Povo Xetá: separados pela colonização, unidos pelo sonho de voltar ao território
Entre as décadas de 1940 e 1960, colonizadores, mediante apoio do Estado brasileiro e do Paraná, usurparam a terra Xetá; até hoje, os indígenas lutam para reconquistar o território
Nem mesmo décadas de violações foram capazes de interromper a luta do povo Xetá pela retomada do território ancestral – usurpado durante o avanço colonial no noroeste paranaense. Apesar de, fisicamente, estarem distantes uns dos outros, os indígenas ainda se sentem conectados e, em unanimidade e sem qualquer indício de dúvida, afirmam que a volta para a terra de origem, localizada na Serra dos Dourados (PR), seria a maior realização de suas vidas.
Falantes de uma língua do tronco Tupi-Guarani, os Xetá foram praticamente dizimados – restando, até onde se sabe, apenas oito crianças do povo –, em decorrência do avanço da frente cafeeira sobre o seu território, entre as décadas de 1940 e 1960. Esse caso foi, inclusive, reconhecido como genocídio pelos relatórios da Comissão Nacional da Verdade (CNV) e pela Comissão Estadual da Verdade do Paraná.
Na ocasião, indígenas do povo foram mortos, transferidos de maneira forçada para outros locais e submetidos a lesões graves à integridade física e mental – incluindo crianças. Tudo isso com a conivência e apoio do antigo Serviço de Proteção aos Índios (SPI) – atual Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
Sem território, os Xetá foram forçados a viver nas terras dos povos Kaingang e Guarani e hoje estão dispersos, morando em locais distantes uns dos outros – nos estados do Paraná e de Santa Catarina. Apesar de se sentirem acolhidos onde estão atualmente, os indígenas sonham em voltar para a terra originária e reconquistar, até mesmo em honra aos parentes que já encantaram, o espaço que sempre pertenceu a eles.
Do período da colonização, ainda estão vivos cinco indígenas do povo Xetá: Kuein Manhaa’ei Nhaguakã, Ã Maria Rosa – Moko na língua Xetá –, Tiguá Maria Rosa Brasil, Tiguá Ana Maria e Moha’ay Rondon Xetá.
Em novembro de 2023, a equipe do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) viajou pelo estado do Paraná para conhecer, de perto, a realidade atual dos sobreviventes e de seus familiares. No entanto, dos cinco, dois não foram contatados pessoalmente: Rondon, por morar em outro estado, e Tiguá Ana Maria, por estar com o quadro de saúde fragilizado.
Não se sabe, ao certo, quantos indígenas Xetá viviam na Serra dos Dourados. No entanto, a estimativa é de 250 pessoas conforme registros documentais e bibliográficos.
Território usurpado
Andando pela PR-182, rodovia que passa ao lado da área original do povo Xetá, nota-se nas margens das pistas uma paisagem exuberante, composta por árvores da região, como a Araucária. Mas, ao final dessa faixa arborizada, o real cenário é desvendado: a mata nativa parecia apenas uma cortina para esconder a vasta plantação de cana-de-açúcar que tomou conta da Terra Indígena (TI) Herarekã Xetá.
A área é localizada nas imediações da Serra dos Dourados (PR), próxima ao rio Ivaí, afluente do rio Paraná, onde se delimita a fronteira dos estados do Paraná e do Mato Grosso do Sul. Foi no final da década de 1940 que o território passou a ser invadido e esbulhado devido à expansão do café: em 1948, contrariando todos os documentos que comprovavam a presença dos indígenas naquele espaço, o governo paranaense entregou a terra Xetá à empresa de colonização Suemitsu Miyamura & Cia. Ltda.
Três anos depois, em 1951, o governo de Bento Munhoz da Rocha repassou o território para a Companhia Brasileira de Imigração e Colonização (COBRIMCO), pertencente ao grupo Bradesco, um dos maiores bancos privados do país. Foi no início das operações da COBRIMCO que as crianças Xetá começaram a ser retiradas de seus pais, sequestradas e levadas em caminhões para longe da terra – incluindo alguns entrevistados desta reportagem.
