08/08/2022

Contra o marco temporal: povos indígenas desembarcaram na capital federal para reivindicar seus direitos

Mais de 200 indígenas, de 17 povos, estiveram em Brasília para protestar contra a retirada de pauta do RE, entre outros retrocessos

Manifestação indígena contra o marco temporal, em Brasília no dia 23 de junho, 2022. Foto: Hellen Loures/Cimi

Por Assessoria de Comunicação do Cimi – MATÉRIA PUBLICADA ORIGINALMENTE NA EDIÇÃO 446 DO JORNAL PORANTIM

Diante do aumento da violência em seus territórios, lideranças indígenas em luta permanente contra o marco temporal e a política anti-indígena do atual governo, estiveram presentes na capital federal, de 20 a 23 de junho, para algumas incidências políticas, entre elas um comunicado à imprensa e à sociedade na Praça dos Três Poderes, em frente ao Supremo Tribunal Federal (STF), no dia 23 de junho. Nesta data, seria retomado o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, que definirá o futuro da demarcação das terras indígenas em todo o país, porém a votação foi adiada pela terceira vez, sem previsão de retorno. Na ocasião, além do Ato político e inúmeros rituais, foi realizado o lançamento do Documentário “Luta pela Terra”.

Indígenas de quatro regiões do país se deslocaram até a capital federal para protestar contra a iniciativa da Corte – e outros retrocessos. Mais de 200 indígenas, de 17 povos, participaram de incidências em Brasília, entre eles indígenas dos povos Terena, Kaingang, Tuxá, Xokleng, Tupinambá, Karapó, Guarani Nhandeva, Guarani Kaiowá, Takaywrá, Cinta Larga, Karipuna, Tukano, Macuxi, Wapichana, Taurepang, Mura e Marubo. As lideranças, realizaram uma série de reuniões e audiências: com parlamentares no Congresso Nacional; na Comissão Nacional de Direitos Humanos (CNDH); no Conselho Nacional de Justiça (CNJ); no Supremo Tribunal Federal; na Fundação Nacional do Índio (Funai); além de participarem do “Seminário Sobre o Regime Constitucional das Terras Indígenas no Brasil”, na Universidade de Brasília (UnB), que reuniu indígenas, parceiros, acadêmicos e juristas.

Diante da situação dos povos indígenas no Brasil, os Bispos Católicos da Amazônia Legal reunidos em Santarém, entre 6 e 9 de junho, solicitam ao Supremo Tribunal Federal (STF) que retomem o julgamento do Recursos Extraordinário (RE) 1.017.365, sobre a demarcação de terras indígenas. O documento destinado ao Ministro Luiz Fux, presidente da Corte, foi protocolado no dia 24 de junho, com a presença de lideranças indígenas e representantes do Conselho Indigenista Missionário, organismo vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

Muitos dos territórios são assediados por “milícias armadas e narco-garimpeiros”, que colocam os povos originários em risco

Lideranças indígenas protocolaram documento no STF pedindo ao presidente da Corte, Luiz Fux, que retome o julgamento do marco temporal. Foto: Marina Oliveira/Cimi

“É de conhecimento de todos nós que o Estado brasileiro tem uma dívida histórica com os povos indígenas. Essa dívida faz referência ao direito que têm os povos sobre as terras de ocupação originárias, como previsto na Constituição Cidadã de 1988”, lista no documento.

“O adiamento [por parte do Supremo Tribunal Federal (STF)] do julgamento a respeito da tese do marco temporal abre brecha para o avanço de políticas que fragilizam territórios indígenas e incentivam conflitos e perseguição de lideranças e apoiadores”, disse o secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Antônio Eduardo Cerqueira de Oliveira, durante audiência pública da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, no dia 23 de junho, que debateu os impactos da tese do marco temporal na vida dos povos indígenas.

Na ocasião, Cerqueira ressaltou que, hoje, muitos dos territórios são assediados por “milícias armadas e narco-garimpeiros”, que colocam os povos originários em risco. Para ele o adiamento da decisão incentiva o avanço das proposições legislativas que retiram direitos indígenas, como o Projeto de Lei 490/07, que busca consolidar em lei a tese do marco temporal, e o PL 191/20, que trata de mineração em terras indígenas.

“O adiamento desse julgamento nos coloca uma responsabilidade muito grande no sentido da proteção da vida dos povos indígenas daqui por diante. Não sabemos o que vai acontecer até o final do ano. O governo trabalha já com a existência desse marco temporal e tem atuado efetivamente para fragilizar a proteção dos territórios e o usufruto exclusivo dos territórios indígenas no Brasil, incentivando o conflito e a perseguição de lideranças”, frisou.

