07/02/2024

Entre aprendizados e vivências: Alcilene Bezerra há 25 anos respirando a pluralidade dos povos indígenas

“O Cimi desde o início tem como fundamento essencial na sua atuação a inculturação, viver a vida para o outro, respeitar seu modo de vida, ouvir mais do que falar e compartilhar”, afirma a vice-presidente da entidade missionária, em entrevista exclusiva ao Porantim

Foto: Tiago Miotto/Cimi

Por Hellen Loures da Assessoria de Comunicação do Cimi – MATÉRIA PUBLICADA ORIGINALMENTE NA EDIÇÃO 461 DO JORNAL PORANTIM

Na melodia ancestral que ecoa através dos séculos, entrelaçando-se com a terra e com os direitos sagrados dos povos indígenas, Alcilene Bezerra, a nova vice-presidente do Cimi, guiada pela voz dos que foram por tanto tempo silenciados, compartilha conosco sua jornada de doação e inspiração à causa indígena e indigenista.

Em entrevista exclusiva ao Porantim, a missionária reflete sobre a relevância do Cimi e os desafios enfrentados na contemporaneidade e também acerca dos primórdios da luta pelos direitos indígenas. Sua experiência de 25 anos “vivendo a vida na vida do Cimi” torna-se um testemunho vibrante de Inculturação, onde respeitar modos de vida se transformam em práticas essenciais na construção de um caminho compartilhado.

A mensagem de Alcilene ressoa como um chamado à ação coletiva em prol da preservação da pluralidade e da construção de um mundo onde o Bem Viver seja uma realidade para todos os seres vivos. A entrevista que se segue é um convite à reflexão, uma oportunidade de ouvir as palavras que são inspiradas no aprendizado junto aos saberes ancestrais, onde a harmonia dos povos indígenas se torna o alicerce para um futuro mais justo e intercultural.

Porantim: Dada a longa história do Cimi, desde sua criação em 1972, a serviço dos projetos de vida dos povos indígenas, como avalia o papel da entidade na defesa dos direitos originários ao longo desses 51 anos?

Alcilene: O Cimi foi fundamental para as lutas vividas pelos povos indígenas no Brasil. Estes, naquele distante ano de 1972, eram considerados em processo de extinção por morte ou integração à “sociedade majoritária”. O Cimi nasceu naquele contexto e seguiu o rumo oposto dessa visão, percebendo que os povos indígenas não só tinham um futuro, como também eram um exemplo de vida para a humanidade, principalmente no cuidado com a natureza e a relação com a terra, como espaço sagrado.

O Cimi, em parceria com lideranças indígenas, apoiou, promoveu, assessorou e articulou os primeiros encontros e assembleias dos povos indígenas, e também o intercâmbio entre comunidades indígenas, onde estas trocavam experiências e organizavam suas lutas e percebiam que não estavam mais sozinhos, os parentes apareceram. Essas articulações foram vitais para a garantia de dezenas de territórios, de acesso as políticas públicas e reconhecimento de povos, antes silenciados. Vale lembrar que com o apoio do Cimi, os povos foram se fortalecendo e buscando autonomia, rumo ao seu protagonismo, mesmo diante de todas as violências e injustiças que ainda enfrentam.

O Cimi desde o início tem como fundamento essencial na sua atuação a inculturação, viver a vida para o outro, respeitar seu modo de vida, ouvir mais do que falar, compartilhar, fazer junto. Assim, podemos respeitar e incentivar o protagonismo dos povos indígenas, são eles que decidem qual a forma e a intensidade da luta e quais caminhos vão tomar para atingir seus objetivos.

A formação de lideranças, jovens, mulheres é outro trunfo da atuação do Cimi nas áreas indígenas, fortalecendo suas mobilizações e organizações. O apoio político e jurídico, somado a denúncia constante das violações cometidas contra as pessoas e territórios indígenas, mais a busca de aliados para a causa e a divulgação dos modos de vidas das comunidades tradicionais, garantiram a demarcação de muitos territórios tradicionais, a sobrevivência, a resistência, a resiliência de comunidades ameaçadas de extinção, o reconhecimento oficial de povos que estavam escondidos e o acesso a políticas públicas.

O apoio na inclusão dos povos indígenas na Constituição Federal de 1988 também foi fundamental. Nossa entidade é pioneira na questão da educação escolar indígena. Compreendendo que os povos tinham e tem suas próprias pedagogias, assessorou e contribuiu com o movimento de professores indígenas e com a elaboração de políticas de educação escolar indígena específica e diferenciada, no processo de constituição da política de educação escolar indígenas no Brasil. Assim como contribui com debates para o ensino acadêmico, sempre defendendo o direito e o protagonismo dos povos indígenas no planejamento, gestão e execução de suas práticas político-pedagógicas. E assim como apoiou as demais políticas e defesa de seus territórios, nossa principal bandeira de luta. Sempre respirando a pluralidade, as práticas e os processos próprios dos povos em seus projetos de vida e de futuro.