Já se passaram mais de 70 anos e pessoas ligadas ao Bradesco seguem instaladas no local, sobrepondo atividades predatórias na terra que, originalmente, pertencia ao povo Xetá. Além da cana-de-açúcar para a produção de etanol, há lavouras de café, pasto e criação de gado. A fazenda está em nome da empresa Santa Maria Agropecuária Ltda, dos sócios Rubens Aguiar Alvarez e Lia Maria Aguiar, e da Concialpa Participações e Comércio Ltda, dos dois e de Denise Aguiar Alvarez. Rubens e Denise são netos do fundador do banco Bradesco, Amador Aguiar. Já Lia, é filha adotiva de Amador.
A demarcação da TI Herarekã Xetá se arrasta desde 1999, quando a Funai abriu um processo para tratar da identificação e delimitação do território. Seis anos depois, em 2005, foi elaborado, pelo Grupo Técnico Interdisciplinar – coordenado pela antropóloga Carmen Lúcia da Silva –, o primeiro Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID) da terra Xetá. Na ocasião, foi reconhecida uma área de 12.433 hectares (ha).
No entanto, em 2013, a Funai demandou à antropóloga Carmen Lúcia que adequasse o RCID, o que ocasionou a redução drástica do território: sobraram apenas 2.686 hectares para os Xetá. Agora, a terra dos Xetá aguarda a assinatura da portaria declaratória por parte do Ministério da Justiça (MJ).
Para o advogado do povo Xetá, Marco Alexandre de Souza Serra, a decisão de reduzir o território não pareceu ser antropológica. “Até onde entendo, foi por razões políticas. A antropóloga [Carmen Lúcia da Silva] responsável pelo processo compreendia muito bem a situação do povo Xetá. Mas percebi que os Xetá entenderam e aprovaram a redução, porque, assim, a demarcação se tornaria mais possível. Inclusive, porque não iria mexer com fazendeiros da região, além dos donos da fazenda Santa Maria Agropecuária, que pertence ao grupo Bradesco”.
Ameaça: marco temporal
Esbulhados do território de origem antes da promulgação da Constituição Federal de 1988, o povo Xetá está entre aqueles ameaçados pelo marco temporal. Defendida por ruralistas e setores interessados na exploração das terras indígenas, a tese inconstitucional diz que os povos originários só teriam direito à demarcação dos territórios que estivessem sob sua posse no dia 5 de outubro de 1988, ou que, naquela data, estivessem sob disputa física ou judicial comprovada. Na prática, o marco temporal inviabiliza a demarcação das terras indígenas e abre os territórios para atividades predatórias, ferindo o artigo 231 do texto constitucional.
Em mais um enfrentamento ao Supremo Tribunal Federal (STF), no dia 14 de dezembro de 2023, deputados federais e senadores derrubaram a maioria dos vetos do presidente Lula ao Projeto de Lei 2903/2023 – dentre eles, o trecho relacionado à tese do marco temporal. Ao todo, foram rejeitados pelos parlamentares 41 dos 47 itens analisados em Plenário. Ou seja, apenas seis itens vetados por Lula no projeto foram mantidos.
O Poder Legislativo tomou essa decisão pouco tempo depois de a Suprema Corte declarar a inconstitucionalidade da tese, em setembro deste ano. Agora, indígenas e indigenistas recorrem ao STF para reverter a situação e impedir a validação do marco temporal para a demarcação das terras originárias. Para o advogado e assessor jurídico do Cimi, Rafael Modesto, esse é um contexto definidor para os Xetá.
“O caso Xetá é específico e delicado, mas também se assemelha a muitos outros casos de comunidades que foram desapropriadas e expulsas de seus territórios de ocupação tradicional. Os Xetá não ocupavam as suas terras na data de 5 de outubro de 1988, data que os ruralistas defendem como a data do marco temporal. E, para o povo Xetá, a existência ou não dessa tese vai definir o seu futuro. Se mantém a integridade do texto constitucional sem o marco temporal, o povo vai ter seu território demarcado e vai poder sobreviver e viver de acordo com seus usos e costumes, recuperar as suas tradições. Assim, a justiça será feita. Caso contrário, o povo Xetá não terá direito à demarcação como meio de reparação, inclusive”, explica Rafael Modesto.
