O Governo Lula e a visão dos Povos Indígenas como “potenciais de risco à estabilidade institucional”, por Rosane Lacerda
I – Introdução
Desde os primórdios da formação do Estado Brasileiro, as populações indígenas sempre foram objeto de atenção da esfera militar de governo.
Ao longo do Século XX esse interesse pela questão indígena sempre esteve presente, variando de intensidade conforme o grau de interferência dos militares na condução política do país. Em 1934, por exemplo, o Decreto n.º 24.700, de 12 de julho de 1934, chegou mesmo a subordinar o Serviço de Proteção aos Índios – SPI, ao Ministério da Guerra.
Sucedendo o SPI em 1967, a Fundação Nacional do Índio – Funai, foi durante cerca de quinze anos comandada por militares: Oscar Jeronymo Bandeira de Mello, Ismarth Araújo de Oliveira, João Carlos da Veiga, Paulo Moreira Leal, Gérson da Silva Alves, Airton Alcântara e Cantídio Guerreiro Guimarães.
Em 1983, através do Decreto n.º 88.118, o General J.B. Figueiredo, então Presidente da República, instituiu, no âmbito do procedimento administrativo de demarcação das Terras Indígenas, o Grupo de Trabalho Interministerial (GTI).
O “grupão”, como era chamado, tinha em sua composição o Ministro Extraordinário para Assuntos Fundiários (MEAF), cujo titular – o General Danilo Venturini, acumulava também a função de Secretário-Geral do Conselho de Segurança Nacional.
Nos termos do Decreto 88.118/83, cabia ao “grupão” a apreciação das propostas de demarcação das terras indígenas formuladas pela Funai, e aos Ministros do Interior e do MEAF a decisão quanto às demarcações.
Pouco depois, já sob o advento de José Sarney na Presidência da República, o processo de militarização da questão indígena foi aprofundado, na criação do “Projeto Calha Norte”, e na edição dos Decretos n.º 94.945/87 e 94. 946/97.
Elaborado por um GT Interministerial formado por solicitação da Secretaria-Geral do Conselho de Segurança Nacional – SGCSN, o Projeto Calha Norte avocava o controle da política indigenista do governo federal.
Um ano mais tarde, em 1987, as concepções da SGCSN acabaram sendo expressas nos Decretos n.º 94.945/87 e 94. 946/87, o primeiro dando nova sistemática ao procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas, e o segundo estabelecendo tipos diferentes de terras indígenas (terras indígenas e “colônias indígenas”) a serem demarcadas e tratadas de modo distinto pelo Estado, conforme um suposto “grau de aculturação”das comunidades indígenas.
O Dec. 94.945/97 ampliou mais ainda a órbita de interferência militar nos procedimentos administrativos de demarcação, instituindo, para os trabalhos de identificação e delimitação, uma Equipe Técnica formada por representantes de diversos órgãos, inclusive da Secretaria-Geral do Conselho de Segurança acional, mais tarde substituída pela Secretaria de Assessoramento da Defesa Nacional – Saden, da Presidência da República. Além da Equipe Técnica, a proposta de demarcação elaborada pela Funai deveria ser submetida, ainda, ao “Grupão Interministerial”, concebido originalmente pelo General Danilo Venturini (1983), devendo, ao final, ser decidida pelos Ministros da Agricultura e do Interior, e, em se tratando de Faixa de Fronteira, também pelo Secretário-Geral da Seden-PR, à época o General-de-Brigada Rubem Bayma Denys.
Mesmo o processo de democratização, com a assunção de dirigentes civis, eleitos pelo voto popular, não tem sido suficiente para desfazer a questão indígena como objeto de interesse militar.