O marco temporal já é inconstitucional porque ele não respeita o direito originário e porque ele não respeita o direito constitucional nosso enquanto povos indígenas

Coletiva de imprensa, em Brasília, no dia 23 de junho, 2022. Foto: Hellen Loures/Cimi

Ato político

As incidências do dia 23 de junho contra o marco temporal seguiram por todo o país: em Brasília, nos territórios e nas redes sociais. Na capital do país foi realizada ainda uma Coletiva de Imprensa composta por representantes da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e organizações de base regionais. Após o pronunciamento, foi realizado o lançamento do Documentário “Luta pela Terra”, produzido por jovens comunicadores indígenas que reuniram imagens e sentimentos dos momentos mais importantes da luta dos povos originários contra o marco temporal e o julgamento do Recurso Extraordinário 1.017.365.

Durante a coletiva de imprensa, a deputada Joênia Wapichana frisou que o marco temporal busca apagar o passado de violência contra os povos indígenas, “não reconhecendo que o Brasil e as terras indígenas sofreram remoções e esbulhos”. Para ela é importante ressaltar que a legislação está do lado dos povos indígenas. “Não podemos apagar esse passado e fechar os olhos diante do quadro de violência que essa proposição absurda e inconstitucional faz para paralisar demarcação de terras indígenas, aguardamos que o Supremo Tribunal Federal paute mais rápido possível e que coloque um ponto final nesse absurdo que é o marco temporal”, pontuou.

O coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Kretã Kaingang, lembrou da insegurança jurídica que o marco temporal tem provocado e dos inúmeros danos causados pela falta de demarcação das terras indígenas, como as invasões violentas aos territórios e as mortes de indígenas e seus defensores. “Nós dependemos desse julgamento para que tenhamos paz. O marco temporal já é inconstitucional porque ele não respeita o direito originário e porque ele não respeita o direito constitucional nosso enquanto povos indígenas”, destacou.

Com a votação adiada pela terceira vez, Enock Taurepang, vice coordenador do Conselho Indígena de Roraima (CIR), ressaltou que as violências aumentam a cada dia e que, cada vez mais, os povos indígenas tem sofrido com as constantes ameaças em seus territórios. “O tempo favorável para votar o marco temporal é o tempo que se morre Bruno, é o tempo que se morre Dom, é o tempo que as lideranças indígenas são taxadas como bandidos, é o tempo que o movimento indígena é sacrificado pela sociedade que não nos entende, uma sociedade que não nos aceita. Gostaríamos muito que nesse ano de 2022 todas as coisas ruins ficassem nele, todas, incluindo esse governo genocida”, destacou.

Nádia Akauã Tupinambá, liderança do Povo Tupinambá, também falou à coletiva sobre a violência causada pela tese do marco temporal. Para ela, a demora na votação coloca em risco a vida dos povos indígenas e também a vida da floresta, das matas e das águas. “A Constituição nos garante o território em seu art. 231, mas chega marco temporal e rasga a nossa carta magna. Isso é um desrespeito não só os povos indígenas, mas com toda nação brasileira. Chega de genocídio. Nós somos os guardiões da floresta, nós protegemos esse planeta, não podemos esquecer que o que a gente protege é pra vida da população inteira”, lembrou.

Simão Guarani Kaiowá, da Aty Guasu – A grade Assembleia Guarani Kaiowá -, durante sua fala fez um apelo às autoridades, para que os povos indígenas possam alcançar o direito mais básico enquanto seres humanos: “o direito de continuar resistindo para nossa existência física e cultural, que dependem da demarcação dos nosso território”.
Jonas Xokleng, liderança do Povo Xokleng, disse acreditar nos guardiões da lei, “que farão cumprir a Constituição Federal, onde está previsto o nosso direito de índio do Brasil”.

 

O que é o marco temporal

Em síntese, a tese do marco temporal pretende restringir as demarcações de terras indígenas apenas àquelas áreas que estivessem sob a posse comprovada dos povos originários em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. A Teoria do Indigenato, por outro lado, reconhece os direitos indígenas como originários, ou seja, anteriores ao próprio Estado.

O adiamento desse julgamento faz parte da dinâmica do Poder Judiciário; entretanto, por três vezes esse julgamento já foi adiado, frustrando as expectativas dos indígenas, que consideram urgente que o marco temporal seja negado pelo STF o quanto antes, pois a proposta é um incentivo para traficantes, garimpeiros, madeireiros e invasores dos territórios.

 

Ações contrárias

É conhecido por todos o posicionamento reiterado do Jair Bolsonaro e seus aliados, que têm se colocado contrários à tese do direito originário e a favor do marco temporal – que não existe na Constituição Federal, por deliberação do Parlamento Constituinte de 1988.

Contra o marco temporal, Bolsonaro já sinalizou em seus discursos que, caso a Suprema Corte decida a favor dos indígenas, ele não irá cumprir a decisão. Por diversas vezes os discursos do presidente da república além de traduzirem seu desrespeito à existência dos povos indígenas e suas diferentes cosmovisões, bem como da diversidade étnica e cultural do Brasil, também ameaçam a democracia brasileira, já que descumprir decisões judiciais configura a prática de um crime de responsabilidade pelo presidente da República.

