem ou não dispondo mais de terras daquele tipo, necessitam de novas terras que sejam demarcadas enquanto reservas indígenas, isto é, com todas as implicações legais que o Estatuto do Índio confere a este tipo de terra.b) a sistemática adotada:
A nova sistemática, adotada pelo Decreto n 1.775, divide-se basicamente em cinco fases:
b.1) identificação (art. 2º, §§ 1º a 6º)
São os estudos destinados à coleta de provas que fundamentam a demarcação. Aí nos chamam à atenção os seguintes pontos:
1º. A falta de um caráter interdisciplinar nos trabalhos de identificação, visto que o maior peso é dado aos estudos antropológicos, enquanto que dados relevantes como os etno-históricos, sociológicos e ambientais, são apenas complementares. Este detalhe me parece importante porque, como sabemos, em muitos casos, dados como os etno-históricos, a exemplo dos relativos a povos expulsos de parcelas significativas de suas terras (como os do NE, SD, Sul e MS) possuem dimensão significativa.
2º. O fato aparentemente implícito de o antropólogo cujo laudo fundamentará a demarcação não pertencer aos quadros da Funai e a possibilidade de também o grupo técnico ser formado por servidores estranhos ao órgão. Quem serão, de onde virão estes especialistas?
3º. A aparente dissociação entre os trabalhos do antropólogo e do grupo técnico. O primeiro faria um trabalho independente do segundo. Aliás, ao que parece o grupo técnico seria coordenado por outro antropólogo que não o anterior, o que nos leva a prever que eventuais divergências entre ambos poderão causar impasses prejudiciais ao andamento dos trabalhos e seu resultado;
4º. O fato de em nenhum momento o Decreto explicitar a necessidade de os estudos de identificação virem a atender ao disposto no § 1º do art. 231 da Constituição Federal, ou seja, demonstrar a ocupação tradicional indígena segundo os usos, costumes e tradições indígenas.
Quanto aos demais parágrafos que compõem a fase de identificação, as diferenças em relação ao extinto Decreto 22/91 são mínimas. Acrescenta-se prazo de vinte dias a partir de solicitação do órgão indigenista para que os órgãos fundiários estaduais e municipais designem técnicos à participação no levantamento fundiário das ocupações não-indígenas incidentes; mantém-se a participação nos trabalhos do "grupo indígena envolvido"; a participação de "outros órgãos públicos, membros da comunidade científica e especialistas sobre o grupo indígena envolvido" a convite do grupo técnico, antes permitida pelo Decreto 22/91, é agora substituída pela "colaboração" dos mesmos, também a convite, excluindo-se no caso os especialistas sobre o grupo indígena envolvido; mantém-se em trinta dias (a partir da publicação do ato de constituição do grupo técnico) a obrigatoriedade de órgãos públicos e a faculdade de entidades civis prestarem informações sobre a área em identificação; e, por fim, mantém-se a obrigatoriedade de, ao concluir os trabalhos, o grupo técnico enviar relatório circunstanciado ao órgão indigenista, caracterizando a terra indígena a ser demarcada. Importante observar que aí a demarcação passa pelo seu primeiro momento decisivo, que é o crivo do Presidente do órgão indigenista oficial para aprovar ou não o relatório de identificação (parte inicial do § 7º). Só obtendo esta aprovação é que a demarcação segue adiante.
b.2) contestação (art. 2º, §§ 7º a 9º)
É aqui que encontramos uma das piores novidades do Decreto nº 1.775/96: a possibilidade de contestação por terceiros ao relatório de identificação, ou seja, o "contraditório" pretendido pelo Governo FHC desde março de 1995. Para tanto, ele inicialmente estende a obrigatoriedade de publicação do relatório (e no Decreto 22/91 prevista apenas para o Diário Oficial da União), para o Diário Oficial do estado onde se localize a terra indígena, afixando-o também, juntamente com o memorial descritivo e mapa da área, na sede da Prefeitura Municipal correspondente (art. 2º, § 7º). O objetivo da amplitude desta publicação é favorecer, a todos quantos possam se interessar, o conhecimento quanto à intenção de se demarcar determinada terra indígena para que tenham então a oportunidade de virem a se manifestar a seu respeito (contrariamente, é claro).