Pouco antes do término de seu mandato, o então Presidente Fernando Henrique Cardoso editou o Decreto n.º 4.412, de 7 de outubro de 2002, através do qual passou a dispor sobre a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal nas terras indígenas. O decreto passou a permitir a ambas as instituições não apenas o ingresso e trânsito em terra indígena para operações e deslocamento, estacionamento, patrulhamento, policiamento e demais operações e para atividades relacionadas a segurança e integridade do território nacional, garantia da lei e da ordem e segurança pública (art. 1.º, I), e “implantação de programas e projetos de controle e proteção da fronteira” (art. 1.º, III) como passou também a permitir, nas terras indígenas, a
“instalação e manutenção de unidades militares e policiais, de equipamentos para fiscalização e apoio à navegação aérea e marítima, bem como das vias de acesso e demais medidas de infra-estrutura e logística necessárias” (art. 1.º, II) (Grifamos.)
Nos termos do Decreto, essa instalação de unidades militares e policiais em terras indígenas fica condicionada ao encaminhamento prévio de plano de trabalho à Secretaria-Executiva do Conselho de Defesa Nacional (art. 2.º), a quem caberá facultativamente, e não obrigatoriamente, solicitar manifestação da Fundação Nacional do Índio – Funai acerca de eventuais impactos em relação às comunidades indígenas das localidades objeto das instalações (art. 2.º, parágrafo único)
Agora, a Portaria n.º 15 – CH/GSI, de 11 de maio de 2004, do Ministro Chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, vem designar, no âmbito da Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional, do Conselho de Governo, a criação de Grupo de Trabalho destinado a propor uma nova política indigenista.
Veremos aqui como esta proposta encontra-se delineada, e o significado que possui como movimentação tendente à implementação de uma política indigenista focada na ótica de sustentação de interesses e concepções militares.
II – O Conselho de Governo e a Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional.
A Lei n.º 10.683, de 28 de maio de 2003, que trata da “organização da Presidência da República e dos Ministérios e dá outras providências”, dispõe em seu art. 7.º quanto à existência do Conselho de Governo, a quem atribui a competência para
“assessorar o Presidente da República na formulação de diretrizes de ação governamental”.
Nos termos do inciso II do mencionado dispositivo, o Conselho possui, como um de seus níveis de atuação, as denominadas Câmaras do Conselho de Governo,
“criadas em ato do Poder Executivo, com a finalidade de formular políticas públicas setoriais cujo escopo ultrapasse as competências de um único Ministério”.
Encontram-se hoje em funcionamento as seguintes Câmaras do Conselho de Governo:
– Câmara de Política Econômica (Decreto n.º 4.182, de 04/04/2002);
– Câmara de Políticas de Infra-estrutura (Decreto s/n.º, de 21/03/2003);
– Câmara de Política Social (Decreto n.º 4.714, de 30/05/2003);
– Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (Decreto n.º 4.766, de 26/06/2003);
– Câmara de Política de Recursos Naturais (Decreto n.º 4.792, de 13/07/2003);
– Câmara de Políticas de Integração Nacional e Desenvolvimento Regional (Decreto n.º 4.793, de 23/07/2003)
– Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional (Decreto n.º 4.801, de 06/08/2003);
– Câmara de Comércio Exterior (Camex) (Decreto n.º 4.732, de 10/09/2003);
– Câmara de Política Cultural, criada pelo (Decreto n.º 4.890, de 21/11/2003);
– Comissão Executiva Interministerial – Biodiesel (Decreto s/n.º, de 23/12/2003).
A Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional – Creden, um dos níveis de atuação do Conselho de Governo, foi criada originalmente ainda no governo FHC, pelo Decreto n.º 1.895, de 06 de maio de 1996, com o objetivo de “formular políticas, estabelecer diretrizes, aprovar e acompanhar os programas a serem implantados, no âmbito das matérias correlacionadas”, tendo como seus temas específicos, a cooperação internacional em assuntos de segurança e defesa (I); a integração fronteiriça (II); populações indígenas e direitos humanos (III); operações de paz (IV); narcotráfico e outros delitos de configuração internacional (V); imigração (VI) e atividades de inteligência (VII).
