13/02/2025

Povo Xakriabá alerta Unesco: parque candidato a Patrimônio da Humanidade está sobreposto à terra que aguarda demarcação

O povo destaca não ser contra que o parque receba o selo da Unesco, mas é necessário que o governo brasileiro prossiga também com a demarcação do território tradicional

1º Encontro da Juventude Xakriabá, realizado em agosto de 2017. Foto: Guilherme Cavalli | Cimi

1º Encontro da Juventude Xakriabá, realizado em agosto de 2017. Foto: Guilherme Cavalli | Cimi

Por Adi Spezia, da Assessoria de Comunicação do Cimi

Em carta enviada à Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco), nesta sexta-feira (14), indígenas do povo Xakriabá da aldeia Caraíbas alertam que o Parque Nacional Cavernas do Peruaçu, candidato ao selo de Patrimônio Mundial da Humanidade, sobrepõe seu território tradicional que está com processo de demarcação paralisado no Ministério da Justiça e Segurança Pública há 11 anos.

A Terra Indígena (TI) Xakriabá está localizada nos municípios de São João das Missões e Itacarambi, no extremo norte do estado de Minas Gerais. O relatório circunstanciado de demarcação e delimitação da atual reivindicação do povo Xacriabá foi publicado no Diário Oficial da União em 6 de outubro de 2014, e nesse momento a assinatura da Portaria Declaratória é o próximo passo.

“O povo Xakriabá alerta que o Parque Nacional Cavernas do Peruaçu, candidato ao selo de Patrimônio Mundial da Humanidade sobrepõe seu território tradicional”

Em março de 2023, a Unesco aprovou a candidatura do Parque Nacional Cavernas do Peruaçu à Lista do Patrimônio Mundial Natural por possuir uma rica biodiversidade, incluindo cavernas, cânions, pinturas rupestres e sítios arqueológicos, formando uma beleza cênica natural. A candidatura foi proposta pelo Estado brasileiro e a avaliação final deve ocorrer em julho deste ano.

Neste momento importante onde se discute a implementação do selo Unesco, os indígenas sentem a necessidade de dialogar e expressar, novamente, sua posição diante da relevância do tema. “Garantir a regularização do nosso território sempre foi visto pelo nosso povo como a base central das nossas ações de sobrevivência”, relam no documento.

Os Xakriabá, da aldeia Caraíbas, endereçaram a carta a membros da Unesco: ao Diretor General, Audrey Azoulay; ao Diretor de Patrimônio Mundial, Lazare Eloundou Assomo; ao Chefe da Unidade América Latina e Caribe, Mauro Rosi. Endereçam também ao presidente da Comissão Brasileira para o Programa “O Homem e a Biosfera” (COBRAMAB), Eduardo Serra Negra Camerini, e ao Escritório do Conselho Nacional da Reserva da Biosfera do Cerrado.

“Garantir a regularização do nosso território sempre foi visto pelo nosso povo como a base central das nossas ações de sobrevivência”

Registro da 1ª Marcha das Mulheres indígenas Xakriabá. Foto: Povo Xakriabá | Divulgação

Registro da 1ª Marcha das Mulheres indígenas Xakriabá. Foto: Povo Xakriabá | Divulgação

Para os indígenas é “necessário que o Governo brasileiro prossiga também no pleito demarcatório, assinando e publicando no Diário Oficial da União a portaria declaratória do nosso território, por entendermos que os dois processos precisam caminhar juntos”. Tal posição “não é uma discordância acerca da importância deste ato encabeçado pela Unesco, é um pleito que consideramos relevante, contudo, é urgente e necessário que possamos, enquanto povo indígena, nos posicionar diante de preocupações visto que neste momento este pleito se esbarra na falta de encaminhamentos concretos solicitado em tempo hábil ao governo brasileiro”, reforçam os indígenas na carta enviada ao órgão.

Tal posição do povo consta na Ata da Consulta Prévia Livre e Informada realizada ao território Xakriabá, aldeia Caraíbas, em junho de 2024, apresenta com clareza a solicitação que permanece sem providências por parte do governo federal nesse impasse. A Consulta Prévia Livre e Informada é um direito conquistado pelos povos de serem ouvidos sobre decisões que os afete, porém, a Consulta sem o devido respeito ao deliberado os Xakriabá da aldeia Caraíbas entendem que “este processo perde legalidade e legitimidade”.

