Até quando o Estado permitirá que a PM do Mato Grosso do Sul atue de forma criminosa nas terras indígenas
Em nota, Cimi repudia violência policial praticada contra indígenas da Reserva de Dourados; ação feriu ao menos 50 pessoas, dentre elas mulheres e criança
Nesta quarta-feira (27), a Tropa de Choque da Polícia Militar (PM) do Mato Grosso do Sul invadiu a Reserva Indígena de Dourados (RID), bombardeou moradias da aldeia Jaguapiru, atirou contra mulheres, crianças e idosos. Segundo apuração do Cimi, quatro indígenas foram presos, três já liberados e um sob custódia. A ação deixou ao menos 50 pessoas feridas, das quais apenas 20 procuraram atendimento médico.
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) vem a público repudiar, de forma veemente, mais este episódio. Até quando as autoridades e instituições do Estado Democrático de Direito permitirão que a PM de Mato Grosso do Sul siga atuando de forma assassina, covarde e às margens das leis contra os povos indígenas?
A ação truculenta da PM se deu após um protesto pacífico realizado pela comunidade na rodovia estadual MS-156, que corta a Reserva. A comunidade reivindicava o acesso a um recurso básico: água.
A violência contra a comunidade representa o total escárnio do governo do estado de Mato Grosso do Sul às instituições democráticas e à Constituição Federal. Trata-se de mais uma demonstração de como o governo de Eduardo Riedel hostiliza não apenas os indígenas, mas a democracia e os direitos humanos.
O governo estadual militarizou de forma definitiva a questão indígena ao usar o aparato repressivo do Estado para aterrorizar comunidades totalmente indefesas. Isto é inaceitável!
Nos causa particular indignação o fato da ação ocorrer a partir da repressão brutal a um protesto pacífico dos Terena, Kaiowá e Guarani que pediam água! Com mais de 100 anos e cerca de 17 mil indígenas vivendo em quase 3.500 hectares, o acesso à água potável é uma emergência humanitária permanente na Reserva.
A operação criminosa se desdobra em seu absurdo, quando o governo Riedel, após retirada da Tropa de Choque da área indígena, envia como porta-voz um policial militar para comunicar aos indígenas as ações a serem adotadas. A “mediação de conflito” tomada pelo governo assume um velho método já conhecido de ‘atira primeiro, conversa depois’.
Acrescenta-se a isso que o governador se fez representar pela PM, que momentos antes estava bombardeando a aldeia, para tratar da política pública. Isto nos revela que para o governo estadual os povos indígenas devem ser tratados com repressão, desumanidade, violência, terrorismo. Mesmo as crianças, os idosos. O governo estadual de Mato Grosso do Sul, aliado histórico dos interesses econômicos do Agronegócio, reproduz permanentemente a violência contra os povos indígenas e demonstra que não é uma instância confiável nem democrática.
A invasão da Tropa de Choque à Reserva de Dourados acontece meses depois de um atirador da PM do Mato Grosso do Sul disparar na cabeça do jovem Neri Guarani Kaiowá, dentro da Terra Indígena (TI) Nhanderu Marangatu, em setembro. Tragédia que se soma a uma lista com anos de episódios de abusos da força policial contra os povos indígenas no estado.
Em 2022, a mesma polícia que alvejou Neri, tirou a vida de Vitor Fernandes, vítima de uma violenta e ilegal ação da PM de de Mato Grosso do Sul, que ficou conhecida como massacre de Guapo’y. No mesmo ano e no ano subsequente, em 2023, a comunidade do tekoha Kurupi foi alvo de sucessivos ataques ilegais protagonizados pela Polícia Militar.
Do mesmo modo, a comunidade do tekoha Laranjeira Nhanderu, em 2023, foi despejada, sem mandado judicial, pelo batalhão da Polícia Militar. Esses ataques policiais tem se repetido de forma sistemática contra comunidades indígenas do estado de Mato Grosso do Sul.
Na tentativa de frear a violência policial, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) entrou no Supremo Tribunal Federal (STF) com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) concedeu medidas cautelares a favor do tekoha Guapo’i, vítima dos excessos da PM. No entanto, parece que a PM do Mato Grosso do Sul possui autorização para seguir descumprindo leis, praticando abusos.
Acesso à água: direito humano inalienável
A água, como reconhecido pela Resolução 64/292 da Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), é um direito humano essencial, fundamental e universal, indispensável à vida com dignidade e reconhecido como “condição para o gozo pleno da vida e dos demais direitos humanos” (Resolução 64/A/RES/64/292).
Este princípio, consagrado também no artigo 225 da Constituição Federal, impõe ao Estado o dever inescapável de proteger e garantir o acesso aos recursos hídricos para todas as pessoas, especialmente as mais vulneráveis.
Apesar da construção de dois super poços nas proximidades da Reserva, com capacidade superior a 10 milhões de litros, nenhuma gota chega às casas das Kaiowá, Guarani e Terenas. A negligência é uma ferida aberta, agravada pela violência estatal que tenta silenciar aqueles que se levantam por dignidade.
Quando uma comunidade indígena, protegida pelos direitos nacionais e internacionais, é privada de algo tão fundamental quanto a água, estamos diante de uma violação que transcende o plano local. É um ataque à humanidade.
Por essas razões, são necessários e urgentes:
- A responsabilização imediata e exemplar dos agentes envolvidos na repressão e das autoridades que autorizaram esta ação criminosa;
- Medidas urgentes para garantir o abastecimento contínuo e seguro de água potável à Reserva de Dourados, com perfuração de poços, distribuição e manutenção do sistema hídrico, como determinado pela Constituição e pelos tratados internacionais ratificados pelo Brasil;
- O fim do uso ilegal das forças policiais estaduais como instrumentos de opressão em terras indígenas, com a admissão por parte do Ministro Gilmar Mendes da ADPF 1059, primando pelo respeito a autodeterminação constitucional dos povos indígenas.
Por fim, diante do desespero e morte causados pela ausência de água e do terror imposto pelas forças de segurança do Estado, reafirmamos nosso compromisso de caminhar e o direito de protestar junto à comunidade, colocando-nos ao seu lado e em sua luta por dignidade, água e territórios.
A água é vida; privá-la é um ato patente de crime contra a humanidade.
Que a justiça corra como um rio, que limpa, sacia, e com força destroi as injustiças e dignifica todos os seres. Que os clamores da comunidade indígena de Dourados por água e direitos ecoem até que a dignidade e a vida prevaleçam.
28 de novembro de 2024
Conselho Indigenista Missionário – Cimi