Porantim: Como esses diálogos têm contribuído para as lutas dos povos indígenas e para a construção de um mundo mais igualitário?

Alcilene: A relação baseada na inculturação, vivenciada na prática juntos aos diversos povos indígenas, possibilitou a troca de saberes interculturais e religiosos, o que nos rendeu a confiança e a amizade dessas comunidades, que, durante séculos, tiveram seus modos de vidas difamados e violentados por entes civis, militares e religiosos.

Nessa troca de saberes com as comunidades, conhecemos seus modos de vidas e necessidades, aprendemos, ensinamos, e, acima de tudo, conseguimos a confiança dos povos com os quais trabalhamos e convivemos.  Em contrapartida, mostramos um outro lado da igreja, a Igreja que os apoia, que os respeita e incentiva, uma Igreja revolucionária que tem neles a materialização de um novo mundo mais digno. A Igreja de um Jesus humilde, que vivia a vida na vida do outro, que andava com sem tetos, miseráveis, prostitutas, pescadores, que compartilhava sabedorias. Essa troca de saberes diversos ajudou a intensificar as lutas destas comunidades, ganhamos também o carisma de alguns setores da sociedade e passamos ser os inimigos de outros.

Na caminhada do Cimi, nestes 51 anos, enfrentamos muitos desafios junto aso povos, mas também encontramos muitas alianças corajosas, pastores comprometidos e fiéis a suas missões, a exemplo dos bispos que fizeram e fazem até hoje conosco a caminhada do Cimi.

A divulgação das lutas e modos de vidas das comunidades tradicionais, e a denúncia das violências cometidas contra os povos indígenas, foi importante para angariar aliados e expandir as informações sobre a missão. Cada vez mais pessoas enxergam, nos conhecimentos que carregam estes povos, o caminho para uma vida mais digna para todos os seres vivos. Os povos indígenas muito tem contribuído para a proteção da biodiversidade, para proteger a vida da floresta, na floresta, na caatinga, no cerrado e nos demais biomas.

Porantim: Considerando o contexto atual, quais são os principais desafios que o Cimi enfrenta hoje na busca pela garantia dos direitos indígenas, especialmente em relação às estruturas de dominação, violência e injustiça?

Alcilene: Desde o golpe de 2016, o avanço sobre os territórios e direitos indígenas se intensificou. Políticos de orientação fascista ganharam terreno, fingindo combater a corrupção e o comunismo. Resultando, em 2018, na eleição de um governo ligado ao crime organizado e com orientação ideológica explicitamente fascista, que passou quatro anos incentivando e colaborando com a invasão de territórios indígenas, de áreas da União e de reservas ecológicas; e o assassinato de pessoas indígenas e de seus apoiadores.

Luis Ventura, irmã Lúcia Gianesini, Antônio Eduardo Cerqueira de Oliveira e Alcilene Bezerra durante mís-tica na XXV Assembleia Geral do Cimi. Foto: Adi Spezia/Cimi

Mesmo com a eleição de um governo mais simpático à causa indígena, a composição das duas casas do Congresso Nacional é majoritariamente composta por fascistas, divididos entre neopentecostais, ruralistas e militares, todos dispostos a tudo para anular os direitos e as demarcações. É um retorno ao período antes da CF 88, quando a intenção do Estado era integrar os povos indígenas à sociedade nacional.

Infelizmente, tudo indica que haverá aumento das ameaças e violências contra povos e territórios.

Porantim: O Cimi acredita que os povos indígenas são fontes de inspiração para a revisão dos sentidos, da história e das práticas sociais. Como essa inspiração se traduz nas ações concretas da entidade e na construção de uma sociedade mais justa?

Alcilene: O Cimi, juntamente aos povos indígenas, é o porta voz do Bem Viver e, recentemente, temos aprofundado sobre os Direitos da Natureza, logo, nossas ações têm esses ideais como horizonte. Almejamos um país pluricultural e pluriétnico, onde todos os conhecimentos são valorizados e respeitados, e onde a diversidade é fundamental para uma vida mais digna a todos os seres vivos. Essas ideais permeiam as nossas ações dentro e fora das áreas indígenas, ajudando na construção de um mundo melhor para todos.

Porantim: Poderia compartilhar conosco um pouco sobre sua história no Cimi enquanto missionaria? Como sua jornada na missão junto aos povos indígenas moldou sua compreensão com as causas que a entidade representa, quais experiências mais a marcaram a defesa dos direitos originários e de que maneira essa vivência influenciará sua abordagem enquanto vice-presidente do Cimi?

Alcilene: O Cimi foi a minha maior e melhor escola, tudo que sei sobre as questões sociais e a causa indígena eu devo ao aprendizado adquirido no Cimi.  Entrei no Cimi ainda muito jovem e há 25 anos eu vivo a minha vida na vida do Cimi. A convivência com os povos indígenas me ensinou muito o exercício da escuta e a ter um olhar mais generoso quanto às diferenças e as possibilidades de resiliência que temos enquanto ser humano.