Ainda de acordo com a análise do advogado, somente é possível preservar as características socioculturais e religiosas dos povos indígenas caso a Constituição Federal seja respeitada. Caso contrário, ficarão vulneráveis e fragilizados.
“Sem as garantias constitucionais devidas e aprovadas em 1988, os indígenas continuarão dispersos e, portanto, não terão um espaço de sobrevivência física e cultural assim como determina a Constituição. Para os Xetá, quanto povo, é necessário que o marco temporal deixe de existir no ‘mundo jurídico’. Ele nunca existiu, é só uma tese dos ruralistas que, até então, está em disputa. Mas a existência do povo Xetá, e de todos os outros, depende da inconstitucionalidade do marco temporal e a manutenção do texto do artigo 231 da Constituição Federal de 1988”, finaliza.
O Ministério Público Federal (MPF) acompanha o processo de demarcação do território do povo Xetá desde o começo dos anos 2000. Em 2010, o órgão ingressou com uma ação na Justiça Federal pedindo que a Funai finalizasse os trabalhos de identificação e delimitação da TI Herarekã Xetá.
A sentença chegou a transitar em julgado em março de 2021, após a Justiça conceder o pedido do Ministério Público Federal. No entanto, o processo foi suspenso devido ao julgamento do Recurso Extraordinário com repercussão geral (RE-RG) 1.017.365, no STF – caso que trata dos direitos originários. Agora, com a finalização do julgamento, o MPF instaurou um procedimento administrativo, em 2023, para que o processo volte a tramitar e seja concluído e também para analisar as violações aos Xetá.
Apesar de o Poder Legislativo tentar barrar a demarcação dos territórios indígenas por meio da tese do marco temporal, o MPF continuará se debruçando sobre o caso Xetá para garantir a devolução da terra aos indígenas. Ao Cimi, o procurador da República Raphael Otávio Bueno Santos explica a importância de analisar o histórico do povo para que a demarcação seja efetivada.
“Vamos nos aprofundar no período em que houve a dizimação dos Xetá, no final da década de 1940 e, principalmente, na década 1950, na Serra dos Dourados. Nesse período, houve, inclusive, rapto de crianças. Então vamos nos aprofundar nesses fatos, nessas violações de direitos humanos. E, diante da comprovação, iremos buscar uma reparação ao povo Xetá para além da questão territorial”, afirma o procurador Raphael Otávio.
Sobreviventes e familiares
Kuein Xetá
Dentro de uma casinha de madeira com alpendre, na Terra Indígena (TI) Marrecas, Kuein – o Xetá mais velho dentre os sobreviventes do período que dizimou o povo – passa os dias de sua vida, desde que teve um derrame cerebral, sendo cuidado por Helena Machado Kaingang – viúva de Tucanambá, conhecido como Tuca Xetá (capturado na árvore pelos brancos, em 1952, e falecido em 2007). Tuca e Kuein eram primos.
Apesar de ter se comunicado pouco com a equipe do Cimi, Kuein reforçou o seu nome em Xetá e expressava todos os seus sentimentos por meio de um olhar e sorriso acolhedores – parecia até mesmo uma forma de manter a resiliência perante o difícil histórico de vida.
Ainda bebê, Kuein perdeu a mãe enquanto era amamentado. No documentário “Xetá”, do diretor Fernando Severo, Kuein conta, brevemente, como foi esse episódio. “A minha mãe morreu quando eu estava mamando no peito. Daí meu pai me tirou da minha mãe e eu disse para o meu pai: ‘a minha mãe está dormindo’. E ele respondeu: ‘não, ela não está dormindo. Já morreu’”.
Agora, quem cumpre com o papel maternal na vida de Kuein é Helena Kaingang. “Eu faço tudo pelo Kuein, ele até me chama de mãe. Eu não o deixo sozinho nunca. Tenho minhas irmãs, que moram aqui perto e cuidam dele quando eu preciso dar uma saída. Mas nunca fico muito tempo fora”, conta Helena.
