09/04/2025

Governo de PE pretende leiloar 126 ha da TI Kapinawá reivindicada; eólicas podem se aproveitar

São 126 hectares da Terra Indígena, localizada em Buíque, avaliados em R$ 252 mil. O local é ocupado por cerca de 100 famílias

Estudantes indígenas Kapinawá com lideranças das aldeias que estão em território tradicional sob leilão. Foto: Ayla Kapinawá

Por Assessoria de Comunicação – Cimi Regional Nordeste

O governo de Pernambuco pretende leiloar nesta quinta-feira, 10, e no próximo dia 24, 126 hectares da Terra Indígena Kapinawá, em Buíque. O território levado a arremate fica no Vale do Catimbau, região de grande importância socioambiental e arqueológica, sendo ocupado pelas aldeias Coqueiro, Baixa da Palmeira e Ponta da Várzea – cuja área faz parte de um procedimento em curso de revisão demarcatória (leia mais abaixo). 

“A fazenda que será leiloada tem 800 hectares, mas a parte que vai a leilão tem 126 hectares (…) Essa fazenda é a razão de muitos conflitos dentro do território, incluindo a questão de um projeto eólico, que conseguimos evitar (leia mais abaixo). Ela está relacionada. Muitas torres ficariam nessa fazenda”, explica Ayla Kapinawá. 

Ela explica que a questão dos projetos eólicos na região está diretamente ligada aos interesses de donos de terras sobrepostas à Terra Indígena. “É uma questão que roda, roda e sempre termina nas eólicas. Um dos proprietários da empresa que iria instalar o projeto eólico é um dos donos dessa mesma fazenda”, diz a Kapinawá.  

Há décadas os Kapinawá reivindicam, defendem e vivem na área colocada a leilão. São cerca de 100 famílias que, da noite para o dia, podem perder suas casas, escola, casas de farinha, plantações, espaço ritual e vasta área de Caatinga preservada, fundamental à reprodução física e à cultura do povo. Neste ano, o leilão é o segundo atentado à territorialidade Kapinawá. 

Os Kapinawá entendem que pode haver interesses de empresários de projetos eólicos pelo leilão de área que, inclusive, vem despertando o interesse do setor há anos

No mês de fevereiro, o povo conseguiu resistir a uma iniciativa também ligada ao Estado de Pernambuco, desta vez da Agência de Desenvolvimento Econômico de Pernambuco (Adepe), de transformar parte da Terra Indígena em uma fazenda destinada à captação de energia eólica. Na ocasião, a Adepe confirmou aos indígenas que o projeto havia sido suspenso ainda em 2024.

Durante a ocupação indígena, quilombola e camponesa na sede da Adepe, em Recife, os Kapinawá conseguiram ainda um documento da Agência Estadual do Meio Ambiente (CPHR) garantindo que qualquer projeto eólico não receberia licença sem a consulta prévia ao povo. 

“Naquela mesma semana, uma empresa nos procurou para tratar dos benefícios das eólicas para a comunidade. Então fica a desconfiança de que esse leilão possa ser aproveitado ou ter por trás esses projetos. Por isso é importante concluir a demarcação desta área”, diz Ayla. 

Leilão em pleno Abril Indígena 

A área total da fazenda se sobrepõe à Terra Indígena e ao Parque Nacional do Catimbau, que, por sua vez, também está sobreposto a parte do território tradicional Kapinawá. 

Ocorre que os 126 hectares levados a leilão estão exatamente na área de interesse dos projetos eólicos, se sobrepondo às aldeias Coqueiro, Baixa da Palmeira e Ponta da Várzea. Ou seja, não se trata de qualquer parte da fazenda ou de uma área sem interesses econômicos declarados.   

Em nota pública, o povo Kapinawá traz o histórico de violações envolvendo remoções forçadas, invasões, ameaças, danos ambientais e os projetos eólicos. “Exigimos o cancelamento do leilão. A governadora Raquel Lyra precisa agir”, diz trecho da nota. O leilão ocorre em pleno Abril Indígena, um mês que no país é dedicado aos povos indígenas. 