“É necessário que o Governo brasileiro prossiga também no pleito demarcatório, assinando e publicando no Diário Oficial da União”

Com largo historio de violências e violações de seus direitos originários, descritos com detalhes na carta, os Xakriabá convivem com prejuízos irreparáveis e relatam continuar “enfrentando situações extremas devido às ameaças decorrentes do nosso posicionamento firme em defesa do nosso território, uma luta legal e legítima pela proteção e defesa da vida, dos biomas e das águas”. Garantir a regularização do território Xakriabá sempre foi a base central das ações de sobrevivência do povo, razões pelas quais, “atualmente, grande parte dos caciques e lideranças do nosso povo estão inseridos no Programa de Proteção de Defensores de Direitos Humanos, [Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH)]”, denunciam.

Na carta, os indígenas elencam a “instabilidade jurídica” como o principal entrave para a garantia e efetivação de seus direitos territoriais, somadas à “morosidade do Estado” em concluir a demarcação da TI Xacriabá. Também denunciam os “interesses políticos e econômicos externos” que afetam suas coletividades, impactam suas vidas e comprometem as bases de sobrevivência do povo.

“Atualmente, grande parte dos caciques e lideranças do nosso povo estão inseridos no Programa de Proteção de Defensores de Direitos Humanos”

Celebração no território Xakriabá faz memória das lideranças assassinadas em chacina, no dia 12 de fevereiro de 1987. Foto: Cimi Regional Leste

Celebração no território Xakriabá faz memória das lideranças assassinadas em chacina, no dia 12 de fevereiro de 1987. Foto: Cimi Regional Leste

Na avaliação dos Xakriabá, a recorrência nos atos de violação de direitos é “alimentada pela falta de ‘vontade política’ que procura se estabelecer como soberana se colocando acima dos princípios constitucionais, o racismo estruturado se caracteriza como ‘legalismo’ e ‘legitimação’ dessa violência”, o que fragiliza ainda mais a existência quanto povo.

Segundo a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário, cabe ao Estado “adotar as medidas necessárias para determinar/identificar as terras que tradicionalmente ocupamos e garantir a proteção efetiva dos nossos direitos”. Assim como, cabe ao “Estado signatário a promoção da plena efetividade dos direitos sociais, econômicos e culturais dos povos indígenas”.

“A recorrência nos atos de violação de direitos é alimentada pela falta de vontade política”

Na carta à Unesco os indígenas reiteram seu compromisso histórico com as ações que permitem um olhar sobre os processos que discutem a crise climática, a proteção e defesa das relações harmoniosas de convivência com a natureza, a defesa e proteção de direitos, e o papel da Unesco, “mas não podemos deixar de chamar a atenção sobre o impasse que carece ser observado e superado”. Razões pelas quais a comunidade reforça o pedido ao governo brasileiro conclua a demarcação da TI Xakriabá.

 

Confira a carta enviada à Unesco:

Território Xakriabá, aldeia Caraíbas, 12 de fevereiro de 2025

À Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco) – Paris/ FR, outros órgãos e autoridades.

Motivo: Selo UNESCO de patrimônio mundial da humanidade do Parque Nacional Cavernas do Peruaçu

Prezados senhores e senhoras representantes da UNESCO,

Neste momento importante onde se discute a implementação do selo UNESCO de patrimônio mundial da humanidade do Parque Nacional Cavernas do Peruaçu, sentimos a necessidade de dialogar e expressar a nossa posição diante desse relevante tema.

Somos atualmente uma população de aproximadamente 12.000 (doze mil) indígenas da etnia Xakriabá, nosso território se localiza nos municípios de São João das Missões e Itacarambi, no extremo norte do estado de Minas Gerais.