Inicialmente, trabalhei com a temática da educação escolar indígena, com povos e professores/as indígenas, iniciando a experiência com a escola em seus territórios. As práticas de educação vivenciadas por eles iam além da escola, eram evidenciadas no dia a dia, na relação com a família, com a comunidade e com a natureza.

A partir da relação com povos indígenas, comecei a perceber a importância da luta pela causa indígena em favor de seus direitos, da garantia da demarcação de suas terras e seus projetos de futuros, com povos com costumes, valores e saberes próprios, que muito contribuem para preservação ambiental. E foi no Cimi que passei a perceber a dimensão dessa causa.

XXV Assembleia Geral do Cimi, em setembro de 2023, quando missionários e apoiadores da causa indígena reuniram-se para reafirmar sua caminhada junto aos povos indígenas. Foto: Maiara Dourado/Cimi

Iniciei minha trajetória no Município de Feijó, no Acre, junto aos povos Ashaninka (Kampa), Madija (Kulina), Huni Kui (Kaxinawá) e os Shanenawa. Em Feijó, comecei em junho de 1998 e fiquei até janeiro de 2008, quando mudei para equipe de Cruzeiro do Sul, para atuar com os povos Nawa, Nukini, Apolima Arara, Ashaninka do Amônia, Katukina, Kuntanawa, Puyanawa, Arara e Arara do Bagé. Com o povo Murubo do vale do Javari, em cruzeiro do sul, permaneci de janeiro de 2008 a julho de 2013, quando migrei para trabalhar no Regional Nordeste, atuando em sete estados, na área de abrangência do regional desde julho de 2013, até o momento.  Aqui, no Regional Nordeste, além das atividades junto aos povos, fui coordenadora regional durante oito anos e, posteriormente, continuei contribuindo no regional, compondo a equipe de coordenação colegiada, além do trabalho de equipe junto aos povos no estado de Pernambuco. Tive a oportunidade de conhecer diversos povos e comunidades, que vivem em diversas realidades.

Durante esses anos, muitas experiências me marcaram, como:

– A luta pela educação escolar indígena, a forma como esses povos utilizam-se da escola como uma ferramenta de luta;

– A mobilização e articulação para a macha dos 500 anos, que culminou com uma grande mobilização nacional de povos indígenas, que protestaram contra as comemorações oficiais dos 500 anos do chamado “descobrimento” do Brasil, nos anos 2000;

– As lutas constantes enfrentadas nos territórios contra os grandes empreendimentos e as invasões aos seus territórios, a exemplo da reintegração de posse povo Kariri Xocó, na região da Bahia, que acompanhei de perto; e

– A realização do primeiro acampamento terra livre em Brasília, em 2003. Entre outros acontecimentos, que marcam a resistência dos povos indígenas, mesmo diante   de um processo contínuo de negação da importância destes para o País.

Toda essa experiencia, vivência e aprendizado me possibilitou a missão de assumir a vice-presidência do Cimi, como mulher, leiga e consciente de minha responsabilidade enquanto militante e defensora da causa indígena.

Agora, novos aprendizados virão, pois abre-se um leque maior para que eu possa ampliar a minha experiência numa perspectiva Nacional.

Porantim: Qual mensagem gostaria de deixar para a sociedade em geral, sobre a importância da defesa dos direitos indígenas e na construção de um mundo mais pluricultural?

Alcilene: A partir da minha vivência como indigenista, entendo que o Brasil tem uma incrível diversidade de culturas, línguas e tradições, das quais os povos indígenas têm sido guardiões há séculos. É fundamental reconhecer essa rica diversidade e valorizar a importância dessas comunidades ancestrais, não apenas como parte da nossa história, mas também como pilares essenciais para a preservação do equilíbrio ecológico, como defensores e cuidadores da terra como espaço sagrado, de reprodução física, cultural e ancestral, para a garantia do Bem Viver e na defesa da natureza como sujeita de direitos.

Também entendo que o compromisso com a justiça social, igualdade de oportunidades e respeito à diversidade e direitos humanos perpassa pela defesa dos direitos indígenas e vai além de garantir a integridade física e territorial desses povos, sendo necessário o respeito às suas pluralidades.

A contribuição dos povos indígenas para a garantia dos direitos da natureza, medicina tradicional e preservação de ecossistemas é inestimável. Sem sua visão holística e conexão profunda com a natureza, corremos o risco de perder valiosos conhecimentos e práticas que podem beneficiar toda a humanidade.

Penso que devemos entender que, como membros da sociedade, temos a responsabilidade de nos unir em prol da defesa dos direitos indígenas, incluindo o reconhecimento da importância da defesa de seus territórios, garantindo sua voz e participação nas decisões que afetam suas vidas, promovendo a educação intercultural e valorizando seus direitos à autodeterminação e livre expressão de suas culturas. Devemos também combater o preconceito e estereótipos historicamente arraigados, promovendo uma maior compreensão e empatia entre todas as culturas e povos. Além de reconhecer os povos indígenas como povos originários, sujeitos de direitos e saberes fundamentais a humanidade.

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