Povos indígenas de Brumadinho lançam protocolo de consulta em reação às violações perpetradas pela Vale
O lançamento ocorre durante o aniversário de seis anos do rompimento da barragem de Brumadinho e em reação às violações que os povos Kamakã Mongoió e Xukuru Kariri vêm enfrentando
Na última semana (22), em meio às celebrações que rememoram os seis anos do crime de Brumadinho (MG), os povos Kamakã Mongoió e Xukuru Kariri, ambos situados na região, lançaram seus protocolos de consulta livre, prévia e informada. Os protocolos estabelecem diretrizes a empresas, órgãos públicos e apoiadores sobre como empreendimentos, projetos ou discussões devem ser conduzidos e consultados dentro dos territórios indígenas.
A medida é uma forma de implementar, de forma efetiva, o direito à consulta livre, prévia e informada, como determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Para isso, as comunidades dos povos Kamakã Mongoió e Xukuru Kariri definiram, com o apoio de entidades parceiras como o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Leste, a Cáritas Brasileira e a Rede Igrejas e Mineração Minas Gerais a forma e os critérios com os quais suas decisões serão tomadas.
“Os órgãos governamentais competentes têm que respeitar os caciques e pajés das comunidades, porque muitas vezes eles vêem as comunidades como nada, e aqui tem uma hierarquia a ser seguida”
“O protocolo contém informações sobre quem é o povo Kamakã Mongoió, nossa memória, nossos anciões e sobre como deve ser feita uma consulta dentro da nossa comunidade. E, também, como nos organizamos dentro da nossa retomada”, explicou Nauru Kamakã, cacique da aldeia Kamakã Mongoió, que entende o documento como uma “ferramenta de luta, que divulga a organização do nosso território tanto para quem está nele, como para quem vem de fora”.
Para o cacique Arapowãnã, da aldeia Arapowã Kakya do povo Xukuru Kariri, o protocolo é também uma forma de sua comunidade “ter mais voz” em espaços de decisão que os afetam direta ou indiretamente. “Os órgãos governamentais competentes têm que respeitar os caciques e pajés das comunidades, porque muitas vezes eles vêem as comunidades como nada, e aqui tem uma hierarquia a ser seguida”, explicou a liderança.
O lançamento dos protocolos de consulta de ambos os povos ocorreu dentro da programação da VI Romaria pela Ecologia Integral, que lembra a morte das 272 pessoas vitimadas pela mineradora Vale
O lançamento dos protocolos de consulta de ambos os povos ocorreu dentro da programação da VI Romaria pela Ecologia Integral, que lembra a morte das 272 pessoas vitimadas pela mineradora Vale no rompimento da barragem de Brumadinho. No último sábado (25), o rompimento da Barragem Córrego do Feijão completou seis anos. Até hoje, nenhum responsável pelo crime foi punido.
Retomada
Entre 2021 e 2022, os povos Kamakã Mongoió e Xukuru Kariri retomaram áreas de fazendas desocupadas após o rompimento da barragem de córrego do Feijão. A elaboração dos protocolos de consulta dos povos Kamakã Mongoió e Xukuru Kariri se insere dentro desse contexto de retomadas, “fruto da nossa luta e da nossa retomada aqui nessa região metropolitana do município de Brumadinho”, lembrou Arapowãnã.
Ambos os povos saíram de seus estados – da Bahia, no caso do povo Kamakã Mongoió, e de Alagoas, no do povo Xukuru Kariri – em peregrinações pelo Brasil na busca de terra. O longo histórico de expulsões, ameaças e deslocamentos forçados os impeliu a seguir a mesma sina de outros povos expropriados de suas terras, que buscavam ocupar uma área, ainda que fora de seu território originário. Para eles, essa era muitas vezes a única forma de garantir seus direitos territoriais, seja por meio da demarcação de seus territórios originários ou pela constituição de reservas indígenas em outras áreas.
“Eles [a Vale] viviam com drone 24 horas monitorando a comunidade. Mas o impacto maior foi falar que nós estávamos contaminando a água do açude em que as crianças e toda a comunidade tomam banho”
Foi nesse movimento em sentido à terra que os povos Xukuru Kariri e Kamakã Mongoió chegaram em Brumadinho e ocuparam áreas, até então, destruídas pelos rejeitos oriundos do vazamento da mineradora Vale. Já em posse das comunidades, essas áreas foram compradas pela mineradora. Ao transformá-las em áreas de compensação ambiental, a empresa impediu sua regularização como territórios indígenas.
“Ela [a Vale] fala que é área de compensação ambiental, mas sofremos por três meses cárcere privado, porque ela não queria deixar ninguém ter acesso, impedindo a entrada alimentos e a assistência de saúde a uma criança. Eles viviam com drone 24 horas monitorando a comunidade. Mas o impacto maior foi falar que nós estávamos contaminando a água do açude em que as crianças e toda a comunidade tomam banho”, relatou Arapowãnã.
Vale
Em março de 2024, a comunidade Kamakã Mongoió da região de Brumadinho foi impedida de enterrar uma de suas principais lideranças, o cacique Merong Kamakã, na terra por eles reivindicada.
“Foi um processo muito violento a morte do cacique Merong, principalmente a tentativa da Vale de impedir seu sepultamento naquele território”, relatou Lethicia Reis, assessora jurídica do Cimi Regional Leste, que colaborou com a construção dos protocolos de consulta dos Kamakã Mongoió e dos Xukuru Kariri.
“Para ela [ a Vale] entrar hoje dentro do nosso território, ela tem que consultar e tem que ser uma consulta livre e de boa fé. A consulta pelo nosso protocolo de consulta”
As restrições ao território se somavam ao assédio da imprensa em torno da morte de Merong Kamakã e de pessoas de fora da comunidade que se pronunciavam, sem autorização, em nome da mesma. “Foi aí que eles entenderam a importância de se estabelecer regras para que as pessoas se relacionassem com eles, especificamente no que envolvesse alterações no território”, explicou a advogada.
A construção dos protocolos, nesse sentido, buscava “demonstrar para as empresas, principalmente a Vale, que não é do jeito dela. Para ela entrar hoje dentro do nosso território, ela tem que consultar e tem que ser uma consulta livre e de boa fé. A consulta pelo nosso protocolo de consulta”, explicou o cacique Arapowãnã.
“É a demonstração do avanço que nós demos com a terra, cuidando da mãe terra, naquele local onde a gente tá hoje, que é a aldeia”
Quase cinco anos depois da retomada do território em Brumadinho, o cacique do povo Xukuru Kariri comemora as benfeitorias feitas em uma terra que, até tempos atrás, era terra arrasada. “É a demonstração do avanço que nós demos com a terra, cuidando da mãe terra, naquele local onde a gente tá hoje, que é a aldeia”, explica a liderança.
Para Lethicia, a retomada de terras na região de Brumadinho por povos indígenas após o rompimento da barragem traz uma perspectiva de relação e ocupação com o território que é oposta à relação predatória que a Vale possui com o local. “Ela traz, na verdade, uma nova esperança para a cidade de Brumadinho e para a relação que tem sido constituída com o meio ambiente e com a pauta socioambiental”, considera a assessora.
Acesse os protocolos de consulta dos povos Kamakã Mongoió e Xukuru Kariri.