O fato é que enquanto essa história não ganha um final e enquanto Bolsonaro continua validando as invasões em terras indígenas, seja com seus discursos ou atos contrários a pauta, a violência contra os povos originários e seus aliados só aumentará: mortes, conflitos provocados pelo garimpo, aliciamento, exploração sexual, perda de independência alimentar e da sustentabilidade econômica. A vida cotidiana dos povos indígenas e seus defensores é marcada por ameaças e constante medo.

Caso o Supremo Tribunal Federal (STF) reafirme o caráter originário dos direitos indígenas e, portanto, rechace definitivamente o marco temporal, centenas de conflitos em todo o país terão o caminho aberto para sua solução. A Suprema Corte poderá garantir um respiro às comunidades que se encontram, atualmente, pressionadas por poderosos setores econômicos.

É sobre a reparação histórica devida a esses povos após mais de 500 anos de violências. Mas é também sobre a esperança de um amanhã onde essas violências não se perpetuem. É sobre a garantia de vida para os povos, para o meio ambiente, e para todo o planeta. Não é só sobre o passado, é também sobre o futuro.

 

Povos indígenas de todo o país aguardam o julga mento do marco temporal e as mudanças que a decisão do Supremo Tribunal Federal trará para os processos demarcatórios. O território é indispensável para que os povos possam manter seus modos de vida, garantindo o direito à comida, água limpa e vida plena para todo o mundo. Além disso, a demarcação contribui com a proteção do meio ambiente, ajudando a controlar o desmatamento e a exploração predatória e, assim, combatendo a crise climática.

No entanto, duas de cada três terras indígenas estão com a demarcação travada. Adiar o julgamento do marco temporal significa manter tais territórios, e as famílias que ali vivem, expostos a ameaças e violências por parte de invasores, como garimpeiros, madeireiros, grileiros e traficantes.

A chamada “tese do indigenato” é uma tradição legislativa que existe desde o período colonial e que reconhece o direito dos povos indígenas sobre suas terras como um direito originário – ou seja, anterior ao próprio Estado brasileiro. A própria Constituição Federal de 1988 segue essa tradição, e garante aos indígenas “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”.

O marco temporal visa substituir a tese do indigenato, limitando o direito ao território apenas aos povos que estivessem nele ou lutando por ele na data de publicação da Constituição de 88.

 

Demarcar é proteger! –Para os povos indígenas, a luta pela demarcação dos territórios não é sobre a devolução completa da terra ou sobre posse. Como ressaltado pelo livro “Terras Indígenas não Demarcadas: Amazonas e Roraima”, as comunidades querem a garantia de que também podem viver nesse país de maneira digna e plena, com terras que lhes permitam manter seus modos de vida tradicionais.

“Quando falam por que e para que querem a demarcação de suas terras, os indígenas muito frequentemente respondem que as querem garantir para seus filhos e netos, para que eles também possam pescar e caçar e aproveitar das matas, para que possam crescer e desfrutar da vida e da cultura da mesma forma que seus pais e avós”.

 

O marco temporal nega aos povos indígenas o direito ao seu território, caso não estivessem nele ou lutando por ele na data de publicação da Constituição Federal de 1988. Quem se beneficia com a ausência de demarcações são aqueles que lucram com a falta de proteção aos territórios e com a exploração preda tória da terra e dos biomas brasileiros.

Garimpeiros, mineradoras, latifundiários, grileiros, traficantes, todos veem os povos indígenas apenas como um obstáculo a ser eliminado a todo custo. Por isso, a luta contra o marco temporal não é apenas pelo passado, mas também pelo futuro dos povos indígenas e de todo o planeta.

 

Desmentindo o marco temporal: é falso que todo o Brasil teria de ser demarcado para que os povos indígenas possam viver em seus territórios.

Tem se popularizado a falsa noção de que, por um dia ter sido exclusivamente dos povos indígenas, todo o território nacional deveria ser então “devolvido” aos povos, e que seria necessário “até demarcar Copacabana”. Não é dessa forma, entretanto, que funcionam as demarcações de territórios no Brasil.

Os territórios demarcados são aqueles que possuem um significado para os povos indígenas daquela região, e passam por todo um processo de análise antropológica junto ao povo e à Funai, com uma equipe composta por profissionais das áreas ambiental, histórica, jurídica, agrária, cartográfica e outras que se façam necessárias. É só a partir dessa análise que tem início o processo administrativo para delimitar, registrar e homologar uma Terra Indígena.

O marco temporal desrespeita a Constituição Federal de 1988 ao negar aos povos indígenas o direito aos seus territórios. A tese acolhida pela nossa Constituição é a do indigenato, que afirma que são reconhecidos aos indígenas os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

Para o movimento indígena, é fundamental que o marco temporal seja negado pelo STF o quanto antes, pois a proposta é um incentivo para traficantes, garimpeiros, madeireiros e invasores dos territórios

 

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