29/03/2023

Pisando em pantufas: o desconforto da Educação Escolar Indígena em Mato Grosso

Enquanto a educação pública pena o desmonte, com escolas indígenas aos frangalhos e sem a devida participação social, o governo estadual realiza evento em resort luxuoso

O governador Mauro Mendes, à esquerda, foi jurado do "concurso de pantufas". À direita, o secretário estadual de Educação, Alan Porto. Foto: Isso é Notícia/reprodução

O governador Mauro Mendes, à esquerda, foi jurado do “concurso de pantufas”. À direita, o secretário estadual de Educação, Alan Porto. Foto: Isso é Notícia/reprodução

Por Augusta Eulália Ferreira e Gilberto Vieira dos Santos, do Cimi Regional Mato Grosso

Pantufas são descritas em sites de busca como calçados quentinhos e confortáveis, ideais para aquecer os pés. Recentemente, no entanto, o inocente calçado ganhou o noticiário após o anúncio de que a Secretaria Estadual de Educação de Mato Grosso realizaria entre os dias 19 a 22 de março uma convenção de diretores das escolas estaduais. Alguém diria: o que as pantufas têm a ver com isso?

Elas seguem inocentes, mas o encontro, além de ter ocorrido em um resort de luxo em Cuiabá, tinha, entre outras atividades, “a noite da pantufa”, além de um “show do milhão Seduc” – que, espera-se, não seja uma alusão aos gastos do evento – e uma atividade intitulada “De volta para o futuro”, o que chega a ser irônico, já que na implementação do programa Educa +10, a educação vem retrocedendo no estado.

Enquanto a educação pública pena o desmonte, sem a devida participação social, o governo estadual realiza um evento em um dos mais caros espaços do estado

Enquanto governo realiza evento em resort de luxo, escolas indígenas sofrem com precariedade: sala anexa da escola indígena da aldeia Ilha Grande, no município de Querência, Terra Indígena do Xingu (TIX). Foto: povo Kawaiwete/Kayabi

Enquanto governo realiza evento em resort de luxo, escolas indígenas sofrem com precariedade: sala anexa da escola indígena da aldeia Ilha Grande, no município de Querência, Terra Indígena do Xingu (TIX). Foto: povo Kawaiwete/Kayabi

Embora os temas assustem – e sabe-se lá o que se aborda em momentos assim – o mais importante é que, enquanto a educação pública pena o desmonte, sem a devida participação social, o governo estadual realiza um evento em um dos mais caros espaços do estado. Ainda pior, na semana que antecede a referida convenção, a Assembleia Legislativa de Mato Grosso tinha em pauta o Projeto de Lei Complementar (PLC) de número 17, proposto pelo governo do estado e que, alterando a composição do Conselho Estadual de Educação, retira dele o Conselho Estadual de Educação Escolar Indígena (CEEI), um dos mais antigos do país, além de outras representações.

A retirada do CEEI do Conselho Estadual de Educação, além de representar o cerceamento da participação efetiva dos povos indígenas em um espaço mais amplo sobre o tema que lhes diz especialmente respeito, representa a retirada do tema da Educação Escolar Indígena da pauta em um momento em que as escolas ainda penam para se manter de acordo com os direitos dos povos e o próprio CEEI enfrenta dificuldades para atuar devidamente. Aproveitando-se da pandemia, o governo reduziu as possibilidades de reuniões presenciais, que contavam com a representatividade e possibilidade de construções coletivas com a participação mais ampla dos povos.

Das escolas indígenas, como um grito a despertar do silêncio os pares, a realidade evidenciou-se durante o tal evento das pantufas, que contou com a participação de aproximadamente cinquenta diretores indígenas, vindos de suas aldeias. Estes diretores entregaram ao Secretário de Educação, Alan Porto, o documento Carta de Reivindicação dos Diretores Indígenas de Mato Grosso, no qual, entre outros aspectos, reivindicam que o tratamento da educação se dê em conformidade com a legislação vigente e a Constituição Federal.

Expressamente afirmaram que “a política educacional que queremos é aquela que contempla a nossa realidade da cultura, língua e de nossos saberes. A verdadeira educação escolar indígena é aquela que atende as nossas especificidades, que considera a diferença do nosso modo de vida, de nossa organização social nas aldeias”. O que, definitivamente, não vem ocorrendo, diante de um processo de desmonte da educação pública, sobretudo desde o primeiro mandato do atual governador Mauro Mendes.

Na gana por impor um modelo mercadológico à educação escolar, com avaliações de desempenho somadas à militarização, o governo desrespeita a organização social e desconhece a imperativa realidade de um estado que tem quarenta e sete povos originários

Folder do evento realizado no resort de luxo. Reprodução

Folder do evento realizado no resort de luxo. Reprodução

Evidentes afrontes à legislação levaram a esta e outras manifestações dos povos, exigindo, como afirmam em outro trecho do documento, que “a Seduc respeite a nossa vida tradicional”.