Em sua composição inicial, a Creden contava com a participação dos ministros de Estado da Casa Civil da Presidência da República, da Justiça, das Relações Exteriores, da Casa Militar da Presidência da República, do Estado-Maior das Forças Armadas, do Exército, da Marinha, da Aeronáutica, e do Secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Nos termos do art 3.º do Decreto, cabia à Casa Militar da Presidência da República exercer as atividades de Secretaria-Executiva da Câmara.
Em 1999 a Creden foi reformatada pelo Decreto 3.203, de 08 de outubro de 1999, que manteve sob sua esfera de competência os mesmos temas antes elencados, entre os quais “populações indígenas e direitos humanos”. O Decreto de 1999 no entanto, acresceu ao seu art. 1.º, parágrafo único no qual dispôs caber também à Câmara:
“o permanente acompanhamento e estudo de questões e fatos relevantes, com potencial de risco à estabilidade institucional, para prover informações ao Presidente da República.”
A Câmara passou então a ser composta pelos Ministros de Estado da Casa Civil da Presidência da República, da Justiça, das Relações Exteriores, da Defesa e do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, garantindo-se a participação, nas reuniões, dos Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica (art. 2.º, incisos e § 1.º). Ao Gabinete de Segurança Institucional atribuiu-se, no mesmo Decreto, as funções de presidência e Secretaria-Executiva da Câmara (art. 3.º).
Sete meses após o início do governo Lula, a Creden passou por nova regulamentação, através do Decreto n.º 4.801, de 06 de agosto de 2003. Manteve-se o mesmo elenco dos temas pertinentes – inclusive a referência aos fatos relevantes com potencial de risco à estabilidade institucional – apenas desmembrando-se os temas “populações indígenas” e “direitos humanos”.
O Dec. 4.801/03 alterou também a composição da Câmara acrescentando, aos Ministros de Estado da Justiça, Defesa, Relações Exteriores, Casa Civil da Presidência da República e Chefe do Gabinete de Segurança Institucional, os Ministros do Planejamento, do Orçamento e Gestão, do Meio Ambiente e da Ciência e Tecnologia, este último incluído pelo Dec. 5.064/2004. Também dispõe o Dec. 4.801/03 serem convidados para participar das reuniões, em caráter permanente, os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica (art. 2.º, § 1.º).
Ainda nos termos do Dec. 4.801/03 (art. 3.º), a Câmara passou a dispor de Comitê Executivo, com a finalidade de acompanhar a implementação das suas decisões. Compõem o Comitê Executivo da Creden, o Subchefe Militar do Gabinete de Segurança Institucional; o Secretário-Executivo da Casa Civil; o Subchefe de Coordenação da Ação Governamental da Casa Civil; o Secretário-Geral do Ministério das Relações Exteriores; o Secretário-Executivo do Ministério da Justiça; o Secretário-Executivo do Ministério do Planejamento; o Secretário-Executivo do Ministério do Meio Ambiente; o Secretário de Acompanhamento e Estudos Institucionais do Gabinete de Segurança Institucional; o Chefe de Gabinete do Ministro da Defesa; um representante do Comando da Marinha, um do Comando do Exército e um do Comando da Aeronáutica e o Secretário-Executivo do Ministério da Ciência e Tecnologia.
Como se vê, a Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional possui, desde o seu nascedouro, um enfoque voltado essencialmente para questões afetas à área militar e policial: segurança e defesa, fronteiras, narcotráfico e outros crimes de configuração internacional, atividades de inteligência e operações de paz.
Daí haver em sua composição uma presença majoritária do segmento militar: Ministros do Exército, Marinha, Aeronáutica, Estado-Maior das Forças Armadas e Casa Militar da Presidência da República (Dec. 1895/96); Ministros da Defesa e Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, e Comandantes da Marinha, Exército e Aeronáutica (Dec. 4.801/03).
