TRF1 decide anular citação na qual aos indígenas Enawenê-Nawê foram notificados por WhatsApp e sem presença de intérprete
Os desembargadores decidiram por anular citação sem a tradução da denúncia para a língua Enawenê-Nawê; decisão foi proferida pela Décima Turma do TRF1 na segunda-feira (20)
A Décima Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) decidiu anular a citação na qual aos indígenas Dodowai, Walakori Atainaene e Lalokwarise Detalikwaene, os três do povo Enawenê-Nawê, foram notificados via mensagem de WhatsApp e sem presença de intérprete, o que impossibilitou a compreensão do teor da denúncia. A decisão foi proferida na segunda-feira (20) em sessão realizada em formato hibrido, presencial e por vídeo conferencia.
No início desse ano, fevereiro, o TRF1 concedeu liminar no habeas corpus em favor dos indígenas por terem seu direito constitucional à língua negado, os indígenas não tiveram ciência dos termos da acusação que lhes havia sido dirigida, resultando em empecilho à defesa.
Na segunda-feira (20), o Tribunal julgou o habeas corpus, as advogadas indigenistas Dra. Michael Mary Nolan e Dra. Caroline Dias Hilgert, haviam solicitado a nulidade da citação por WhatsApp feita sem intérprete, pedido que foi concedido pela Décima Turma do TRF1. Ao anular a citação o “processo deverá ser novamente analisado, agora com a condição de que os indígenas sejam citados pessoalmente e com intérprete”, explica Caroline Dias Hilgert, que também é assessora jurídica do Conselho Indigenista Missionários (Cimi).
“TRF1 concedeu liminar no habeas corpus em favor dos indígenas por terem seu direito constitucional à língua negado”
A tradução da denúncia para a língua Enawenê-Nawê – a língua aruak – para que aí sim fosse realizada a citação pessoal dos indígenas acusados, com a presença de intérpretes, também foi solicitado pela defesa. Neste caso, a Décima Turma do TRF1 decidiu por dois votos contrários e um a favor não conceder a tradução da denúncia para a língua do povo. O relator do caso o desembargador do TRF1, Marcus Bastos, votou pela não tradução da denúncia, a segunda desembargadora votou com ele, já o terceiro desembargador votou por conceder a tradução.
“Ficou dois votos pela concessão parcial do habeas corpus e um pela concessão total, o total porque dava a tradução também, e o parcial porque não deu a tradução, deu só a citação com o intérprete. Mas ainda é possível recorrer da decisão”, explica Caroline. Segundo a advogada dos indígenas, a tradução da denúncia aprimoraria o direito à língua.
Os Enawenê-Nawê é um povo de recente contato que vive no Mato Grosso, “quando foram contactados eram cerca de 200 pessoas, hoje já são cerca de mil pessoas, todos falantes da sua própria língua, com escola na sua língua, dentro do território. É uma única aldeia dividida em cerca de 60 malocas, em um círculo gigantesco, um único círculo”, conta Caroline em sua sustentação oral ao júri.
“Ficou dois votos pela concessão parcial do habeas corpus e um pela concessão total”
Em 2010, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) registrou o ritual Yaokwa, do povo Enawenê-Nawê, como bem cultural. Um ano depois, em 2011, a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), o define como patrimônio imaterial da humanidade.
Por conta desse processo, desse caso, os Enawenê-Nawê tiveram na prisão pela primeira vez. Ainda que alguns indígenas falem um pouco da língua portuguesa eles têm muita dificuldade de compreender por não ser sua língua materna. “Não é porque aprenderam a falar um pouco de português que perdem o direito de se manifestarem na sua própria língua. É a língua materna aonde se faz o raciocínio. Esse é um direito que não pode ser negado, e o sistema de justiça penal não pode ser o corolário da manutenção das discriminações sociais e culturais e linguísticas”, argumenta a advogada.
“Estamos aqui para que o direito à língua dos povos indígenas, especialmente de um povo de recente contato, como é o caso dos Enawêne-Nawê, seja respeitado”
Ao finalizar a sustentação oral ao júri, Caroline reforça que “hoje estamos aqui para que o direito à língua dos povos indígenas, especialmente de um povo de recente contato, como é o caso dos Enawêne-Nawê, seja respeitado”. Além de completar com um o questionamento: “Porque no sistema criminal, punitivo, os Enawenê-Nawê não podem ter o direito de saber o teor das acusações que pesam contra si, além de serem citados pessoalmente com intérprete, com a presença de intérprete?”.
Diversos instrumentos jurídicos nacionais e internacionais dão conta do direito constitucional à língua de forma ampla, a exemplo da Convenção n° 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que prevê aos povos indígenas a proteção contra a violação de seus direitos, assim como “deverão ser adotadas medidas para garantir que os membros desses povos possam compreender e se fazer compreender em procedimentos legais, facilitando para eles, se for necessário, intérpretes ou outros meios eficazes”.
“Deverão ser adotadas medidas para garantir que possam compreender e se fazer compreender em procedimentos legais, se for necessário, intérpretes ou outros meios eficazes”
Entenda o caso
No início desse ano, fevereiro, o TRF1 concedeu liminar no habeas corpus em favor de Dodowai, Walakori Atainaene e Lalokwarise Detalikwaene para suspender a ação penal na qual foram notificados via mensagem de WhatsApp e sem presença de intérprete, o que impossibilitou a compreensão do teor da denúncia. Ao terem seu direito constitucional à língua negado, os indígenas não tiveram ciência dos termos da acusação que lhes havia sido dirigida, resultando em empecilho à defesa.
Na liminar deferida pelo desembargador federal Marcus Vinicius Reis Bastos, as advogadas indigenistas Dra. Michael Mary Nolan e Dra. Caroline Dias Hilgert solicitaram a suspensão da ação penal até o julgamento do habeas corpus. Já no mérito da ação, o pedido é para que seja reconhecida a nulidade da validação da citação por WhatsApp e sem intérprete dos indígenas. Também que fosse determinada a tradução da denúncia para a língua Enawenê-Nawê, para que aí sim fosse realizada a citação pessoal dos indígenas acusados, com a presença de intérpretes.
“O desembargador deferiu a liminar já dando sinais de que a citação no criminal é pessoal e com intérprete”
Na decisão, o desembargador federal concordou com a liminar do pedido feito pelas advogadas dos indígenas e destacou que “os réus devem ter ciência inequívoca, clara, dos termos da imputação que se lhe dirigiu de sorte a poder exercer sua defesa”. Desta forma, “o desembargador deferiu a liminar já dando sinais de que a citação no criminal é pessoal e com intérprete”, explica Carolina Hilgert.
O processo em questão é de dezembro de 2019, versando sobre fatos que ocorreram em 2015 na aldeia Halataikwa, na Terra Indígena Enawenê-Nawê, no Mato Grosso. Em 16 de setembro de 2022, o juiz federal Paulo Sodré concedeu os pedidos que a defesa havia feito para traduzir a denúncia e só aí fazer a citação pessoal com o intérprete. Contudo, esta decisão foi revogada pelo juiz federal de Juína, Rodrigo Bahia, em 13 de dezembro de 2023.
A partir daí, as advogadas do Enawenê-Nawê embargaram a decisão do juiz federal de Juína, que mais uma vez foi rejeitado, então impetraram habeas corpus no TRF1, que teve decisão liminar em 20 de ferreiro de 2024.