Comitê de Direitos Humanos espera do Brasil o fim do marco temporal e agilidade nos processos de demarcação
Neste artigo, Paulo Lugon, assessor do Cimi, lista apontamentos sobre o processo de Revisão Periódica do Estado brasileiro, realizada pelo Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas
O Comitê de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), emitiu suas conclusões finais após a 3ª Revisão Periódica do Estado brasileiro, demonstrando sua preocupação com a tese do marco temporal e com o acúmulo de territórios indígenas a serem demarcados pelo atual governo. Ao mesmo tempo, elogiou a criação do Ministério dos Povos Indígenas.
O Comitê dedicou uma seção específica para destacar a problemática da demarcação e proteção de terras ocupadas por povos tradicionais no Brasil. Confira, em tradução livre, as recomendações:
Direitos dos povos indígenas e afrodescendentes
65. O Comitê continua preocupado com a falta de aplicação efetiva do processo de demarcação de terras, levando ao crescimento de conflitos fundiários, invasão ilegal e exploração de recursos, ataques e assassinatos de povos indígenas. O Comitê também está preocupado com a limitação do marco temporal para reivindicar a demarcação de terras indígenas, e lamenta que a titulação de terras para quilombolas tem progredido muito lentamente.
66. O Estado-parte deve redobrar seus esforços para garantir a promoção e a proteção o reconhecimento, tanto na lei como na prática, dos direitos dos povos indígenas, nomeadamente no que diz respeito à terra, ao território e aos recursos naturais e de outras minorias. Deve também:
a) Agilizar o processo de demarcação e titulação de indígenas e Terras quilombolas, inclusive garantindo recursos adequados para implantação;
b) Defender o direito dos povos indígenas às terras e territórios que eles tradicionalmente possuem ou ocupam, inclusive revendo sua legislação atual e rejeitar e acabar com a aplicação e institucionalização da tese do marco temporal;
c) Intensificar os seus esforços para prevenir conflitos relacionados com a utilização das terras e territórios, nomeadamente fornecer garantias em relação às terras tradicionalmente ocupadas por indígenas povos e comunidades quilombolas; e combatendo a invasão ilegal e ilegal atividades de madeireiras, mineradoras, pesqueiras e agropecuárias de grande porte;
d) Oferecer proteção efetiva, bem como soluções para todos os direitos humanos violações resultantes da falta de proteção legal efetiva das terras tradicionalmente ocupadas por povos indígenas e comunidades quilombolas.
67. Embora o Comitê se congratule com o aumento com o aumento do orçamento da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), lamenta que durante o período em análise tenha havido casos em que a Funai foi prejudicada. O Comitê está preocupado com os relatos de que o princípio do consentimento livre, prévio e informado dos povos indígenas e quilombolas comunidades em questões relativas a seus direitos são rotineiramente violadas (art. 27).
68. O Estado Parte deve:
a) Garantir a aplicação sistemática dos processos de consulta com povos indígenas e comunidades quilombolas necessários para obter o consentimento livre, prévio e informado sobre questões relativas aos seus direitos;
(b) Fortalecer as capacidades da FUNAI, inclusive por meio de recursos, e assegurar sua autonomia para que, por meio de suas atividades, os direitos de os povos indígenas e as comunidades quilombolas são totalmente protegidos e promovidos.
“O Estado brasileiro deve defender o direito dos povos indígenas às terras, rejeitar e acabar com a aplicação e institucionalização da tese do marco temporal”
Outras questões foram alvo de preocupação por parte do Comitê, como o fato de que a indigeneidade é fator central de discriminação no Brasil. O Comitê apontou o uso excessivo da força nos processos de despejo, sem garantias processuais e compensação e reassentamentos adequados, afetando particularmente povos indígenas e quilombolas.
O Brasil também foi instado a investigar as violações de direitos humanos metidas durante a ditadura militar contra povos indígenas, identificando os responsáveis pelas violações e os punindo. Sobre violência de gênero, o Comitê demonstrou sua preocupação com a falta de políticas com sensibilidade cultural, desenhadas para atender mulheres indígenas e de descendência africana.