Não se pode deixar de estranhar, portanto, a inclusão dos temas “direitos humanos” e “populações indígenas” no rol de especificidades temáticas da Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional. Considerando-se os enfoques essencialmente sociais que ambos os temas carregam, não seria de modo algum impertinente que tivessem sido incluídos no âmbito de atribuições de outra Câmara do Conselho de Governo, a Câmara de Política Social, instituída pelo Dec. n.º 4.714/03.
Optou no entanto o Governo Lula por não incluir as questões DDHH e populações indígenas no âmbito de preocupações da Câmara de Política Social. Ao invés disso, preferiu submetê-los à esfera de atuação da Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional, de perfil essencialmente militar.
No que tange à questão indígena, essa opção pela Creden certamente indica haver uma predominância, na direção do atual governo, de uma concepção que entende as populações indígenas como fator de risco para a segurança e a soberania do país. Tal idéia não é nova, subsiste desde os primórdios da formação do Estado Brasileiro, e teve no século passado exemplos como a vinculação do Serviço de Proteção ao Índio – SPI, ao Ministério da Guerra, e a submissão da direção da Fundação Nacional do Índio – Funai, a presidentes militares.
Além disso, causa estranheza que, embora o tema “direitos humanos” faça parte do rol daqueles afetos à Creden, o Ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República – SEDH-PR, não tenha sido incluído na sua composição.
III – As portarias de 12 de maio, da Creden
Prevê o Decreto n.º 4.801/2003 (art. 4.º) a possibilidade de serem “criados grupos técnicos com a finalidade de desenvolver ações específicas necessárias à implementação das decisões da Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional.”
Assim, na quarta-feira 12 de maio, a Seção 2 do Diário Oficial da União – DOU, publicou as portarias de números 13, 14, 15 e 16, assinadas no dia anterior pelo presidente da Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional, o Ministro de Estado Chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, General Jorge Armando Félix.
Destinam-se as quatro portarias à criação de Grupos Técnicos – GTs, para o tratamento de matérias específicas à área de competência da Câmara. A Portaria n.º 13 “constitui Grupo Técnico para acompanhamento permanente da atividade nuclear no Brasil”; a Portaria n.º 14 “constitui Grupo Técnico para elaborar proposta legislativa, regulando o § 2.º do art. 20 da Constituição”; a Portaria n.º 15 “constitui Grupo Técnico para elaborar uma nova proposta de Política Indigenista”; e a Portaria n.º 16 “constitui Grupo Técnico para elaborar uma proposta de Política de Contraterrorismo”.
Para o GT destinado ao acompanhamento permanente à atividade nuclear, prevê a Portaria n.º 13 a participação de 04 representantes dos Ministérios que compõem a Creden: Segurança Institucional, Defesa, Relações Exteriores e Ciência e Tecnologia.
A Portaria n.º 14, que institui GT para propor legislação referente à Faixa de Fronteira, determina a participação de 05 dos ministérios componentes da própria Creden (Segurança institucional, Casa Civil, Justiça, Defesa e Relações Exteriores), bem como a inclusão de representantes dos Comandos da Marinha, Exército e Aeronáutica. Inclui também a participação de representantes dos Ministérios das Minas e Energia, Comunicações e Desenvolvimento Agrário, e da Agência Brasileira de Inteligência – ABIN.
No caso do GT instituído para propor nova Política Indigenista, a Portaria n.º 15 determina que seja composto por 06 dos ministérios que compõem a Creden (Segurança institucional, Casa Civil, Justiça, Defesa e Relações Exteriores e Planejamento, Orçamento e Gestão), mais os Comandos do Exército, Marinha e Aeronáutica, a Agência Brasileira de Inteligência – ABIN, e os Ministérios da Educação e Minas e Energia, e Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República. Também fazem parte do GT representantes da Fundação Nacional do Índio – Funai, e Departamento de Polícia Federal – DPF, ambos vinculados ao Ministério da Justiça.
Quanto ao GT destinado à formulação de uma proposta de Política Contraterrorismo, sua composição, conforme a Portaria n.º 16, é formada por representantes da Casa Civil, Ministérios da Justiça, Defesa, Relações Exteriores, Segurança Institucional, e pelos Comandos do Exército, Marinha e Aeronáutica.