A fala de Helena se confirmou quando a equipe do Cimi estava prestes a se despedir para seguir caminho para outro território. Ao lado de Helena, em frente à porta de casa, Kuein sinalizou: “ela é minha mãe”.
O passado de Kuein, assim como de todo o povo Xetá, não foi fácil. Em depoimento à pesquisadora Carmen Lúcia Silva, na década de 1990, Kuein narrou como ele e seus parentes percebiam a aproximação dos txikãndji (brancos), na Serra dos Dourados.
“Quando o avião passava no alto, eu tinha medo. Fazia muito barulho, como aquela espécie de besouro que conhecíamos. A gente se escondia tudo no mato. À noite, deitado nos braços do meu pai, eu perguntava: ‘pai, o que é isso que passa em cima da árvore?’. E ele respondia: ‘isso que você está vendo no alto, fazendo barulho, é gente branca. É coisa de branco, eles andam lá dentro’”.
Já adolescente, com aproximadamente doze anos de idade, Kuein foi sequestrado. No Relatório Figueiredo, há a menção de uma correspondência de Durval Antunes Machado, servidor do SPI, de 25 de maio de 1957. No documento, Durval narra que Antônio Lustosa de Freitas, administrador da fazenda Santa Rosa, comunicou-lhe a “captura” de uma criança Xetá por um caminhoneiro que dizia morar em Bauru (SP). A criança era Kuein. Estima-se que ele tenha sido raptado entre setembro e outubro de 1956.
Levado pelo caminhoneiro, que era conhecido apenas pelo nome de Luiz, Kuein foi empregado em um circo. Segundo o Relatório da Comissão Estadual da Verdade do Paraná, “possivelmente [Kuein foi] apresentado como um ‘selvagem’, como há alguns séculos se exibiam índios aos europeus, ou empregados em trabalhos braçais desvalorizados”.
Não por escolha, Kuein foi migrando para diversos locais do país. Ao longo da vida, ele chegou a morar em São Paulo (SP), Curitiba (PR), Nonoai (RS) e Guarapuava (PR).
Tikuein Xetá, o homem do espelho
A cerca de 400 quilômetros de distância da TI Marrecas, na TI São Jerônimo da Serra, está a família de Tikuein Iratxó – nome que tem como significado “menino peixe”. No local, moram todos os filhos que Tikuein teve com a mineira Maria Conceição Pereira Martins – e há uma filha morando na área urbana de São Jerônimo da Serra (PR).
Tikuein era um dos indígenas Xetá que ainda falavam fluentemente a língua do povo. Para impedir que o dialeto se perdesse com o tempo, ele conversava com a sua própria imagem projetada no espelho. Ele é considerado, até hoje, referência do povo quando o assunto é a luta pela demarcação do território.
Em entrevista ao Cimi, a liderança Júlio Cezar da Silva, filho mais novo de Tikuein, afirma que seu povo seria mais livre e autônomo no território originário, assim como seu pai desejava. “Teríamos mais dignidade. Sonhamos em ter um território para falar que é da gente, para a gente plantar e colher o que temos vontade. Não é que a gente não consiga em outros territórios, mas a gente não tem um território próprio e não temos voz ativa. As nossas crianças teriam mais liberdade também”, explica.
Com poucos dias de vida, Júlio se mudou de Ortigueira (PR), com seus pais e irmãos, para a TI São Jerônimo da Serra. Hoje, casado com uma indígena do povo Guarani e com seis filhos, ele se desloca do território todos os dias, no turno da noite, para garantir o sustento da família. Além disso, em outros momentos do dia, Júlio dá aulas de língua Xetá para as crianças e adolescentes do povo, incluindo seus filhos – herança deixada pelo seu pai.
“A nossa cultura é muito especial e nós passamos, desde a cultura até a língua materna, para as crianças. Elas têm que manter essa tradição, a gente não pode deixar adormecer. A língua materna é uma identidade a mais para nós”, afirma Júlio Xetá.