b.2.1) manifestação de Estados, Municípios e "demais interessados"
Prevê o decreto que contra a proposta de demarcação podem se manifestar "Estados e Municípios em que se localize a área…" e "demais interessados". A contestação serviria ao propósito de estes "interessados" requererem "indenização", ou demonstrarem "vícios, totais ou parciais, do relatório" de identificação. Para tanto, apresentariam ao órgão indigenista um documento escrito com a fundamentação de seu pedido e, juntamente com este, as "provas pertinentes, tais como títulos dominiais, laudos periciais, pareceres, declarações de testemunhas, fotografias e mapas" (art. 2º, § 8º). É justamente neste ponto, em que se coloca o "contraditório" que surgem com mais clareza a má-fé e inconstitucionalidade do pretendido pelo Decreto.
Quanto às pessoas a se manifestarem, não é segredo para ninguém o fato de as oligarquias estaduais e municipais representarem ainda hoje pontas-de-lança dos interesses anti-indígenas. Criadas às custas de massacres e expulsões de muitos povos, não são poucas as cidades que creditam o seu "desenvolvimento" à ocupação dessas terras, enquanto que na verdade apenas uma elite privilegiada é que dele se beneficia. Os índios são sistematicamente hostilizados nesses locais e os representantes dessas elites tanto no Executivo quanto no Legislativo e até mesmo no Judiciário, não medem esforços para açambarcar definitivamente as terras indígenas para si e seus apadrinhados. Foi justamente para proteger os indígenas do raio de ação destes interessados que o sistema jurídico brasileiro atribuiu ao plano federal a competência para a ação legislativa, executiva e judicial atinente a estes povos. Incluir Estados e Municípios na possibilidade de contestação às demarcações consiste então ao nosso ver num retrocesso moral e politicamente questionável.
Quanto aos "demais interessados", podem ser quaisquer pessoas. Não se exige delas, nem dos Estados e Municípios, qualquer condição, qualquer requisito prévio que as habilitem a se manifestar em relação aos autos da demarcação contestada. Assim, nos parece que qualquer um, mesmo que não tenha interesse direto no caso, pode contestar a demarcação. Entretanto, considerando-se constitucionalmente a questão, vemos que Estados, Municípios e outros não poderiam ser considerados na qualidade de "interessados", vez que pelo que determina a Constituição Federal não pode haver interesse de terceiros em terras indígenas, pois os únicos interessados são a União (com relação ao domínio) e os próprios indígenas (em relação à posse e usufruto das riquezas do solo, rios e lagos nelas existentes).
Em segundo lugar, com relação às "provas". Possibilita o decreto a utilização de "títulos dominiais" como uma das "provas pertinentes". Ora, segundo a Constituição Federal (art. 231, § 6º) "São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse" das terras tradicionalmente ocupadas… Isto significa que a utilização de títulos dominiais, assim como quaisquer outros documentos como contratos de arrendamento, doação etc, é absolutamente inconstitucional.
Terceiro, quanto aos direitos pleiteados de indenização e demonstração de vícios, não especifica o decreto o tipo de indenização pretendida – se quanto ao valor das benfeitorias ou quanto ao valor da terra. Uma vez que Constituição Federal já determina que as benfeitorias (mas só as derivadas de ocupação de boa-fé) devem ser indenizadas, logo não seria para estes que a possibilidade estaria dirigida, vez que não seria necessário se pleitear indenização de benfeitorias. Estaria dirigida, então, para a pretensão de indenização da terra (imóvel e suas benfeitorias). Mas aí, nesta hipótese, teríamos mais um caso de inconstitucionalidade uma vez que a Constituição reza que "a nulidade e a extinção (dos atos que tenham por objeto a ocupação, a posse e o domínio) não geram direito a indenização ou a ações contra a União.