A designação de tais membros dos GTs (titulares e suplentes), conforme o § 2o do art. 4.º do Dec. 4.801/03, fica a cargo do Ministro de Estado Chefe do Gabinete de Segurança Institucional, mediante proposta dos Ministros de Estado a que estiverem subordinados.
Importante observar, no que concerne à composição dos mencionados GT’s, através das respectivas portarias, a total ausência de previsão de participação de representantes do Ministério do Meio Ambiente – MMA, cujo Ministro de Estado – atualmente a Ministra Marina Silva, constitui membro da Câmara de Conselho de Governo.
À exceção do GT para acompanhamento permanente da atividade nuclear (Port. n.º 13), aos demais foi conferido o prazo de 60 (sessenta) dias para a conclusão de seus trabalhos.
IV – O GT de Política Indigenista da Creden
Conforme vimos anteriormente, através da Portaria n.º 15 – CH/GSI, de 11 de maio de 2004, o Ministro Chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República instituiu Grupo de Trabalho como objetivo de formular, à Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional, uma proposta de nova política indigenista.
Um primeiro aspecto a ser considerado a respeito deste GT é quanto à sua composição. Como vimos, parte de seus integrantes é constituída por representantes dos Ministérios cujos titulares têm assento na Câmara – Segurança Institucional, Casa Civil, Justiça, Defesa, Relações Exteriores e Planejamento, bem como os Comandos do Exército, Marinha e Aeronáutica. No entanto, o Dec. 4.801/03, que instituiu a Creden, dispõe, quanto à criação dos Grupos Técnicos, que deles
“poderão participar representantes de outros órgãos ou de entidades públicas e privadas” (art. 4.º, § 1.º).
Assim, foram também designados a compor o GT representantes dos Ministérios da Educação e Minas e Energia, Secretaria Especial de Direitos Humanos, como também ABIN, Funai e Departamento de Polícia Federal.
Desta composição chama a atenção imediatamente a ausência de representantes de alguns Ministérios. Primeiramente, o do Meio Ambiente que, além de ser um dos integrantes da Câmara conforme o art. 2.º, inc. VII do Decreto n.º 4.801/03, é também pasta responsável por uma das temáticas mais vinculadas à questão indígena. É, portanto, completamente incompreensível que representantes do MMA não tenham sido indicados a compor o GT responsável pela formulação da política indigenista.
Em segundo lugar, são também incompreensíveis as ausências, no referido GT, de representantes do Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA, e do Ministério da Saúde – MS, bem como de seus órgãos vinculados – o Incra e a Funasa, respectivamente. Como é público e notório, a questão indígena possui um de seus principais focos de atenção na questão da terra, ficando ao alcance do Incra e do MDA uma importante parcela de contribuição na solução e mesmo na prevenção de conflitos fundiários entre indígenas e pequenos ocupantes de suas terras. Portanto a formulação de uma política indigenista focada na prevenção e solução de tais conflitos precisa, necessariamente, envolver a discussão e o planejamento deste setor em específico.
No mesmo sentido temos também no Ministério da Saúde, através da Funasa, a responsabilidade atual pelo atendimento à saúde dos Povos Indígenas. A reflexão quanto a esta forma de assistência em específico necessita, sem sombra de dúvida, fazer parte do conjunto de preocupações voltadas para a formulação da política indigenista.
Embora seus Ministros não façam parte da Câmara, representantes do MDA e do MS poderiam ter sido, conforme permite o § 1.º do art. 4.º do Dec. 4.801/03, designados a integrar o GT, a exemplo do que ocorreu com os Ministérios da Educação e das Minas e Energia. É incompreensível que Pastas com tanta repercussão sobre a realidade indígena não tenham sido contempladas na composição do GT encarregado da elaboração de uma proposta de nova política indigenista.