Além da língua, Tikuein deixou um vasto legado para seus filhos. “A gente sente muito orgulho de nosso pai. Não tivemos tanta convivência, porque ele passava muito tempo fora para sustentar a família. Mas, o tempo que a gente tinha juntos, ele nos ensinou muito. Para cada um de nós [filhos de Tikuein], ele deixou um ensinamento diferente. Para mim, ensinou sobre as ervas medicinais e artesanato. Para o Claudemir, ensinou a linguagem e a luta para conquistar os nossos direitos. Para cada um, deixou um aprendizado diferente para, então, repassarmos aos mais jovens”.
Quando questionado sobre alguma memória marcante de seu pai, Júlio se emocionou. Para ele, a expulsão dos Xetá do território é a mais impactante. “Ele nos contava que, quando morava no mato, eram mil maravilhas. Pescavam, caçavam e coletavam mel. Não tinha sofrimento e a natureza oferecia tudo o que precisavam. E, de repente, chega um pessoal [colonizadores, fazendeiros e políticos] e retiram eles de lá, dessa zona de conforto. Até hoje estamos na luta para tentar voltar e ter uma vida digna. Mas não conseguimos”.
Com os olhos já marejados, Júlio também lembrou dos momentos em que Tikuein reunia a família para contar as histórias do passado – geralmente aos finais de semana ou após voltar das viagens que fazia a trabalho – e da última viagem que o pai fez, que foi para a capital federal.
“Além de trabalhar, meu pai lutava para demarcar a terra do nosso povo, tentava dar visibilidade ao povo Xetá. A última viagem que ele fez foi para Brasília, onde não conseguiu retornar com vida. Depois de uma semana de espera, o seu corpo chegou ao território. Mas isso também é o que mais fortalece a gente. A gente viu o corpo do pai chegar de uma luta e sem uma resposta. Isso só fortalece para que a gente siga lutando”.
A liderança, que sempre batalhou pelos Xetá, faleceu no dia 18 de dezembro de 2005, em Brasília. Ele viajava para a capital federal, com frequência, para participar de estudos desenvolvidos pelo Laboratório de Línguas Indígenas da Universidade de Brasília (UnB). Na certidão de óbito, consta que Tikuein faleceu devido a um Acidente Vascular Cerebral (AVC) isquêmico – entre outras complicações.
Ao ser transportado da capital federal para a TI São Jerônimo da Serra, o corpo de Tikuein foi extraviado e acabou parando em Minas Gerais. Por isso, Júlio ainda lamenta o atraso de uma semana de espera para se despedir do pai.
As irmãs de Júlio, todas também filhas de Tikuein com Maria Conceição, partilharam as mesmas memórias contadas por Júlio: os almoços em família com contação de histórias, os ensinamentos relacionados à língua e ao artesanato, além da luta pela recuperação do território.
Benedita, Rosângela e Zenilda da Silva – três filhas de Tikuein que foram entrevistadas para esta reportagem – também almejam concretizar o sonho do pai de voltar para a terra ancestral dos Xetá.
“O nosso desejo é deixar nossos filhos amparados em um território que é dos pais, e que já foi dos avós. O território é tudo, é onde conseguimos tirar o sustento, o alimento, para a família. A criação de nossos filhos no mato é outra coisa”, afirma Benedita.
Assim como Júlio e Benedita, Zenilda expressou o desejo de viver na terra que pertence ao seu povo. “Gostaria de me mudar para um território demarcado. É muito importante para nós, porque não temos um espaço nosso. Convivemos bem com os Kaingang e Guarani, mas precisamos de um lugar para nós, para fazermos o nosso trabalho, para respirarmos”, desabafa.
Júlio – o tempo todo acompanhado de Giuli – fez questão de levar a equipe do Cimi também até Rosângela da Silva Cândido, sua irmã que mora na área urbana do município de São Jerônimo da Serra.
Em uma casinha similar às do território, Rosângela vive com seu marido, Sebastião Xetá – filho de à Maria Rosa –, filhos e netos. Gentilmente, Rosângela serviu um café, feito na hora, para a equipe do Cimi enquanto conversava sobre o seu contexto atual de vida.