Quanto ao prazo para esta contestação, poder-se-ia imaginar que se iniciasse apenas com a publicação do relatório, uma vez que daí é que se teria conhecimento quanto ao que se iria contestar. Seria então aberto um prazo para a contestação. No entanto não é isto que ocorre. A manifestação dos "interessados" pode se dar "desde o início do procedimento demarcatório até noventa dias após a publicação do relatório". Desta forma, os trabalhos do antropólogo anteriormente mencionado e do grupo técnico já podem se iniciar sob toda a pressão exercida "legitimamente" por estas contestações. Observe-se, além disso, que não há qualquer disposição no sentido de delimitar essas manifestações, ou seja, quem quiser se manifestar pode fazê-lo por diversas ocasiões e não de uma vez só. Imagine-se o tumulto provocado por esta situação. Enquanto isso, os elementos de prova da ocupação indígena terão que ser levantados e trabalhados dentro de uma prazo bastante exíguo…
b.2.2) parecer do órgão indigenista oficial
Encerrado o prazo para as apresentações das contestações, o órgão indigenista passa a ter sessenta dias para a elaboração de pareceres em resposta a estas manifestações contrárias. Findo este prazo, toda a documentação deve ser entregue ao Ministro da Justiça. Imaginemos uma terra indígena com cerca de duzentos grandes e médios invasores, por exemplo, todos ou boa parte deles apresentando as suas razões e "provas pertinentes". Só nesta área seriam então necessários cerca de duzentos pareceres a cargo do órgão indigenista…
b.3) decisão (art. 2º, § 10º)
É nas mãos do Ministro da Justiça que o decreto concentra todo o poder para decidir quanto a quem tem razão: se o antropólogo e a equipe técnica ou os terceiros "interessados", ou seja, se a terra vai ou não ser demarcada. A Funai é completamente excluída da decisão. Para tanto, o Ministro tem um prazo de trinta dias dentro dos quais deve ou decidir (aprovando ou rejeitando a demarcação) ou mandar investigar mais quanto a outras questões que estejam postas. Neste último caso ele age determinando a realização de "todas as diligências que julgue necessárias". Dá-se um prazo de 90 dias para o cumprimento destas diligências mas, na verdade, o que se tem aí é mais uma medida protelatória, possibilitada e justificada, é claro, pelos questionamentos trazidos pelo contraditório.
Se a decisão for favorável à demarcação, ele faz declarar, mediante portaria, a ocupação tradicional indígena. Se não, ele simplesmente devolve os autos para que sejam arquivados pelo órgão indigenista, pelo não atendimento não só ao disposto no § 1º do art. 231 da Constituição (que caracteriza a terra de ocupação tradicional indígena) como a "demais disposições pertinentes". O que seriam estas "demais disposições pertinentes"? Para que considerá-las e não apenas o § 1º do art. 231 da Constituição que é o que realmente interessa para caracterizar a terra como tradicionalmente ocupada ou não? Parece-nos então bastante obscuros os critérios do decreto a serem adotados pelo Sr. Ministro para a decisão com relação ao futuro das terras indígenas.
b.4) homologação (art. 5º)
Uma vez realizada a demarcação conforme estabelecido no Decreto (será que alguma chegará a tanto?), esta precisa ainda passar pelo crivo do Presidente da República, que lhe confirmará a validade através de um decreto de homologação. Não há aqui nenhuma novidade ou diferença quanto ao Decreto 22/91.
