24/09/2024

Indígenas pedem na ONU cobranças ao Estado brasileiro sobre recomendações contra o marco temporal

Desde as recomendações, feitas por 25 países em 2022, o marco temporal virou lei e hoje mobiliza uma Câmara de Conciliação no STF

Da esquerda para a direita, Vilma Avá-Guarani, Erilza Pataxó e Simão Guarani Kaiowá durante o primeiro dia de trabalhos na ONU, em Genebra. Foto: Renato Santana/Cimi

Por Renato Santana, da Assessoria de Comunicação – Cimi, de Genebra

Estamos em 2022, último ano do governo Bolsonaro. Erileide Guarani Kaiowá, representando o movimento indígena, se dirige aos países membros das Nações Unidas na pré-sessão da Revisão Periódica Universal (RPU). A fala de Erileide se desenvolve a partir de três pontos: a tese restritiva do marco temporal, a proteção pelo Estado dos territórios e dos defensores de direitos humanos indígenas e as demarcações – ou melhor, a ausência delas. 

Como resultado, 25 países recomendam ao Estado brasileiro um conjunto de medidas a partir da exposição de Erileide. Entre elas, barrar o marco temporal, proteger os territórios e os defensores de direitos humanos e demarcar as terras indígenas. O governo Bolsonaro não se pronunciou e decidiu empurrar a decisão para 2023. Derrotado, o ex-presidente declaradamente anti-indígena viu seu sucessor, o presidente Lula, acatar as medidas logo no governo de transição. 

A França está entre os países que fizeram as recomendações. Nesta terça-feira (24), em Genebra, a delegação indígena e indigenista, que participa da 57ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, se reuniu com a Missão Francesa na ONU para denunciar: o governo Lula avançou pouco quanto às recomendações acatadas e o Estado brasileiro ainda não enterrou de vez o marco temporal, que no final de 2023 se tornou a Lei 14701.

“Estamos nos defendendo com a nossa própria vida porque parece que as leis que determinam os nossos direitos não valem”, Vilma Avá-Guarani

Por não atender às recomendações, o Estado brasileiro pode sofrer penalidades. No entanto, a história não é tão simples e envolve procedimentos diplomáticos regimentais da própria ONU, além das relações políticas e econômicas dos países com o Brasil. A volta de Lula à Presidência contribui com a imagem do país no exterior por se tratar de um governo que demonstra compromissos com os direitos humanos. O esperado é que conversas bilaterais entre os países ocorram. A delegação indígena também se reunirá com outras missões na ONU.          

“Estamos nos defendendo com a nossa própria vida porque parece que as leis que determinam os nossos direitos não valem. Essas conciliações propostas não servem para garantir o nosso direito, mas para transformar ele em algo que não é mais um direito”, destacou Vilma Avá-Guarani, da Terra Indígena Guasu Guavirá, no oeste do Paraná. A indígena tem chumbo alojado no corpo por conta dos tiros que recebeu ao defender a retomada tekoha Yvho´i durante ataque.

“Os países recomendaram ao Brasil que anulasse esse marco temporal, mas ele virou lei e os ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) não a anularam ainda”, Simão Guarani Kaiowá

Os indígenas ressaltaram que a Lei do Marco Temporal está diretamente associada à violência crescente apresentada neste ano. “Os países recomendaram ao Brasil que anulasse esse marco temporal, mas ele virou lei e os ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) não a anularam ainda. Isso tem incentivado a violência. A Polícia Militar agora mata a gente, faz despejo ilegal. Essa lei incentiva isso”, disse à Missão Francesa Simão Guarani Kaiowá, das coordenações da Aty Guasu e da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).        

Mesmo com a solução definitiva do STF em declarar como inconstitucional a tese do marco temporal, no âmbito da repercussão geral do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, o Congresso Nacional aprovou a chamada Lei do Marco Temporal, em vigor. Ainda que ela não impeça o governo de demarcar terras indígenas, ações diretas de Constitucionalidade e Inconstitucionalidade referente à lei, impetradas junto à Corte Suprema, levaram a uma decisão salomônica do ministro Gilmar Mendes, relator das ações.    

“Falta vontade política ao governo federal. O que reivindicamos aos países membros é que voltem a cobrar o Estado brasileiro sobre as recomendações da RPU”, Maurício Terena

“Com o avanço da extrema direita no Congresso Nacional (grupo formado por ruralistas responsáveis pela Lei do Marco Temporal) há um desentendimento entre os poderes da República. O STF, infelizmente, optou por uma Câmara de Conciliação (formada pelos que defendem a lei e os que argumentam contra a lei). Os povos indígenas se retiraram desta Câmara. O STF deveria determinar a inconstitucionalidade da lei”, explicou à Missão Francesa o assessor jurídico da Apib, Maurício Terena. 

Para o advogado, por outro lado, “falta vontade política ao governo federal. O que reivindicamos aos países membros é que voltem a cobrar o Estado brasileiro sobre as recomendações da RPU. Os povos indígenas estão sendo duramente atacados diariamente”. Os casos recentes de violências foram levados à Missão Francesa, com destaque ao assassinato de Neri Guarani Kaiowá, de 23 anos, morto durante ataque da Polícia Militar à retomada de seu povo na Terra Indígena(TI)Nhanderu Marangatu, e aos ataques contra os Avá-Guarani da TI Guasu Guavirá, no oeste do Paraná. 

“Há uma decisão dos povos indígenas de não saírem de suas terras, trocá-las ou deixar de reivindicá-las”, Luís Ventura

O secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Luís Ventura entregou um exemplar do ‘Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – Dados 2023’ à Missão Francesa. Conforme disse Ventura, “há uma decisão dos povos indígenas de não saírem de suas terras, trocá-las ou deixar de reivindicá-las. Eles entendem que lutam por um direito amparado pela Constituição Federal (…) em troca recebem ataques do Estado brasileiro com o marco temporal e propostas de conciliação em meio a ataques e mortes”.

Ventura tratou ainda da impunidade que permeia esses ataques sofridos pelas comunidades. Erilza Uruba Pataxó lembrou que as polícias estaduais têm atuado nas terras indígenas, realizando despejos forçados, sem decisão judicial, criminalizando lideranças e levando violência para áreas retomadas. “Quando eles nos atacam ou nos matam, são eles que fazem os boletins de ocorrência e fazem a perícia dos corpos. O Estado brasileiro precisa garantir a nossa proteção. Já os territórios vivem sob tentativa de grilagem. Cadê a proteção?”, disse. 

A agenda dos indígenas na sessão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas segue durante esta semana com mais reuniões junto a missões de países na ONU, Evento Paralelo e pronunciamentos em Plenário.

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