27/09/2023

Nota conjunta sobre as teses jurídicas apresentadas no julgamento do Marco Temporal

Comissão Arns, Apib, SBPC, Associação Brasileira de Antropologia e Cimi manifestam-se sobre temas ainda em debate no julgamento de repercussão geral do STF

No dia 30 de setembro, cerca de 600 indígenas de todo o país marcharam pela Esplanada dos Ministérios até uma tenda instalada ao lado do STF, onde acompanharam a retomada do julgamento sobre o marco temporal. Foto: Tiago Miotto/Cimi

No dia 30 de setembro, cerca de 600 indígenas de todo o país marcharam pela Esplanada dos Ministérios até uma tenda instalada ao lado do STF, onde acompanharam a retomada do julgamento sobre o marco temporal. Foto: Tiago Miotto/Cimi

No último dia 21 de setembro, o Supremo Tribunal Federal deu importante contribuição à proteção do direito dos povos indígenas, bem como à defesa do meio ambiente no contexto de crise climática. No julgamento do Recurso Extraordinário nº 1.017.365, o STF afastou, pela expressiva maioria de 9 votos contra 2, a tese do marco temporal, que é francamente incompatível com a garantia constitucional do direito à terra dos povos originários brasileiros. Nossa Corte Constitucional mostrou estar atenta ao seu dever maior de proteger os direitos fundamentais de grupos sociais minoritários e vulnerabilizados. Está agendada para o próximo dia 27 de setembro a continuidade do julgamento, com a definição das teses jurídicas de repercussão geral, que devem reger a matéria no futuro.

Nesse cenário, e considerando os debates que vêm sendo travados pelos ministros do STF e pela sociedade, as entidades resolvem externar sua preocupação em relação a três aspectos que estão em discussão nessas teses jurídicas.

Em primeiro lugar, discute-se o cabimento de indenização, pelo valor da terra nua, ao particular de boa-fé que tenha recebido títulos do Poder Público incidentes sobre áreas que constituam terras indígenas, mas nas quais não estejam caracterizados o marco temporal ou o renitente esbulho.

Nessa hipótese, é fundamental que a eventual indenização esteja completamente desassociada do procedimento demarcatório, e que o pagamento da indenização não seja prévio à demarcação, nem condicione a plena fruição dos direitos territoriais pelos povos indígenas envolvidos. Tal indenização, cujo cabimento deve ser aferido caso a caso, em processo administrativo ou judicial próprio, tem fundamento na responsabilidade civil do Estado pela prática de ato ilícito – a concessão indevida de títulos de propriedade a não indígenas –, e não na própria demarcação. O responsável pelo seu pagamento deve ser o ente público que tenha praticado o ato ilícito em questão. Afinal, o poder constituinte originário foi expresso ao vedar a indenização do valor da terra nua nas demarcações, mesmo para particulares de boa-fé (art. 231, § 6º, da Constituição de 88).

Do contrário, as demarcações pendentes ficarão inviabilizadas na prática, pois se tornarão completamente dependentes de vultosos recursos financeiros estatais, que são escassos. Haverá retardamentos ainda maiores nas demarcações, as quais já estão muitíssimo atrasadas – pela Constituição, o Poder Público deveria tê-las finalizado até o ano de 1993 (art. 67 do ADCT). Nesse ínterim, os povos originários permanecerão privados de segurança jurídica no gozo do seu direito fundamental mais importante – o direito à terra –, e o meio-ambiente ficará mais exposto à devastação, pois, como todos os estudos científicos comprovam, os indígenas são os melhores guardiões das florestas, neste momento em que a sua preservação é essencial para a continuidade da vida humana no planeta.

Em segundo lugar, é preciso afastar peremptoriamente a possibilidade de permuta de terras indígenas com outras áreas, hipótese que não foi contemplada pela Constituição Federal. As terras indígenas são absolutamente infungíveis.

Não é suficiente, para corrigir tal equívoco, registrar o caráter excepcional da permuta, ou condicioná-la à autorização da própria comunidade indígena e da FUNAI. Fórmulas jurídicas abertas – como a excepcionalidade – são aplicadas por autoridades administrativas, que em determinados cenários podem ser contrárias aos direitos indígenas, ou ceder a interesses de outra natureza. A autorização da própria comunidade tampouco afasta o vício constitucional da solução, já que o direito ao território indígena é indisponível (art. 231, § 4º, Constituição de 88). Ademais, em contexto de crise e diante de pressões externas, comunidades podem se ver forçadas a abrir mão de seus territórios tradicionais, em troca de outros que não tenham para elas o mesmo valor espiritual. A Constituição brasileira não consagra essa possibilidade, que o STF não deve chancelar.

As teses jurídicas não devem tratar do tema altamente polêmico e complexo da mineração em territórios indígenas. Tal assunto jamais foi discutido no âmbito do Recurso Extraordinário nº 1.017.365, e não cabe introduzi-lo no processo na undécima hora, sem que os povos indígenas e a sociedade tenham tido a oportunidade de se manifestar

Em terceiro lugar, as teses jurídicas não devem tratar do tema altamente polêmico e complexo da mineração em territórios indígenas. Tal assunto jamais foi discutido no âmbito do Recurso Extraordinário nº 1.017.365, e não cabe introduzi-lo no processo na undécima hora, sem que os povos indígenas e a sociedade tenham tido a oportunidade de se manifestar sobre a matéria, sob pena de grave afronta ao devido processo legal.

A mineração em terras indígenas representa gravíssimo risco aos direitos desses povos, bem como à proteção do meio ambiente. Por isso, não cabe obrigar o Congresso Nacional a legislar sobre a matéria em 12 meses, sob o falso pretexto de que dessa maneira se promoveriam direitos dos povos indígenas.

Em nota pública divulgada neste dia 21 de setembro, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – Apib, na qualidade de legítima representante dos povos indígenas de todo o país, externou a sua contrariedade quanto ao debate do assunto neste julgamento, bem como a solução proposta no voto do Ministro Dias Toffoli. Nas palavras da Apib: “A mineração em Terras Indígenas, atividade por meio da qual se pretende autorizar toda sorte de exploração econômica de territórios tradicionais, possui alto grau de prejudicialidade à garantia e manutenção dos Direitos dos Povos Originários, além de ameaçar diretamente sua sobrevivência física, religiosa e cultural. A história recente nos mostra que a existência de empreendimentos para extração de recursos hídricos, orgânicos (hidrocarbonetos) e minerais, na prática, gera a destruição de territórios indígenas, a contaminação das populações por agentes biológicos e químicos, como o mercúrio, e o esgarçamento do tecido social destas comunidades, além de enfraquecer ou inviabilizar sua Soberania Alimentar e submeter mulheres e crianças à violência física e sexual”. É preciso levar a sério o que dizem os povos indígenas sobre os seus próprios direitos.

As entidades permanecem confiantes de que, na definição das teses de repercussão geral no Recurso Extraordinário nº 1.017.365, o STF manter-se-á firme no exercício do seu papel maior de guardião da Constituição e protetor dos direitos fundamentais de minorias, como os povos indígenas brasileiros.

27 de setembro de 2023

Comissão de Defesa dos Direitos Humanos D. Paulo Evaristo Arns – Comissão Arns

Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB

Conselho Indigenista Missionário – Cimi

Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC

Associação Brasileira de Antropologia – ABA

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