b.5) registro (art. 6º)
Recebendo a homologação do chefe do Executivo Federal, o documento é encaminhado pelo órgão indigenista oficial a registro em cartório imobiliário da comarca onde se localiza a terra indígena e na Secretaria do Patrimônio da União (SPU). A novidade é que o novo decreto estabelece um prazo de trinta dias a contar da data de publicação do decreto de homologação, para que o registro seja efetuado. O Decreto 22/91 não previa este prazo.c) o reassentamento de ocupantes não-indígenas (art. 4º)
Diz o decreto que será priorizado pelo órgão fundiário federal, mas não diz quando. No caso do Decreto 22/91, este reassentamento já poderia ser feito durante a própria demarcação. Neste sentido o Decreto 22 era mais coerente pois a Constituição Federal determina que os direitos de posse e usufruto dos índios, sendo originários, não dependem da demarcação.d) casos anteriores e pendentes (art. 3º e art. 9º)
É nestes dois artigos que o Decreto 1.775/96 põe seriamente em risco as demarcações em andamento e as já efetuadas. No art. 3º, ao determinar que a validade das identificações feitas anteriormente dependem de sua compatibilidade com "os princípios estabelecidos" pelo decreto – que são, obviamente, o "contraditório" e a "ampla defesa" aos invasores das terras indígenas, ele praticamente sepulta todos os trabalhos já desenvolvidos de comprovação da ocupação tradicional indígena pelo órgão indigenista. Podemos dizer, portanto, que todas as terras cujos procedimentos administrativos de demarcação já tenham inclusive obtido declaração ministerial de ocupação, podem ser revistas.
Mais, nem mesmo se estiverem homologadas estas demarcações estarão a salvo. Dispõe o art. 9º do Decreto que basta que nestes casos não tenha havido ainda o registro para que os "interessados" possam manifestar-se, com fundamentação escrita e através de "provas" documentais e testemunhais, para requerer indenizações ou apenas demonstrar vícios do relatório de identificação. Neste caso o prazo para a manifestação destes "interessados" é de noventa dias, a contar da última terça-feira, 09 de janeiro de 1996.
Nos casos específicos em que estas manifestações atinjam áreas já homologadas e não apenas identificadas ou delimitadas, a decisão sobre o que vai para o Presidente da República a quem o Ministro da Justiça irá propor o que ele entender como "providências cabíveis", como por exemplo a revogação do decreto de homologação, o que significa, entre outras coisas, um atestado de ilegitimidade dos atos praticados pela administração pública.e) índios isolados (art. 7º)
No caso específico das áreas onde se localizem grupos indígenas isolados, mais um absurdo é declarado pelo decreto: ao invés de determinar ou possibilitar a tomada de providências para a salvaguarda da integridade física e cultural destes grupos (extremamente vulneráveis nos casos de contatos com os regionais) através de medidas especiais ou adequadas de proteção, o decreto, inversamente prevê a possibilidade de "disciplinamento" do ingresso e trânsito de terceiros nestas áreas, ou seja, admitindo a possibilidade, em último caso, de sua invasão, e mais, colocando que o órgão indigenista "poderá" (e não "deverá") tomar as providências necessárias à proteção dos índios. O dispositivo serve, ademais, de pretexto ao ressurgimento da intenção do governo em fazer uso do poder de polícia para arvorar-se no direito a conceder ou não permissão para o ingresso em terra indígena.f) as instruções necessárias à execução do decreto (art. 8º)
São atribuídas ao Ministro da Justiça e não ao Presidente da Funai como se previa o Decreto 22/91, num exemplo da concentração de poderes nas mãos daquele.