Ela se mudou para a cidade há quatro anos na tentativa de melhorar as condições, mas, ao longo do tempo, surgiram dificuldades – principalmente relacionadas ao aspecto financeiro. “Viemos atrás de melhorias, mas estamos pagando aluguel, conta de água, de energia e até de gás. Às vezes a gente tira da boca [o alimento] para pagar as contas”, lamenta.
Além disso, Rosângela não escondeu a angústia por estar longe da família e, assim como seus irmãos, acredita que a ida para o território originário fortaleceria esse vínculo também com outros parentes do povo Xetá.
“Meu sonho é voltar para a terra do meu pai, que ele morreu lutando. E nós temos que lutar também. Os outros [Xetá] estão velhinhos, então estamos ficando no lugar deles. Nós temos que batalhar por nossas terras e viver lá, realizar o sonho de nossos pais, de estarmos todos juntos. Vamos lutar, viver juntos e em harmonia”, concluiu às lágrimas.
à Maria Rosa
Diferente dos filhos e netos de Tikuein, Arikã Xetá, filho de à Maria Rosa – Moko –, não teve a mesma oportunidade de conhecer a língua de seu povo. Atualmente, Arikã e sua mãe moram na TI Rio da Areia, também no estado do Paraná – mais de 300 quilômetros de distância da TI São Jerônimo da Serra e cerca de 100 quilômetros da TI Marrecas. Além deles, moram no território os quatro filhos de Arikã, Madalena, sua esposa e indígena do povo Kaingang, e Carlos Guarani, marido de à Maria Rosa.
Para acessar o território, é preciso entrar no município de Inácio Martins (PR) e depois trafegar, por cerca de 50 quilômetros, em uma estrada de terra. Quase chegando ao território, é possível ver as moradias de um ponto alto, cercadas por morros e árvores nativas da região – uma paisagem de tirar o fôlego. No local, assim como na TI São Jerônimo da Serra, vivem indígenas Kaingang, Guarani e Xetá.
Arikã faz coro com os filhos de Tikuein quando a questão é ter um território demarcado. “Nós nos sentimos bem aqui, todo mundo se ajuda e se respeita. Mas sempre tivemos o sonho de ter um território nosso. Esse era também o sonho daqueles Xetá que já faleceram”, diz Arikã.
Hoje a principal fonte de renda da família de Arikã é a erva-mate, cultivada pela maioria dos indígenas do território Rio da Areia.
Tímida em frente à câmera, sua mãe, Ã Maria Rosa, preferiu não se abrir. Mas, por trás dos bastidores, Ã contou sobre a saudade que sente da sua única filha mulher, a Kátia – que hoje mora em Mangueirinha, município do Paraná. Por diversas vezes, Ã Maria Rosa externalizou a sua vontade de cuidar da filha e de ser cuidada também, desejo que parece denunciar a falta de zelo que teve no passado.
à Maria Rosa foi retirada de seus pais ainda quando criança, com, aproximadamente, seis anos de idade, e levada para Curitiba por José Dival de Souza – indigenista e chefe da 7ª Inspetoria Regional do SPI (7ª IR/SPI). De acordo com um depoimento que ela cedeu à antropóloga Carmen Lúcia da Silva, publicado no Relatório da Comissão Estadual da Verdade do Paraná, dá a entender que sua mãe faleceu em decorrência de envenenamento.
“Minha mãe morreu depois do meu pai. Os brancos, acho que os engenheiros, abriam picada, com machado, picareta, e moravam numa fazenda lá perto. Eles construíam estradas próximo ao local onde ficavam nossos ranchos. Foi quando deixaram carne de charque nos nossos ranchos para nós comermos. Nossa gente nunca tinha comido isso. Todos comeram aquilo com farinha que eles deixaram. O grupo inteiro morreu com dor de barriga. Apenas algumas crianças iguais a eu [sic] não comeram, foi assim que nos salvamos. Foi assim que minha mãe morreu, e aquela nossa gente que parava ali”, diz à em depoimento à antropóloga.
Levada para a capital paranaense, Ã Maria Rosa passou a viver com seus irmãos Kaiuá e Tuca na pensão de Dival de Souza. Posteriormente, ela foi encaminhada para o município de Tamarana (PR), onde passou a ser criada pelo chefe do Posto Indígena (PI) Apucaraninha, Alan Cardec, e sua esposa, Maria Nair Pedrosa.
