15/02/2025

Vitória da resistência: revogada lei que ameaçava a educação indígena

Após 32 dias de ocupação e mobilização intensa, povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, professores e estudantes forçaram o recuo do governo e a revogação da Lei 10.820/2024

Foto: Matt Sousa/@hey_def – Belém/PA

Por Assessoria de Comunicação do Cimi* – Matéria publicada originalmente na edição 472 do Jornal Porantim

Veja aqui a edição completa.

O poder jamais silenciará vozes milenares. Em uma demonstração de coragem e organização, 300 indígenas representantes de 22 povos – entre eles Munduruku, Wai Wai, Tembé, Arapiun e Tupinambá – uniram forças com ribeirinhos, camponeses, quilombolas, professores, servidores da educação paraense e estudantes para transformar ameaça em vitória. Durante 32 dias, a ocupação da sede da Seduc, a Secretaria de Educação do Estado do Pará, em Belém, expôs a luta de povos tradicionais contra uma lei que, entre outras coisas, poderia abrir espaço para o fim do ensino presencial em regiões remotas, como aldeias indígenas, comunidades quilombolas e ribeirinhas. A pressão coletiva, acompanhada de intensas mobilizações nacionais e internacionais, culminou na revogação, por unanimidade, da Lei 10.820/2024, que alterava profundamente o Estatuto do Magistério Público e a educação escolar indígena.

Em dezembro de 2024, o governador Helder Barbalho (MDB) aprovou às pressas a Lei 10.820, que estabelecia um novo Estatuto do Magistério Público no Pará. Além da substituição do ensino presencial pelo ensino à distância em comunidades rurais e aldeias indígenas – onde a internet é sujeita a falhas -, a medida, agora revogada, alterava a carreira dos professores, destruía o arcabouço normativo referente a educação escolar indígena no estado e precarizava uma série de conquistas da educação escolar indígena, como o Sistema de Organização Modular de Ensino Indígena (Somei), um programa estadual que leva professores não indígenas para dar aulas nas comunidades do interior. Essa decisão foi tomada sem a devida consulta às populações afetadas, contrariando a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que estabelece a obrigatoriedade dessa consulta.

No dia 14 de janeiro de 2025, como resposta a essa imposição, iniciou-se a ocupação da sede da Secretaria de Educação (Seduc), em Belém, um movimento que se prolongaria por 32 dias – seguido de três semanas de greve dos professores, bloqueio de rodovias e mobilizações que alcançaram apoio nacional e internacional contra a chamada “lei do retrocesso”, que se propunha a uma reforma nefasta no magistério público do Pará.

A autonomia na gestão educacional é vital para que as comunidades possam ensinar e preservar suas tradições, línguas e saberes

Foto: Matt Sousa/@hey_def – Belém/PA

 Vozes da resistência

“É crucial destacar a perda de autonomia que a lei implica. Ela impõe um modelo educacional padronizado que não respeita a rica diversidade cultural e linguística dos povos indígenas. A autonomia na gestão educacional é vital para que as comunidades possam ensinar e preservar suas tradições, línguas e saberes, elementos essenciais para a identidade e continuidade de suas culturas. Além disso, a Lei 10.820/2024 promove um desrespeito cultural flagrante ao permitir a imposição de uma cultura dominante sobre as indígenas. Este tipo de política educacional ignora a importância da língua materna, um pilar fundamental na transmissão de valores e conhecimentos entre gerações. Assim, a educação que deveria ser um espaço de valorização e fortalecimento das culturas indígenas, tem sido transformada de homogeneização cultural”, disse o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Norte II em nota de apoio à ocupação.

Em meio a dificuldades e noites de incerteza, Alessandra, liderança do povo Munduruku, declarou: “Eu to muito feliz com o trabalho que fizemos. Não aceitamos negociar os nossos direitos e nunca vamos aceitar. Quero dizer para os alunos, para os professores da universidade que acompanhou a gente, de perto, que, se não fosse a ajuda de vocês, nós não sabíamos como íamos passar. Porque passamos por cada momento… Achava que seriam só três dias, dormindo no chão e ir embora, mas não. Sofremos muito com criança doente, jovens doentes, com muita chuva, mas as pessoas trouxeram bastante lona, barraca, lençol, água [potável], porque tinha muita gente adoecendo por conta da água, enfim… Tenho que agradecer muito! A gente não vai desistir, a gente sempre vai continuar essa luta porque nós, povos indígenas, nunca desistimos, sempre lutamos!”.

Na retomada das aulas presenciais, que aconteceu no dia 24 de fevereiro, o cacique Dada Boarari, da Terra Indígena Maró, relatou o marco do retorno à normalidade em sua comunidade: “hoje, estou muito feliz por estar no nosso território, iniciando as aulas com professores e alunos. Foram 32 dias acampados e só saímos após a revogação da lei que defasava e acabava com toda a lei de educação escolar indígena. Hoje, quero desejar a todos um ótimo início de aula, de ano letivo e que ele seja de muito ensino e aprendizagem, [para] trabalhar a educação diferenciada, trabalhar a interdisciplinaridade. Hoje o povo inicia com o eixo temático ‘Educação Escolar Indígena’, que é entender o que é uma educação indígena e o que é uma educação escolar indígena, então isso para nós é um grande privilégio e um momento de alegria”.

A Educação Escolar Indígena precisa ser comunitária, específica, diferenciada e intercultural

Crédito: João Paulo @joaopaulofotografia / Casa Ninja Amazônia @casaninjaamazonia

Na avaliação do Conselho Indígena Tapajós e Arapiuns (Cita), que representa sociopoliticamente 14 povos do Baixo Tapajós no Pará, “a Educação Escolar Indígena precisa ser comunitária, específica, diferenciada e intercultural”. Em publicação, o Cita diz que apesar da revogação da Lei 10.820, ainda há muito a ser feito: “A falta de mobília, salas de aula em construção, contratos de professores e apoios ainda não assinados demonstram que a luta continua. Não basta apenas revogar, é preciso garantir estrutura e condições dignas para nossas crianças e jovens! Nosso retorno acontece com rodas de conversa, planejamento e articulação, não apenas para seguirmos construindo nossos espaços de aula, mas também para fiscalizar as irregularidades da Secretaria de Educação do município. A educação indígena precisa ser planejada e construída por nós, e não apenas imposta por um sistema que não nos representa!”.

A resistência cresceu e se impôs

 A ocupação não se limitou à sede da Seduc. Em diversas frentes, artistas como Anitta, Alok e a atriz Dira Paes se posicionaram pedindo a revogação da medida, enquanto a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, esteve no estado no fim de janeiro, tentando negociar com o governo – embora sem sucesso.

Ao longo da ocupação, o movimento ganhou força com o apoio de mais de 100 organizações, movimentos sociais e entidades da sociedade civil, que pressionaram o governador do Pará a revogar a lei, considerada uma ameaça aos direitos e interesses dos povos tradicionais. Os apoiadores divulgaram uma carta em apoio à luta dos povos indígenas pelo direito à educação, denunciando inclusive “os atos ilegais e violentos do governo Helder Barbalho contra as/os manifestantes”.

 No décimo dia de ocupação, a situação se agravou: a Polícia Militar agiu com truculência, utilizando spray de pimenta e desligando a energia e a água do prédio; além disso, a imprensa e representantes do Ministério Público Federal (MPF) e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) foram impedidos de acessar o local.