Ademais, o mencionado dispositivo do Dec. 4.801/03 permitiria, inclusive, fossem designados a participar do GT, representantes de órgãos públicos não pertencentes ao Poder Executivo, bem como de entidades privadas. Isto possibilitaria, por exemplo, a participação de representantes do Ministério Público Federal. O MPF, que por disposição constitucional tem como uma de suas funções institucionais a defesa judicial dos direitos e interesses das populações indígenas (CF/88, art.129, inc.V) tem papel altamente relevante na discussão em torno de uma nova política indigenista. É incompreensível que tenha sido deixado de fora do GT pelo Ministro Chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República.
De igual modo seria também possível a designação, para a composição do GT, de representantes de legítimas e autênticas organizações indígenas. Aliás, é de se levar em conta que a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, sobre povos indígenas e tribais em países independentes, recentemente promulgada pelo Decreto n.º 5.051, de 19 de abril de 2004, tem como um de seus princípios fundamentais o direito de participação dos povos indígenas nas decisões que lhes digam respeito. Neste sentido, a ausência de representantes dos povos indígenas na composição do GT sobre política indigenista vem em descumprimento a este preceito instituído pela Convenção 169 da OIT, à qual aderiu o estado brasileiro.
Cabe observar ainda a opção pela não inclusão, no GT de política indigenista, de representantes de organizações indigenistas com larga experiência na questão. A propósito, mesmo antes da posse do governo Lula, tais entidades já vinham se manifestando acerca da necessidade de formulação de uma política indigenista para o país. O Conselho Indigenista Missionário – Cimi, chegou por exemplo a apresentar ao Ministro da Justiça, já em 13 de janeiro de 2003, a proposta de criação de um Conselho Superior de Política Indigenista – Copind.
Chama a atenção ainda que, ao mesmo tempo em que tais entidades, órgãos e ministérios civis são alijados do processo de discussão quanto à nova política indigenista, na mesma são incluídos representantes da Agência Brasileira de Inteligência – ABIN, com assento também no GT relativo a Faixa de Fronteira. Entre as competências da ABIN, fixadas pela Lei n.º 9.883, de 07 de dezembro de 1999, encontram-se o planejamento e execução da proteção de
“conhecimentos sensíveis, relativos aos interesses e à segurança do Estado e da sociedade”, e a avaliação das “ameaças, internas e externas, à ordem constitucional” (art. 4.º, incisos II e III).
Ainda como se vê na página da Agência na rede Internet, cabe à mesma a
“coordenação do fluxo de informações necessárias às decisões de Governo, no que diz respeito (…) às ameaças, reais ou potenciais, para os mais altos interesses da sociedade e do País” (http://www.abin.gov.br).
Curioso é que apesar de tais atribuições, a ABIN sequer faz parte do GT sobre política “contraterrorismo”, assim como também não teve representantes designados para compor o GT de “energia nuclear”, temáticas com as quais possui toda afinidade. A questão indígena, entretanto, foi colocada como alvo de sua atenção, o que indica estar sendo (mal)compreendida como ameaça, real ou potencial, para os mais altos interesses da sociedade e do País. Daí porque a questão ter sido colocada no âmbito da Câmara do Conselho de Governo afeta aos interesses militares, e não na Câmara de Política Social.
Um segundo enfoque bastante revelador do modo equivocado como a questão indígena é vista e tratada pelo Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República é dado pela análise do conteúdo temático do GT.
O caput do art. 1.º da Portaria n.º 15 elenca os seguintes temas a serem objeto de consideração do GT para a formulação de proposta de nova política indigenista:
“I – estudos regionais sobre os interesses de Governo e os das populações indígenas, nas Terras Indígenas;
II – exploração de recursos naturais em Terras Indígenas;
III – questões relativas à existência de Terras Indígenas em faixa de fronteira e a defesa do território nacional;
IV – modificações legislativas que se fazem necessárias no Estatuto do Índio;
V – implicações do crescimento demográfico das populações indígenas;
VI – novo papel da Fundação Nacional do Índio – Funai; e
VII – soluções possíveis para municípios criados em terras indígenas.”