Tiguá Maria Rosa Brasil
Tiguá Maria Rosa Brasil foi outra criança que não teve a oportunidade de crescer com sua própria família. Por volta dos sete anos, a pequena Tiguá foi levada para a Fazenda Santa Rosa, de Antônio Lustosa de Freitas e Carolina Lustosa de Freitas – o fato ocorreu na década de 1950.
Por ter convivido pouco com os Xetá, Tiguá não teve oportunidade de aprender a cultura de seu povo. O pouco que restou consigo foi a língua. Em entrevista ao Cimi, realizada em sua casa, ela contou que entende a língua Xetá, porém tem dificuldade para fazer a tradução das palavras para o português.
Hoje Maria Rosa Tiguá leva uma vida simples, porém se sente feliz ao lado da família. Além das tarefas domésticas, ela ajuda o genro com as plantações que cultivam em uma chácara e, nas horas livres, se dedica também ao crochê. Ela já trabalhou também no Bosque dos Xetá, em Umuarama (PR).
De uma caixa que pegou do quarto, Tiguá tirou um punhado de fotos para mostrar à equipe do Cimi. Dentre elas, haviam registros originais e também cópias de fotos que estão, atualmente, no acervo do Museu Paranaense (MUPA). Na ocasião, Tiguá chorou ao lembrar do momento em que chegou à fazenda de Antônio e Carolina.
“Eu era muito pequena, os índios caminhavam muito rápido e acabavam me deixando para trás. Teve um dia que eles chegaram na fazenda Santa Rosa para ficar próximos ao fogo no rancho, e eu fiquei para trás. Mas meu padrinho [assim chamado Antônio Lustosa de Freitas] pediu para irem atrás de mim. Eu lembro de ir chorando, no escuro, até chegar na fazenda. Eu sofri muito, não tinha pai nem mãe. As pessoas não cuidavam bem de mim. Era para eu ser uma pessoa revoltada, mas não tenho culpa do meu sofrimento”, relatou Maria Rosa Tiguá. Foi nesse episódio que ela ficou pela fazenda e não retornou mais para a aldeia de seu povo.
Questionada se voltaria para o território dos Xetá, de imediato respondeu: “iria com todo o prazer”. “Estou cansada de viver assim, com o povo todo espalhado, um em cada canto. Se a gente estivesse junto, seria outra coisa. Não precisa ser ‘aquela fazendona toda’ [referindo-se à fazenda Santa Rosa], mas um lugar que a gente possa plantar, colher e viver unidos”.
Ela reforçou, ainda, que os indígenas só querem paz e aproveitou para mandar um recado para as pessoas que vivem e trabalham na região. “Não vamos mexer com fazendeiros, chacareiros nem com o Bradesco. Ninguém vai tomar nada de ninguém. Queremos apenas retornar para a nossa terra”.
Família Freitas
O casal Antônio Lustosa de Freitas – sobrinho do deputado estadual e proprietário da fazenda Santa Rosa, Antônio Lustosa de Oliveira – e Carolina Lustosa de Freitas foi quem, de modo determinante, intermediou o contato com o povo Xetá.
No Relatório da Comissão Estadual da Verdade do Paraná, é possível encontrar um depoimento de Carolina cedido ao documentário “O extermínio dos Xetá e da floresta”, produzido e dirigido por Ana Lúcia Ribas, em 2004. Pelo que consta no documento, ela e o marido se assustaram ao ver os indígenas se aproximarem da fazenda, mas quiseram ajudar.
“Vamos agradar eles [e eles ‘ponhavam’ a mão assim, faziam assim, apalpando a barriga em gesto de que queriam comer]. Eles estão com fome! O que tem aí eu vou dar. Eu tinha feito aqueles bolinhos, aqueles bolinhos de chuva. Peguei a bacia de bolinho e entreguei para eles […]. Meu marido pegou um e comeu para eles verem. Aí eles comeram. Aí sentaram tudo em volta daquela bacia enquanto não comeram tudo, não sossegaram. Aí ficaram. Tudo para eles era novidade”.