A Procuradoria da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) foi acionada pelo povo para tomar providências quanto ao leilão

O leilão é o resultado de uma Ação de Execução Fiscal. Os 126 hectares estão avaliados pelo Leiloeiro Público Oficial Flávio Alexandre Alves da Costa e Silva em R$ 252 mil. Um edital contendo as regras e informações do leilão, exclusivamente online, foi publicado pela 1a Vara Cível da Comarca de Arcoverde.

“Não fomos informados e consultados. É de domínio público que o povo Kapinawá ocupa há muitos anos de forma tradicional os 126 hectares, parte da Terra Indígena. Se trata de uma violação grave dos nossos direitos territoriais e exigimos que o leilão seja suspenso”, declara Socorro Kapinawá. 

A indígena está em Brasília (DF) participando do Acampamento Terra Livre (ATL). Na Capital Federal, Socorro e uma delegação Kapinawá estarão nesta quarta-feira, 8, com o Ministério Público Federal (MPF) para tratar do assunto.

Povo Kapinawá se opõe às tentativas da instalação de usinas eólicas no território. Foto: Ayla Kapinawá

TI Kapinawá: sobreposição de conflitos       

A questão dos conflitos com usinas eólicas não é nenhuma novidade em Pernambuco. Há mais de uma década que parques de energia eólica vêm gerando impactos socioambientais, psicológicos e territoriais, com destaque mais dramático para áreas indígenas, quilombolas e camponesas sem regularização fundiária. 

No entanto, o conflito com as eólicas é apenas mais um entre tantos enfrentado pelos indígenas. “Nos Kapinawá a questão surgiu nos últimos anos (…) se colocando como mais uma camada de conflito por conta de um problema anterior, que é a revisão, ou readequação, inconclusa dos limites da Terra Indígena Kapinawá”.

A análise é da antropóloga Lara Erendira Amorim de Andrade, doutora pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e uma das principais pesquisadoras junto ao povo Kapinawá. 

Famílias sofrem “sobreposição de conflitos socioambientais” e são levadas  a definir estratégias para não se verem desprovidas do território

Ela explica que a TI Kapinawá foi homologada em 1998 com pouco mais de 12 mil hectares. No entanto, o procedimento, cujo estudo foi realizado sem os parâmetros da Portaria 14, no começo da década de 1980, deixou de fora uma área reivindicada pelo povo. No mesmo ano, os Kapinawá passaram a lutar pela readequação dos limites, que está em análise pela Funai desde então, sem conclusão. 

Os conflitos se acirraram “a partir da proposta da construção de um Parque Eólico nas bordas da demarcação Kapinawá (onde está a área que ficou de fora da homologação) e da unidade de conservação do Parque Nacional do Catimbau”, explica.

Casa de farinha Kapinawá em território tradicional que pode ser leiloado pelo governo de Pernambuco. Foto: Ayla Kapinawá

Muitas famílias ficaram com os terrenos totalmente fora da área homologada. “Para poder regularizar a terra, foram adotados como limites físicos dois riachos: um ao Sul, o do Macaco, e um ao Norte, o do Catimbau. Só que na Caatinga, os riachos não dividem necessariamente, mas unem. Comunidades usam ambas as margens do riacho”, diz a antropóloga. 

Desde o final da década de 1990 uma série de conflitos passaram a ocorrer em decorrência dessa defasagem no procedimento demarcatório que se manteve até a homologação da Presidência da República. Um deles, inclusive, se deu com a criação do Parque Nacional do Catimbau, cujo administrador, o ICMBio, não permite a presença humana. 

“O parque sobrepõe uma área importante Kapinawá. São uma série de limitações para as famílias que sempre circularam pela área incluída no Parque. Por exemplo, há registros de desmatamentos de áreas do Parque por fazendas, para loteamento, que são reivindicadas pelos Kapinawá. Então chegaram as eólicas nos últimos anos”, detalha. 

Para a antropóloga, as famílias Kapinawá sofrem uma “sobreposição de conflitos socioambientais” há décadas e são levadas  a definir estratégias para não se verem desprovidas do território.

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