É inaceitável que o Estado sede da COP30 troque o diálogo democrático pela truculência armada

Foto: Amarilis Marisa

Na carta das entidades apoiadoras, que representou um depoimento coletivo de quem vivenciou os abusos, foi relatado as ações truculentas contra a ocupação:

“A manifestação pacífica teve início na manhã do dia 14/01/2025, e com a negativa da direção da Seduc de receber os/as manifestantes, iniciou-se uma ocupação do prédio da secretaria. Contudo, o governo Helder Barbalho não abriu qualquer canal de diálogo. Pelo contrário, em vez disso houve mais violência contra indígenas e educadores(as), e muitos dos/as presentes são idosos(as) e crianças. Deslocaram mais viaturas e policiais, aumentando as tensões no local e colocando em risco as/os ocupantes. Essas ações desumanas violam a dignidade dos/das Indígenas e demais pessoas presentes. As ações do governo Helder Barbalho e seus aliados contra os povos indígenas fazem parte de um projeto político mais amplo de desmantelamento do Estado e das políticas públicas inclusivas em favor do agronegócio das mineradoras, das madeireiras e dos mercadores do clima, entre outros grupos poderosos. É inaceitável que o Estado sede da COP30 troque o diálogo democrático pela truculência armada. O Governador Helder Barbalho anuncia em seus discursos internacionais que a COP30 será a COP da Floresta. Mas, não é possível realizar a COP da Floresta violando direitos essenciais dos povos que protegem a floresta. Não é possível falar em alcance das metas climáticas sem garantir justiça climática e não se promove justiça climática sem assegurar educação digna e de qualidade à população, notadamente aos povos indígenas.”

Sabíamos que, ao enfrentar essa ameaça, nossa luta não era apenas pela educação, mas pela sobrevivência da nossa história, nossos valores e nosso futuro

O Conselho Indígena Tapajós e Arapiuns também se manifestou de forma contundente. Em suas declarações, expressaram gratidão a todos que contribuíram para essa vitória e deixaram claro o impacto da lei:

“Essa lei, que ameaçava destruir a educação pública no estado, representava um ataque direto aos nossos direitos e à nossa cultura. Os povos tradicionais — indígenas, quilombolas, ribeirinhos e povos do campo — seriam os primeiros a sofrer os devastadores impactos, em um cenário já marcado por desafios históricos no acesso à educação de qualidade. Sabíamos que, ao enfrentar essa ameaça, nossa luta não era apenas pela educação, mas pela sobrevivência da nossa história, nossos valores e nosso futuro. Foi uma luta árdua e cheia de desafios, mas também de aprendizado e união. Contamos com a força das lideranças indígenas de diversas etnias, com o apoio de professores, alunos e de toda a sociedade que se somou à nossa causa. Enfrentamos a máquina pública e a mídia tradicional, que estavam alinhadas aos interesses de um governo autoritário. Não foi fácil, mas nossa coragem e a força de nossos encantados nos mantiveram unidos, mesmo quando muitos duvidavam da nossa capacidade de alcançar nosso objetivo. Essa vitória não é apenas nossa. É uma vitória de todos os paraenses que se levantaram em defesa do direito à educação. Ela deixa claro que nossa educação, assim como outros direitos fundamentais, como a saúde, está constantemente sob ameaça daqueles que negociam nossos direitos em troca de favores. Mas, com certeza, não estamos à venda! Vencemos uma batalha, mas sabemos que muitos outros desafios ainda virão.”

O governo tentou ignorar, mas a resistência do movimento cresceu e se impôs, sinalizando, inclusive, a intenção de levar a mobilização à COP30, prevista para novembro deste ano, em Belém. Diante da pressão, a legislação foi revogada. Ou seja, o recuo do governo não foi uma concessão, mas uma vitória arrancada com luta e organização. Agora, com a lei derrubada, os povos tradicionais seguem em alerta, pois a luta pela educação não termina aqui, mas o recado foi dado: quando a resistência se levanta, as estruturas do poder tremem. E dessa vez, a vitória foi do povo.

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*Com informações da atividade prática do curso Formação Básica do Cimi, grupo Áila Santos, Artur Dias, Guilherme Antunes e Maria Adinete Azevedo.

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