Este elenco de temas, e a forma como é expresso, torna ainda mais preocupante a condução da elaboração da proposta de política indigenista, dada pelo Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República – GSI-PR, e os objetivos que pretende alcançar.
Como se vê, emerge como primeira preocupação temática elencada, a consideração de “estudos regionais” sobre os “interesses de Governo nas terras indígenas”.
A idéia de que uma política indigenista possa ser calcada em “interesses de governo nas terras indígenas”, constitui um enorme retrocesso político. Além disso, contraria completamente o mandamento constitucional que garante aos índios poderem viver livremente em suas terras, conforme seus usos, costumes e tradições, sem a interferência de interesses de terceiros. Além do mais, o item I passa a idéia de um antagonismo de interesses, que deve ser solucionado: de um lado os “interesses de governo nas terras indígenas”; do outro os “interesses das populações indígenas” nas mesmas terras. Qual dos dois pesará mais na balança da política indigenista?
Preocupa também que a proposta de política indigenista venha a ser, como pretende o GSI – PR, baseada na “exploração dos recursos naturais em Terras Indígenas". Ocorre que a exploração das riquezas naturais existentes no solo, rios e lagos das terras indígenas é algo que diz respeito ao direito constitucional de usufruto exclusivo pelos índios (CF/88, art. 231, § 2.º). As outras formas de exploração de recursos naturais – mineração e aproveitamento de recursos hídricos e potenciais energéticos – aguardam ainda regulamentação legislativa, enquanto que o garimpo, por não-indígenas, é constitucionalmente vedado.
Não é porém segredo para ninguém a enorme pressão exercida sobre os recursos naturais em terras indígenas, mesmo ao arrepio da Constituição Federal. E a presença, na composição do GT que tratará do tema, do Ministério das Minas e Energia, já indica a ótica sob a qual o tema será tratado para os fins de uma nova política indigenista: a supremacia do interesse econômico, notadamente na área de exploração mineral e de aproveitamento de recursos hidro-energéticos, sobre a proteção das populações indígenas.
O terceiro tema elencado ("questões relativas à existência de Terras Indígenas em faixa de fronteira e a defesa do território nacional") fala por si só. Parte da concepção de que a presença das comunidades indígenas em faixa de fronteira representa fator de risco para a soberania nacional e em impedimento à defesa das fronteiras, resultando, daí, na necessidade de se vedar, nessa área, a demarcação de terras indígenas Preocupações com uma suposta “internacionalização da Amazônia”, com supostos “movimentos indígenas separatistas”, e com uma hipotética possibilidade de “criação de enclaves indígenas no território nacional”, são temas recorrentes no meio militar, apesar de a presença indígena nas fronteiras e demarcações como da T.I. Yanomami terem dado provas do contrário.
É portanto extremamente preocupante a possibilidade de se ter uma política indigenista pautada por esta visão equivocada, com riscos de enormes e irreparáveis prejuízos para as comunidades indígenas.
O tema IV trata das "modificações legislativas que se fazem necessárias no Estatuto do Índio". Esta formulação, ao invés de uma referência à necessidade de revisão da legislação indigenista, sugere a idéia de manutenção do velho Estatuto, apenas com algumas modificações “ que se fizerem necessárias”, o que seria feito em desconsideração a todo o processo de discussão havido em torno dos Projetos de Lei em tramitação no Congresso desde 1991, e que resultou no Substitutivo da Comissão Especial da Câmara, aprovado em 1994.
O quinto tema V elencado, ("implicações do crescimento demográfico das populações indígenas") é no mínimo intrigante, pois não vem acompanhado de qualquer referência de onde se pretenda chegar, ou do que signifiquem tais “implicações”, ou mesmo sobre quem elas incidam. Implicações na política de assistência por parte do Estado ? Instalação de uma política de “planejamento familiar” indígena ? Previsão, na demarcação das terras indígenas, da necessidade de se contemplar a projeção de crescimento demográfico das comunidades ? Esta última hipótese encontra-se constitucionalmente prevista na referência às terras “necessárias à sua reprodução física” (CF/88, art. 231, § 1.º).
Quanto ao tema VI (" novo papel da Fundação Nacional do Índio – Funai"), fica explícita a idéia da permanência do órgão, o que soa estranho quando se está diante de um contexto de revisão legislativa e de elaboração de nova política indigenista. Se a idéia é a permanência da Funai, qual o alcance da discussão para a formulação de uma política indigenista nova?
Muito preocupante, também, é o tema VI ("soluções possíveis para municípios criados em terras indígenas"). Ora, de acordo com a Constituição Federal, são nulos os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras indígenas (CF/88, art. 231, § 6.º). A criação de municípios, ou melhor, de sedes de municípios em terras indígenas é portanto ato nulo, inconstitucional. Não podem haver "soluções possíveis" para medidas que atentam contra a CF e ter em perspectiva o contrário quando da formulação de nova política indigenista, é apostar contra os direitos e interesses das populações indígenas.
Este conjunto de temas, por si mesmo e a considerar quem o elaborou (o Gabinete de Segurança Institucional – GSI), indica sem sombra de dúvidas, que o atual governo pretende imprimir não só pontualmente, mas à própria política indigenista, uma perspectiva baseada na ingerência militar e na exploração das terras indígenas e seus recursos naturais. Ou seja, controlar as terras indígenas e transformá-las em fonte de exploração econômica, passarão a ser, segundo se depreende desta iniciativa do GSI, os pontos centrais da política indigenista.
Observe-se que em nenhum momento denota-se preocupação com a proteção à integridade física e moral dos índios, à integridade de suas identidades étnico-culturais, com o respeito ao seu direito de participação, à autonomia de suas decisões, à proteção de suas terras e meio-ambiente. Em nenhum momento percebe-se preocupação com a necessidade de se remodelar a atuação da Administração Pública para uma assistência específica e relação respeitosa com os povos e comunidades indígenas. Tais questões foram propositalmente ignoradas na edição da Portaria 15, e tendem a ser também ignoradas ou mal colocadas quando dos trabalhos do GT.
De tudo, pode-se concluir que apolítica a ser adotada pelo Governo Lula caminha a passos largos para a militarização. Certamente, resultará, do GT instituído pela Portaria n.º 15 – CH/GSI, de 11 de maio de 2004, a ser encaminhada à Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional, do Conselho de Governo, uma proposta que terá como eixo fundamental uma “neo-pacificação” das comunidades indígenas, com o propósito de se garantir a abertura à exploração econômica de suas terras e riquezas naturais.
Trata-se de um inacreditável retrocesso em termos de política indigenista. Ainda mais vindo de um Governo cujo prestígio, entre indigenistas, povos indígenas e defensores dos direitos humanos em geral, advinha justamente de uma perspectiva contrária, de consolidação de um modelo democrático, participativo, fundado na correção de erros históricos e embasado em garantias constitucionais, às duras penas conquistadas.
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Composição do CREDEN e dos GT’s criados em 12 de maio de 2004.
Dec. 4.801/2003 CREDEN |
Portaria 13 GT – atividade nuclear |
Portaria 14 GT – faixa de fronteira |
Portaria 15 GT – política indigenista |
Portaria 16 GT – contraterrorismo |
Ministros Integrantes |
Representantes dos Ministérios |
Representantes dos Ministérios |
Representantes dos Ministérios |
Representantes dos Ministérios |
Segurança Institucional
|
Segurança Institucional |
Segurança Institucional |
Segurança Institucional |
Segurança Institucional |
Casa Civil
|
_________ |
Casa Civil |
Casa Civil |
Casa Civil |
Justiça
|
_________ |
Justiça |
Justiça |
Justiça |
Defesa
|
Defesa |
Defesa |
Defesa |
Defesa |
Relações Exteriores
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Relações Exteriores |
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