Recepcionados pelo casal, os Xetá passaram a visitar, com frequência, o lugar. Ainda de acordo com Carolina, na primeira aproximação, no ano de 1954, foram seis homens – dentre eles, quatro adultos e duas crianças. Dias depois, esse mesmo grupo dos Xetá voltou acompanhado de mulheres e crianças de colo.
“É preciso ter claro que a aproximação à fazenda Santa Rosa, em 1954, é o evento que consolida e torna definitivo o contato dos Xetá com os brancos. De toda maneira, tal aproximação deve ser entendida como medida extrema, pois se dá em um contexto em que estavam acuados e já tinham tido pelo menos duas crianças subtraídas pelos invasores brancos”, frisa um trecho do Relatório da Comissão Estadual da Verdade do Paraná.
Encontros
Em agosto de 2023, foi realizado um encontro para discutir o violento histórico enfrentado pelo povo Xetá e a necessária reparação. O evento ocorreu na Universidade Estadual de Londrina, no Paraná, e contou com a participação de lideranças do povo Xetá que vivem, atualmente, na TI São Jerônimo da Serra.
Na ocasião, foi abordada a cronologia sobre o processo de violência e quase dizimação dos Xetá e a luta pela sobrevivência. Além disso, foram atualizadas as informações referentes aos processos administrativo e judicial que envolvem a demarcação da TI Herarekã Xetá.
Os indígenas aproveitaram a oportunidade para fazer algumas deliberações, entre elas: fortalecer a articulação dos Xetá, hoje dispersos em diferentes territórios dos estados do Paraná e de Santa Catarina; promover a articulação dos Xetá com outras organizações indígenas e indigenistas; visibilizar a luta do povo Xetá por meio da produção de materiais jornalísticos; e reivindicar providências aos órgãos responsáveis pela garantia dos direitos originários, como a Funai, o Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério dos Povos Indígenas (MPI).
Além desse evento, os Xetá promoveram outros encontros ao longo dos anos: em 1994, com o apoio das professoras Kimiye Tommasino e Marcolina T. Carvalho, na TI São Jerônimo da Serra (PR); em 1997, organizado pelo Instituto Socioambiental (ISA), em Curitiba (PR) – ocasião em que os indígenas se reuniram e conheceram familiares; em 2007, organizado pelo Cimi, em Guarapuava (PR) – nesta oportunidade, seis sobreviventes do massacre Xetá estiveram presentes; e em 2019, organizado por pesquisadores e indigenistas, novamente na TI São Jerônimo da Serra.
Recentemente, em novembro deste ano, os indígenas Xetá participaram do I Seminário Internacional Mundo Guarani, em Foz do Iguaçu (PR). Na ocasião, eles aproveitaram para entregar um documento à ministra do Ministério dos Povos Indígenas (MPI), Sônia Guajajara. Em carta, os Xetá narram o histórico vivido pelo povo e pedem apoio para prosseguir e concluir o processo de demarcação da TI Herarekã Xetá.
No mês seguinte, em dezembro, algumas lideranças Xetá também estiveram presentes na 1ª Conferência Estadual dos Povos Indígenas, em Foz do Iguaçu. Na oportunidade, foi construída uma moção de apoio à demarcação do território do povo Xetá.
“A memória das pessoas Xetá e os documentos históricos demonstram que o referido povo foi exterminado, restando apenas oito crianças sequestradas e adotadas por pessoas de diferentes lugares que, ao cresceram, se casaram e hoje possuem mais de 200 filhos, netos e bisnetos que se autodeclaram Xetá. Essas oito pessoas e seus descendentes (cinco permanecem vivas) nunca tiveram a possibilidade de viver num mesmo espaço, ou seja, são mais de 70 anos de isolamento e separação, uma brutal violência que, ao não permitir o reencontro, segue violentando”, diz um trecho do documento.
“Clamamos ao governo estadual que, num gesto de reparação histórica envide todos os esforços administrativos, jurídicos, políticos e financeiros para devolver essa terra ao povo Xetá e que peça desculpas pelo crime cometido”, concluem os indígenas, em moção.