“O Brasil foi instado a investigar as violações de direitos humanos metidas durante a ditadura militar contra povos indígenas, identificar os responsáveis e os punir”
Sobre a pandemia da Covid-19, o Comitê apontou para a alta taxa de mortalidade entre povos indígenas e outros setores vulneráveis, além da impunidade no respeito à condução da política sanitária. Também foi alvo de preocupação os altos índices de violência e intolerância religiosa contra povos indígenas, citando a destruição de casas de reza.
A revisão do Brasil destacou os altos índices de homicídios, violência, assédio, intimidação e criminalização de indígenas, defensores de direitos humanos e do meio ambiente. Em setembro de 2022, o Brasil entrou para a lista suja das represálias da ONU, pela invasão do domicílio da líder Alessandra Munduruku, após o seu retorno da COP-26 (Conferência das Partes), em Glasgow, onde ela denunciava várias violações em curso à época.
“O Comitê dedicou uma seção específica para destacar a problemática da demarcação e proteção de terras ocupadas por povos tradicionais no Brasil”
Obrigação Internacional do Estado de demarcar territórios e o marco temporal
Durante os dias da revisão, nos dias 26 e 27 de junho, o Comitê reforçou um entendimento de direito internacional de que a demarcação de territórios indígenas e tradicionais constitui uma obrigação dos Estados que ratificaram o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Em consequência, a tese do marco temporal é contrária ao texto do próprio Pacto (Artigos 1 e 27).
O Comitê, neste sentido recomendou ao Estado brasileiro acabar com esta tese, na teoria e na prática. A membra Yvonne Donders (Países Baixos), que é também professora de direito internacional e diversidade cultural da Universidade de Amsterdã, fez vários questionamentos sobre o marco temporal, inquirindo, por exemplo, por que a Advocacia Geral da União (AGU) mantém no processo do Recurso Extraordinário do caso Xokleng, apoio à tese do marco temporal, o qual data do governo Temer.
“O Comitê recomendou ao Estado brasileiro acabar com esta tese do marco temporal, na teoria e na prática”
Questão Indígena entra no procedimento de seguimento
A questão indígena foi tratada como prioritária pelo Comitê, ao ponto de solicitar ao Brasil fornecer informações sobre as respectivas recomendações no procedimento de seguimento (Art. 75 das Regras de Procedimento), até 27 de julho de 2026, ocasião na qual o Comitê designa um relator específico para acompanhar os temas prioritários da revisão. O próximo relatório periódico deve ser entregue pelo Estado até 2029.
Implementação das recomendações
O Comitê de Direitos Humanos é um órgão de expertos independentes que monitora a implementação do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos. A obrigação de apresentar relatórios periódicos e passar por uma revisão pelo Comitê advém da própria ratificação do Pacto pelo Brasil, em 1992. As recomendações emitidas após a revisão são a melhor interpretação e diretriz para a implementação do Pacto, que é obrigatório para os Estados que o ratificaram.
O Ministério de Direitos Humanos e Cidadania publicou a Portaria 412/2023, instituindo a Rede Nacional de Implementação das Decisões dos Sistemas Internacionais de Direitos Humanos, com o objetivo de efetivar os instrumentos internacionais internamente. A implementação das recomendações do Comitê de Direitos Humanos, para a realidade indígena, deve ser culturalmente adaptada, mediante um processo específico de consulta, realçando o protagonismo dos povos indígenas como sujeitos de direito e agentes de mudança, no contexto dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável.
“As recomendações emitidas após a revisão são a melhor interpretação e diretriz para a implementação do Pacto, que é obrigatório para os Estados que o ratificaram”
Incidência do Cimi e organizações parceiras
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) participou de todas as etapas da revisão do Brasil pelo Comitê Direitos Humanos, por meio relatório enviado durante a pré-sessão do Comitê, em 2022, para a elaboração das perguntas endereçadas ao Estado. Em parceria com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e a Amazon Watch, o Cimi enviou um relatório com várias instâncias de preocupação com os direitos dos povos indígenas no Brasil, além de participar das reuniões junto ao Comitê de Direitos Humanos, em Genebra, na Suíça.