Somos habitantes imemoriais do Vale do Rio São Francisco, ainda no século XVII o bandeirante Januário Cardoso, devidamente autorizado pela Coroa Portuguesa, estabelece em termo de doação os limites do nosso território em documento firmado no “Arraial de Morrinhos”, com escritura lavrada em 10 de fevereiro de 1728, este registro cartorial ecoa para nós até os dias atuais como uma verdadeira e legítima “Constituição”. O documento a que se refere esse termo de doação foi registrado no livro paroquial da Vila Januária, sede da comarca e em 19 de abril de 1956 em Ouro Preto, que por ocasião era a Capital da Província. Os limites estabelecidos delimitam a Serra Geral, extremando com o Peruaçu, cabeceiras do Rio Itacarambi, Alto da Boa Vista desaguando no Rio São Francisco.

Ao longo dos séculos nosso território vem sofrendo constantes invasões, atualmente ocupamos apenas um terço das terras delimitadas no referido termo de doação, a manutenção e recuperação desse espaço é fruto de intensos processos de luta, de dolorosas perdas e dos mais graves conflitos já registrados na história do nosso povo.

Em 1927 o episódio denominado batalha do curral de varas, nosso povo sofreu um verdadeiro massacre causado por fazendeiros com auxílio de forças militares. Essa ação violenta ocorreu em represália a não aceitação do nosso povo a invasão do nosso território as margens do rio São Francisco, local onde os nossos antepassados realizavam os rituais religiosos.

Na década de 40, com a promulgação da Lei de no 550, de 1949, nosso território sofre mais um duro golpe ao ser considerada, oficialmente pelo Estado, como terra devoluta. Posteriormente o Instituto de Terras do Estado de Minas Gerais, através da RURALMINAS, responsável pela regularização das terras devolutas no Estado intervém na região, titulando as posses adquiridas por não índios. Tal intervenção desconheceu o nosso direito territorial o que ocasionou inúmeros conflitos, muitas vidas foram ceifadas.

Essa disputa se resolveu parcialmente em 1987, devido ao impacto causado pela emboscada armada na aldeia Sapé, onde foram brutalmente assassinados, Rosalino Gomes de Oliveira, José Teixeira e Manuel Fiúza, que ainda se recuperava de outro atentado sofrido no ano de 1986. O crime considerado genocídio ganhou repercussão internacional, obrigando o Governo Federal a homologar a área em disputa através do documento no 94.608, de 14 de julho de 1987, publicado no Diário Oficial da União.

Em 1996 retornamos a solicitar a Fundação Nacional do Índio sobre a necessidade de continuar com o processo de regularização o nosso território. No ano de 2000 mais uma parte do nosso território foi homologado na região da Rancharia. No ano de 2006 iniciamos mais uma intensa luta de autodemarcação através de ações de retomadas, que posteriormente a Fundação Nacional do Índio criou Grupo Técnico de Trabalho para retomar estudo de demarcação e delimitação através da Portaria no1096/PRES/2007 de 13 de novembro de 2007.

Nós, povos indígenas, convivemos com prejuízos irreparáveis causados pela violação de nossos direitos, promovido principalmente pela falta de vontade política do Estado Brasileiro. Nós caciques, lideranças e comunidades continuamos enfrentando situações extremas devido às ameaças decorrentes do nosso posicionamento firme em defesa do nosso território, uma luta legal e legítima pela proteção e defesa da vida, dos biomas e das águas. Garantir a regularização do nosso território sempre foi visto pelo nosso povo como a base central das nossas ações de sobrevivência. Atualmente, grande parte dos caciques e lideranças do nosso povo estão inseridos no Programa de Proteção de Defensores de Direitos Humanos.

A instabilidade jurídica tem sido o principal entrave para a garantia e efetivação do nosso direito territorial. As constantes ações de invasão têm sempre os interesses políticos e econômicos externos afetando diretamente toda a nossa coletividade, impactando nossa vida, comprometendo nossas bases de sobrevivência e colocando em risco as nossas futuras gerações. A recorrência nos atos de violação de direitos é alimentada pela falta de “vontade política” que procura se estabelecer como soberana se colocando acima dos princípios constitucionais, o racismo estruturado se caracteriza como “legalismo” e “legitimação” dessa violência, fragilizando ainda mais os pilares que sustentam a nossa vida e a nossa existência.

