Lei 14.701 intensifica conflitos e recrudesce cerco inumano contra comunidades indígenas no oeste do Paraná
Há mais de dez dias indígenas Avá Guarani sofrem ataques e intimidações na TI Tekoha Guassu Guavirá, em Terra Roxa e Guaíra; Decisões judiciais impedem o acesso à água, comida e abrigo
Há mais de dez dias famílias do povo Avá Guarani vêm sofrendo sucessivos ataques e intimidações em diversos tekoha – lugar onde se é – da Terra Indígena (TI) Tekoha Guassu Guavirá, nos municípios de Terra Roxa e Guaíra, no estado do Paraná. Na região há dezenas de comunidades que reivindicam a conclusão da demarcação do seu território originário.
Nos últimos dias, grupos autoconvocados por fazendeiros literalmente cercaram comunidades indígenas, com caminhonetes e barreiras, dificultando, desde o primeiro momento, a entrada de pessoas que queriam prestar apoio à comunidade, com doações e mantimentos, como lonas, roupas e alimentos. Ao mesmo tempo, estes grupos autoconvocados, chegaram a levar galões de combustível para atear fogo nas imediações da área retomada para expulsar à força os Avá Guarani. Por outro lado, um grupo de deputados e senadores da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA) no Congresso Nacional, participou de uma reunião com 150 ruralistas na cidade de Guaíra, na última terça-feira (23), o que aumentou a pressão e o tensionamento na região, invertendo a realidade e colocando aos indígenas, legítimos donos da terra, como invasores.
O cerco contra as comunidades se intensificou de forma dramática com as decisões proferidas pelo juiz federal João Paulo Nery dos Passos Martins, da 2ª Vara Federal de Umuarama, no Paraná. No dia 19 de julho, o juiz emitiu um Despacho pelo qual determinava, liminarmente, a reintegração de posse em favor do fazendeiro e contra a comunidade indígena. A decisão interfere inclusive em ações previstas no âmbito da Ação Cível Originária (ACO) nº 3555, que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF). O prazo para que a comunidade abandone de forma voluntária o local expira nesta segunda-feira (29). Organizações indígenas, o Ministério Público Federal (MPF) e a União já ingressaram com recursos contra a reintegração de posse no Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em Porto Alegre (RS).
Posteriormente, o mesmo juiz proferiu nova decisão, contra a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), que buscava apoio da Polícia Federal (PF) para a entrega de kits de suprimentos, como alimentos, água, itens de higiene e lonas aos Avá Guarani, o que afronta os direitos humanos e fundamentais dos indígenas de acesso a água, comida e abrigo. A decisão, que não se orienta por princípios constitucionais, firma que “o fornecimento ou a mera entrega de materiais que possam ser utilizados na construção de abrigos vai contra o propósito de desocupação do imóvel, malferindo a ordem judicial determinada nos autos”.
Essa decisão fere a dignidade da pessoa humana e afronta os princípios mais elementares: de viver, comer e se abrigar. Sem discussão de mérito e através de decisão liminar, houve imposição de restrições desumanas às pessoas vítimas do despacho, que deixam de receber água, comida e abrigo. Onde há fundamento jurídico que prima pela morte ao invés da proteção à vida? É possível tamanha autoridade para impedir que crianças possam se alimentar, comer e beber?
Ao mesmo tempo, a decisão impede o cumprimento, por parte da Funai, de suas atribuições e obrigações na defesa e promoção dos direitos fundamentais dos povos indígenas. A Funai já manifestou que a decisão é inconstitucional e que a preservação dos direitos humanos “é um dos fundamentos do Estado brasileiro”.
As intimidações e ameaças ao território, por parte de grupos organizados e armados, e as decisões proferidas pelo Juiz Federal João Paulo Nery dos Passos Martins, configuram uma violência extrema contra as comunidades indígenas e constituem um verdadeiro cerco que impede a chegada de ajuda humanitária, como forma de pressão para que os indígenas desistam de sua reivindicação pela demarcação de seus territórios. A violência de particulares encontra amparo em decisões judiciais que contribuem com a manutenção das ameaças e da violência contra as comunidades.
O Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas – dados de 2023, registrou 150 casos de conflitos territoriais ano passado, dentre eles os ataques contra o tekoha Y’hovy, da TI Tekoha Guassu Guavira, na véspera do Natal. Esses ataques continuaram no início de 2024 e se recrudesceram nos últimos dias. Como afirmou uma liderança desta comunidade, durante o lançamento do Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas com dados de 2023, “o Brasil assistiu e acompanha o conflito, mais que o conflito, uma verdadeira tentativa de massacre aos povos indígenas (…) O que está acontecendo nesses territórios é por conta desse país que diz que temos direitos garantidos na Constituição, mas hoje todos vemos que a justiça brasileira mais uma vez está negando os direitos dos povos indígenas, que com muita dificuldade e com muita luta nosso povo conquistou dentro da Constituição Federal”.
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) confia que o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), ao apreciar os recursos interpostos contra liminar de reintegração de posse que atinge o direito à terra dos Avá Guarani, rejeitará de imediato as pretensões nefastas de primeiro grau, bem como se espera, por extensão, a cassação da liminar que impede à Funai o exercício de suas funções e o auxílio às famílias indígenas.
O Cimi espera também em que o Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento das diversas ações que visam pôr fim definitivo à tese do marco temporal e assegurar, por consequência, a manutenção dos direitos indígenas, mantenha fielmente sua decisão de setembro de 2023 e reafirme, mais uma vez, a indisponibilidade dos direitos dos povos indígenas.
O aumento da violência contra as comunidades confirma, de forma inequívoca, que a manutenção da vigência da Lei 14.701/23 alimenta os conflitos contra os povos indígenas e que não há possibilidade alguma de negociação quando falamos de direitos humanos fundamentais.
Brasília (DF), 28 de julho de 2024.
Conselho Indigenista Missionário (Cimi)