III. Resumo
Em resumo o Decreto nº 1.775 de 09 de janeiro de 1996:
– transforma o procedimento da administração pública Federal de explicitação de limites da ocupação tradicional indígena em "processo", ou seja, inclui no seu âmbito a contestação por parte de Estados, Municípios e quaisquer "interessados";
– permite que nestas contestações sejam admitidos como meio de prova títulos de propriedade e outros, que a Constituição Federal em art. 231 § 6º já considera nulos, extintos e sem efeitos jurídicos justamente por terem por objeto a ocupação, domínio e posse das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios;
– desconsidera, por conseguinte, a mesma Constituição Federal segundo a qual os índios possuem direitos originários de posse permanente sobre a terra e usufruto exclusivo de suas riquezas naturais de solo, rios e lagos e que esses direitos são também inalienáveis, imprescritíveis e indisponíveis;
– considera legítima a pretensão de Estados, Municípios e quaisquer "interessados" requererem indenização contra a demarcação, quando a própria Constituição Federal exclui essa possibilidade ao dizer que não geram a nulidade e extinção dos títulos de terceiros em terras indígenas, "direito a indenização ou a ações contra União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé";
– permite que as contestações sejam feitas a qualquer momento e por diversas oportunidades, desde o início da identificação e delimitação da área até noventa dias após a publicação de seu relatório, fazendo com que estes trabalhos, destinados à comprovação da posse indígena se dêem sob grande pressão e tumulto;
– condiciona a proteção da posse indígena à demarcação, ao excluir a previsão de reassentamento de posseiros concomitantemente aos trabalhos demarcatórios (na vigência do Decreto 22/91 o reassentamento simultâneo era previsto);
– permite que sejam revistos, a pedido de quaisquer "interessados" todos os trabalhos demarcatórios ainda em andamento e até mesmo as áreas homologadas e não registradas; manifestações contra as homologações assinadas na vigência do Decreto 22/91 poderão ser feitas num prazo de noventa dias, contados a partir da data da publicação do Decreto 1.775, ou seja, 09 de janeiro último;
– exclui a possibilidade de revisão (para ampliação) de terras insuficientes para a sobrevivência de povos indígenas, antes previsto pelo Decreto 22/91;
– permite a utilização de ingresso e trânsito de terceiros em terras onde existam grupos indígenas isolados ao mesmo tempo em que desobriga a Funai quanto às providências necessárias à sua proteção, inversamente ao que colocava o Decreto 22/91;
– concede extremos poderes ao Ministro da Justiça a quem cabe, inclusive, determinar o arquivamento do processo de demarcação não apenas por entender não caracterizada a ocupação tradicional indígena mas também por outros motivos não especificados.
IV. Conclusões
Este elenco de medidas, inconstitucional em seus pontos mais importantes, vem apenas comprovar que a verdadeira preocupação do Presidente Fernando Henrique Cardoso e do Ministro Nelson Jobim com o Decreto 22/91 nunca foi a constitucionalidade ou não do mesmo, mas o aproveitamento da oportunidade para golpear os direitos constitucionais dos povos indígenas à terra, criando obstáculos à sua efetivação. O Decreto 1.775 de 08 de janeiro de 1996, transforma em letra morta vários dispositivos constitucionais referentes aos direitos indígenas, abrindo as terras do patrimônio público à sanha especulativa de interesses particulares e escusos, ao mesmo tempo em que induz a manutenção e acirramento de conflitos entre índios e pequenos posseiros.
Além disso, faz jogar por terra, através da possibilidade de revisão das identificações, delimitações e homologações, o investimento (humano e financeiro) que já se empenhou em todos estes anos. Vidas de indígenas e de missionários abnegados, bem como recursos públicos, nacionais e estrangeiros, são assim jogados fora.
A medida atinge inclusive as homologações assinadas na sexta-feira anterior à publicação do Decreto. As 17 homologações, referentes a terras indígenas nos Estados do Amazonas, Acre, Bahia, Pernambuco, Roraima, Pará, Mato Grosso e Rio de Janeiro, foram feitas nesta oportunidade com o objetivo de divulgar positivamente a imagem do Governo e anular ou amenizar as reações contrárias ao novo Decreto. Contudo são também passíveis, desde a última segunda-feira (08 de janeiro), de serem questionadas por quaisquer interessados e depois revogadas. É importante inclusive que as comunidades e povos a que se referem estas homologações sejam devidamente informados quanto a esta circunstância.
Trata-se, portanto, de um grande retrocesso em termos de política indigenista e uma grande vitória dos interesses antiindígenas, que nunca desistiram do seu intento de se apoderar, definitivamente, das terras indígenas e suas riquezas naturais.
Recife-PE, 11 de janeiro de 1996.
Rosane Lacerda
Assessora Jurídica do Conselho Indigenista Missionário – Cimi