A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), incorporada à ordem jurídica brasileira, dispõe que o Estado signatário deve adotar as medidas necessárias para determinar/identificar as terras que tradicionalmente ocupamos e garantir a proteção efetiva dos nossos direitos. Cabe ao Estado signatário a promoção da plena efetividade dos direitos sociais, econômicos e culturais dos povos indígenas.

O Estatuto do Índio estabelece que as terras indígenas, por iniciativa e sob orientação do órgão federal de assistência, sejam administrativamente demarcadas e protegidas em conformidade com o processo estabelecido em decreto do poder executivo. Os dispositivos acima citados são atualmente regulamentados pelo Decreto 1775/96, que dispõe sobre o processo administrativo de demarcação das terras indígenas.

O relatório circunstanciado de demarcação e delimitação da nossa atual reivindicação foi publicado no Diário Oficial da União em 06 de outubro de 2014, e nesse momento, a assinatura da portaria declaratória é o passo que seguinte que já perdura por 11 anos. O descumprimento do propósito constitucional e das regras estabelecidas nos acordos internacionais viola veementemente o nosso direito, esse regramento ou a falta dele, extrapola todos os prazos legais possíveis e imagináveis. Atualmente são 20 anos, ou 240 meses, ou 7.190 dias consumindo vidas, sonhos e direitos humanos fundamentais, que são lesados cotidianamente, essa morosidade do Estado limita o nosso acesso a bens naturais importantes para a nossa sobrevivência física e cultural.

Diante de toda essa situação, que em poucas linhas expressamos, deparamos atualmente com mais um grande desafio, desta vez envolvendo a candidatura do Parque Nacional Cavernas do Peruaçu ao selo UNESCO de Patrimônio Mundial da Humanidade. Os trâmites que envolvem esse importante movimento também pode ser vistos como mais um impacto previsível, e sua forma de condução também carece de uma avaliação consistente.

O Parque Nacional Cavernas do Peruaçu sobrepõe o nosso território e não o contrário, nesse momento, entendemos ser necessário que o Governo brasileiro prossiga também no pleito demarcatório, assinando e publicando no Diário Oficial da União a portaria declaratória do nosso território, por entendermos que os dois processos precisam caminhar juntos. Esse posicionamento não é uma discordância acerca da importância deste ato encabeçado pela UNESCO, é um pleito que consideramos relevante, contudo, é urgente e necessário que possamos, enquanto povo indígena, nos posicionar diante de preocupações visto que neste momento este pleito se esbarra na falta de encaminhamentos concretos solicitado em tempo hábil ao Governo Brasileiro.

A Ata da Consulta Livre, Prévia e Informada, realizada no nosso território Xakriabá, aldeia Caraíbas, em junho de 2024, apresenta com clareza a solicitação que permanece sem providências do Governo nesse impasse. Tal situação incide sobre objetivos claros estabelecidos na Convenção 169 e determinados como princípios da Consulta Livre, Prévia e Informada, sem isso, entendemos que este processo perde legalidade e legitimidade.

Reiteramos o nosso compromisso histórico com as ações que permitem um olhar sobre os processos que discutem a preocupante situação de crise climática, a necessidade de proteção e defesa das relações harmoniosas de convivência, da defesa e proteção de direitos, bem como o importante papel da UNESCO, mas não podemos deixar de chamar a atenção sobre o impasse que carece ser observado e superado.

Solicitamos uma posição do governo brasileiro em caráter de urgência frente à demanda apresentada, para que possamos avançar no entendimento dessa importante e valiosa iniciativa a ser representada pela UNESCO.

Principal impasse: Reivindicação em caráter de Urgência.

Assunto: Assinatura da Portaria Declaratória do processo de demarcação e delimitação territorial do Povo Indígena Xakriabá.

Referência: Processo 08620.040804/2013-89.

Grupo Técnico: Portaria no1096/PRES/2007 de 13 de novembro.

Superfície Identificada: 43.517 hectares e terra (quarenta e três mil, quinhentos e dezessete hectares).

Situação atual: Relatório de Identificação e Delimitação publicado no Diário Oficial da União em 06 de outubro de 2014, aguardando a assinatura da Portaria declaratória.

Território Indígena Xakriabá em 12 de fevereiro de 2025.Unesco

Share this:
Tags: