28/11/2024

O simulacro da conciliação


Por Hellen Loures da Assessoria de Comunicação do Cimi – Matéria publicada originalmente na edição 470 do Jornal Porantim

Veja aqui a edição completa

“Para que não fiquemos nesse diálogo de quem é a última palavra, mas avancemos em um diálogo que minimize os pontos de conflito, tentaremos estabelecer outra forma: nem dizer que tem [marco temporal] e nem dizer necessariamente que não tem”, afirmou o juiz auxiliar do gabinete de Gilmar Mendes, Diego Veras, que conduz as audiências de conciliação para discutir o marco temporal, uma tese jurídica que defende que os povos indígenas só teriam direito às terras que já ocupavam ou disputavam em 5 de outubro de 1988. A discussão acontece mesmo após o Supremo Tribunal Federal (STF), em setembro de 2023, em um longo processo de votação, declarar a tese inconstitucional.

É notório que a tentativa de mediação conduzida pelo ministro Gilmar Mendes em relação ao marco temporal compromete a proteção dos direitos indígenas no Brasil. Ao propor uma solução que busca agradar interesses econômicos em detrimento da decisão já tomada pelo Supremo, essa mediação já favorece um lado específico, minando o avanço da aplicação dos direitos fundamentais dos povos originários à demarcação de suas terras.

Sob a falsa premissa de buscar uma alternativa que “minimize os pontos de conflito”, a mesa de conciliação instalada pelo STF propõe, agora, que se encontre uma solução alternativa sobre a aplicação ou não de um marco temporal na demarcação das terras indígenas. É uma representação clara de como o Estado abdica de seu papel fundamental, transformando a conciliação em um simulacro que carece, e muito, de elementos reais de justiça.

Ou seja, para o ministro Gilmar Mendes não interessa quem tem direito, o importante é minimizar os pontos de conflito para chegar a alguma coisa que os poupe do trabalho de se fazer valer o que diz a Constituição. Nesse sentido, a proposta revela uma estratégia que mais parece um desvio em relação ao que deveria ser a função primordial da Suprema Corte: aplicar a Constituição e proteger direitos fundamentais.

A ideia de estabelecer um “meio termo” quanto à existência do marco temporal não só ignora a decisão do próprio STF, que já considerou a tese inconstitucional por nove votos a dois, como também sugere que direitos fundamentais podem ser tratados como concessões que dependem do acordo entre partes com poderes desiguais. O que a mesa de conciliação tenta vender como uma alternativa pragmática é, na verdade, uma tentativa de apaziguar interesses econômicos poderosos à custa dos direitos indígenas.

Uma proposta “alternativa” à decisão do STF sobre o marco temporal já é, em si, uma contradição

A tentativa de tratar os direitos indígenas como moeda de troca em uma negociação política revela a persistência de uma lógica histórica e colonial de exploração e marginalização dos povos originários, que é perpetuada pelas elites políticas e econômicas do país. São a lógica do extermínio, da violência e do apagamento cultural.

A própria natureza da mesa de conciliação, tal como foi constituída, revela um desequilíbrio intrínseco. Os povos indígenas são chamados a sentar à mesa com aqueles que historicamente os violaram, em um processo que tenta ser retratado como equânime, mas que é profundamente desigual. Quando a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) decide se retirar da mesa de conciliação, Veras, em suas falas, culpabiliza as lideranças indígenas, como se sua ausência significasse uma aceitação tácita da manutenção do conflito. Essa narrativa, é uma tentativa de forçar os indígenas a aceitarem algo inegociável, sob a ameaça constante de que sua resistência seja vista como obstáculo à paz.

Logo, as falas de Veras indicam um desejo claro de evitar um confronto direto com os interesses do Congresso e do agronegócio, mesmo que isso signifique ignorar a própria jurisprudência do STF e os direitos garantidos pela Constituição. A proposta de estabelecer “salvaguardas” para assegurar uma solução rápida e a promessa de indenizações “a valor de mercado” mostram que a preocupação primordial da mesa é com os “proprietários” rurais, e não com a justiça para os povos indígenas.

Uma proposta “alternativa” à decisão do STF sobre o marco temporal já é, em si, uma contradição. O julgamento do do STF deveria ser o ponto final de uma discussão sobre a validade constitucional da tese, e não o início de uma negociação que visa acomodar interesses econômicos que conflitam com direitos já garantidos pela Constituição Federal.

É fundamental que o STF reafirme sua decisão de forma inequívoca e que o Congresso e a mesa de conciliação respeitem essa determinação. A justiça para os povos indígenas não pode ser um ponto de partida para concessões e negociações; deve ser um compromisso inegociável do Estado brasileiro. Precisamos de um Estado que tenha coragem de garantir o que a Carta de 1988 traz a respeito dos direitos originários dos povos indígenas à terra, direitos indisponíveis, inalienáveis e imprescritíveis. Somente assim poderemos garantir um futuro em que os povos originários sejam respeitados em sua totalidade, e não apenas tolerados como parte de um acordo de conveniência política.

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