A Educação Escolar Indígena possui uma base legal, resultado de décadas de lutas, reflexões e elaborações dos próprios povos. O atendimento da modalidade Educação Escolar Indígena pelos estados está disciplinado pelo decreto 26/1991, do Ministério da Educação (MEC)[1], e pela Resolução nº 03/1999, também do MEC. De acordo com a Lei de Diretrizes e Base 9.394/96, os estados devem organizar o atendimento à Educação Escolar Indígena de forma diferenciada. Desde então, as escolas indígenas integram a estrutura geral do atendimento educacional no Sistema Público Estadual de Ensino.

No nível estadual, a regulamentação se deu com a Resolução nº 201/2004/CEB-CEE-MT, e que foi substituída pela atual Resolução Nº 04/2019/CEB-CEE-MT, a qual fixa normas para o funcionamento das escolas indígenas, orienta o atendimento e também ressalta as especificidades do currículo e da gestão das escolas indígenas.

Entretanto, na gana por impor um modelo mercadológico à educação escolar, com avaliações de desempenho somadas à militarização, o governo estadual desrespeita a organização social e desconhece a imperativa realidade de um estado que tem quarenta e sete povos originários, com seus modos próprios de vida e organizações social reconhecidos pelo artigo 231 da Constituição.

Na busca por evidenciar esta diferencialidade, os diretores afirmam: “a educação escolar indígena para nós não se reduz apenas numa sala de aula, mas sim em ações que garantam às novas gerações a transmissão dos saberes e valores de conhecimentos tradicionais”. Além do não respeito à organização social dos povos – que, sim, também se impõe na realização das estruturas que estão a serviço destes povos, como saúde e educação – o governo quer impor às suas escolas o que não funciona nem nas escolas não indígenas: um webponto, para “controlar” a frequência dos professores.  

Sobre o webponto, afirmam os diretores em outro documento, também entregue ao Secretário: “tais imposições ferem o caráter e a dignidade indígena, pois em relação tempo, espaço e vivências socioculturais não estão sendo respeitadas”.

Lembremos que em 2022, como decorrência do edital 010/2021, as escolas indígenas sofreram atrasos na contratação de professores e consequente prejuízo no início das aulas, resultado da aplicação de limites indevidos pelo estado para a contratação de professores, muitos que já lecionavam há anos. Este impasse só foi temporariamente superado pela ação da Defensoria Pública da União (DPU) e Ministério Público Federal (MPF), somados às cobranças dos povos. Os mesmos problemas com as contratações, contudo, foram novamente reclamados em 2023 pelos indígenas.

Sobre a “convenção das pantufas” no resort, em quatro dias “all inclusive” – com tudo incluso –, qualquer possibilidade de gastos neste espaço já é moralmente indevida

Resort "all inclusive" onde foi realizado o evento da Secretaria Estadual de Mato Grosso. Foto: reprodução

Resort “all inclusive” onde foi realizado o evento da Secretaria Estadual de Mato Grosso. Foto: reprodução

Sobre a “convenção das pantufas” no resort, em quatro dias “all inclusive” – com tudo incluso –, qualquer possibilidade de gastos neste espaço já é moralmente indevida. Aguardemos os próximos passos, visto que o MPF, cumprindo sua atribuição exemplar, já remeteu à Seduc solicitação de informações sobre os custos, os promotores do evento e o acompanhamento dos órgãos de controle.

No documento encaminhado pelo MPF ao governo, destaca-se a preocupação do procurador ao afirmar que “em um país como o Brasil, no qual o uso descabido, desmedido e, em muitos casos, indevido, de recursos públicos é um problema atual, é fundamental que as autoridades públicas tenham uma gestão transparente e eficiente dos recursos financeiros disponíveis”.

Cobrança de explicações semelhante se deu na Assembleia Legislativa de Mato Grosso, com o requerimento aprovado para a apresentação de informações pelo Secretário, Alan Porto, que deverá comparecer à casa legislativa no dia 10 de abril.

Em manifestação no dia 22 de março, a DPU, atendendo demanda de diversos povos, publicou a nota técnica número 03 DPGU/DNDH/DRDH MT, em que, com base na legislação vigente, manifesta-se pela rejeição dos artigos 7º e 9º do Projeto de Lei Complementar 17 de 2023, “pelo apagamento da representatividade e interculturalidade indígenas, bem como da flagrante inconvencionalidade e inconstitucionalidade”.

O PLC 17/2023 estava na “ordem do dia” da Assembleia no dia 15 de março. A sessão legislativa era acompanhada por representações da Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso (Fepoimt) e da Organização de Mulheres Indígenas Takina, por representantes do CEEI e por aliados dos povos, e o projeto foi retirado de pauta. Uma audiência pública para debater o projeto foi convocada para o dia 30 de março.

Justifica-se a legítima preocupação dos povos diante das extremas contradições evidenciadas, tendo numa ponta um evento luxuoso – junto com a imposição de uma educação “embranquecedora” e hierarquizada – e, na outra, escolas aos frangalhos, inseridas numa estrutura que desrespeita a organização tradicional de cada povo

Escola indígena localizada na aldeia Moygu, Território Indígena do Xingu, evidencia contradições gritantes na Educação em Mato Grosso. Foto: povo Ikpeng

Escola indígena localizada na aldeia Moygu, Território Indígena do Xingu, evidencia contradições gritantes na Educação em Mato Grosso. Foto: povo Ikpeng

Espera-se que a sinalização de não ouvir os povos indígenas por parte do governo estadual, em descumprimento ao que prevê a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), não se mantenha, e que seja atendida a demanda de diálogo, como requereram por ofício as organizações indígenas.

Por ora, justifica-se a legítima preocupação e cobrança dos povos diante das extremas contradições evidenciadas, tendo numa ponta um evento luxuoso – junto com a imposição de uma educação “embranquecedora” e hierarquizada – e, na outra, escolas aos frangalhos, inseridas numa estrutura que desrespeita a organização tradicional de cada povo e sem a reivindicada formação continuada.

Diante da distribuição de materiais didáticos e apostilas elaboradas de forma genérica e em flagrante desrespeito à diferencialidade assegurada pela legislação, ecoa o grito dos diretores, que se negaram a calçar a “pantufa enquadradora de modelos pré-estabelecidos”:

“Somos indígenas e precisamos ser vistos a partir de políticas que garantam e viabilizem a produção de materiais pedagógicos específicos para cada um dos povos indígenas de Mato Grosso. Esses materiais devem partir do próprio povo, respondendo o que eles próprios precisam e dando aos mesmos protagonismo. Os autores precisam e devem ser indígenas e valorizados enquanto indígenas e intelectuais. (…) Não podemos ser aculturados visando o sucesso de um plano de metas que apenas favorece os não indígenas e esquece o que somos nós, nós somos povos originários (…) A educação indígena deve antes de tudo partir do próprio indígena, isso está sendo esquecido. Sofremos imposições e as decisões vindas de cima sem consultas nos agridem. Ansiamos por RESPEITO às nossas tradições”, afirma a carta dos diretores.

Seja a respeito do Conselho Estadual de Educação ou da efetividade na participação dos povos no Conselho Estadual de Educação Escolar Indígena, os povos e organizações indígenas reclamam seu legítimo espaço e direitos. Que, para o conforto dos povos – que não se reduz às pantufas, mas abarca a garantia de seus direitos – o estado atenha-se à legislação.

Ao final de decretos, resoluções e outros documentos oficiais, se lê o imperativo: cumpra-se.

Então, a própria Resolução Normativa nº 004/2019-CEE/MT, do Conselho Estadual de Educação de Mato Grosso – que deveria ser seguida pela Seduc – , afirma em seu artigo 2º que um dos objetivos da Educação Escolar Indígena é “atender aos dispositivos contidos na Convenção 169/OIT – Organização Internacional do Trabalho, sobre povos indígenas e tribais, promulgada pelo Brasil, por meio de legislação referente à Educação e Meios de Comunicação, bem como os mecanismos de consulta livre, prévia e informada”.

Recordando o que reforça a Nota Técnica da DPU, em referência à Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, na qual há previsão específica para Educação Escolar indígena. In verbis, estabelece o artigo 14 da Declaração: “Os povos indígenas têm o direito de estabelecer e controlar seus sistemas e instituições educativos, que ofereçam educação em seus próprios idiomas, em consonância com seus métodos culturais de ensino e de aprendizagem. […] Os Estados adotarão medidas eficazes, junto com os povos indígenas, para que os indígenas, em particular as crianças, inclusive as que vivem fora de suas comunidades, tenham acesso, quando possível, à educação em sua própria cultura e em seu próprio idioma”.

O artigo 15 do mesmo documento, logo em seguida, garante o seguinte: “os povos indígenas têm direito a que a dignidade e a diversidade de suas culturas, tradições, histórias e aspirações sejam devidamente refletidas na educação pública e nos meios de informação públicos”.

Diante disso: CUMPRA-SE!

[1] Transfere a competências sobre a Educação Escolar Indígena da Funai para o Ministério da Educação/estados
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