03/05/2023

“Ele teve um sonho impedido”

Mãe de Gustavo Pataxó, assassinado aos 14 anos, cobra justiça e demarcação Para o povo Pataxó, demarcação é a saída para pôr fim ao conflito instaurado pelos fazendeiros invasores de seus territórios

Foto: Tiago Miotto/Cimi

Por Maiara Dourado e Tiago Miotto, da Assessoria de Comunicação do Cimi*

“Ele foi o primeiro a pedir socorro”, contava Candara Pataxó, mãe de Gustavo Silva da Conceição, enquanto mostrava a foto do filho brutalmente assassinado no dia 4 de setembro de 2022, na retomada do Vale do Cahy, na Terra Indígena (TI) Comexatibá, região do extremo sul da Bahia. Na imagem, Gustavo segurava um cartaz que “ele escreveu com a mão dele, com a letra dele”, lembra a mãe emocionada. Dias antes de sua morte, o garoto grafou no papel um pedido: “Os Pataxó pedem socorro”.

“Ele não pediu só por ele, ele pediu pelo povo Pataxó”, conta Candara, que segue obstinada na luta pela demarcação do seu território, mesmo com a dor da perda de seu filho. “Eu estou nessa luta porque eu sei o valor que ele tinha enquanto lutava para defender o povo dele, e porque tem mais crianças que têm o sonho de viver num lugar em que possa plantar e colher sem tanta violência”.

Para Candara, o pedido de socorro de Gustavo era um anúncio do que estava por vir. “Era como se ele estivesse prevendo tudo isso que ia acontecer, o que nós estamos vivendo”, conta a liderança, referindo-se à persistente onda de violência que toma conta da região e que ceifou a vida de seu filho de 14 anos.

Foto: Tiago Miotto/Cimi

As marcas de bala na porteira e nas paredes da casa da fazenda retomada pela família de Candara revelam o terror vivido na madrugada em que Gustavo foi assassinado. “Eles [os pistoleiros] chegaram de repente. Eram cinco horas da manhã, então alguns estavam dormindo e outros acordados”, relembra. Quando os tiros começaram, “a gente começou a correr e foi escondendo as crianças, porque não tinha só o Gustavo, tinha mais crianças”. Uma delas foi atingida no braço; Gustavo, por um tiro fatal.

Poucos meses depois, no dia 17 de janeiro de 2023, Samuel Cristiano do Amor Divino, de 25 anos, e o adolescente Nauí Brito de Jesus, de 16 anos, foram perseguidos e executados por policiais que faziam serviço de pistolagem para fazendeiros da região. Os dois jovens tinham saído para comprar alimentos no distrito de Montinho, próximo à retomada onde viviam.

Foto: Tiago Miotto/Cimi

“Eles mataram os parentes covardemente aqui dentro do próprio território”, indigna-se uma liderança Pataxó, que não será identificada nesta matéria por motivos de segurança.

O distrito faz parte do município de Itabela (BA) e fica na margem oposta da BR-101, que delimita o território indígena. Ambos foram mortos na estrada, não por coincidência, onze dias depois de iniciada a retomada das fazendas Condessa e Veneza, propriedades localizadas dentro dos limites da TI Barra Velha do Monte Pascoal.

Não são incomuns relatos de comunidades inteiras que são obrigadas a buscar refúgio dos ataques nas áreas de mata do território, onde famílias Pataxó às vezes passam dias e noites inteiras.

Foi o que aconteceu logo após o povo estabelecer a retomada conhecida como Jaqueira, parte da aldeia Cassiana, na TI Barra Velha do Monte Pascoal, onde vivem hoje cerca de 60 pessoas – entre as quais vinte crianças. Na madrugada do dia 26 de junho, os Pataxó foram surpreendidos por homens que chegaram atirando e tiveram que correr para salvar suas vidas.

Maiara Dourado/Cimi

“Eles chegaram cedinho, em torno das cinco e meia da manhã”, afirma uma liderança, não identificada por razões de segurança. “Nosso povo se valeu foi da mata”.

Um altar ritual erguido pelos Pataxó nesta retomada ainda guarda algumas das marcas desta madrugada de terror: trata-se de um círculo feito com as folhas longas de uma planta chamada piteira, ao centro do qual está um tronco de madeira com um maracá e um cocar. Várias das folhas usadas no altar estão salpicadas por buracos – causados, segundo os indígenas, por tiros de fuzil e espingarda.

A planta de onde foram retiradas as folhas esconde uma das trilhas para a mata e, por isso, acabou sendo alvejada pelos disparos, que também deixaram marcas em árvores, estacas de cerca e casas. Para apagar as sequelas mais evidentes do ataque, os pistoleiros voltaram no dia seguinte, com retroescavadeiras, e derrubaram três das casas ocupadas pelos indígenas.

Mas não se apaga tão facilmente a profundidade da violência cavada por aqueles que invadem e devastam o território Pataxó; tampouco se mascara o rastro de destruição deixado por homens agenciados por fazendeiros e empresários do turismo da região. Suas marcas se evidenciam não só nos sinais de fuzilamento deixados nas casas de fazendas retomadas pelos indígenas, mas também na paisagem do território tomada por pasto, eucalipto, gado e monocultura.

Uma “violência contra a própria natureza”, considera Ingrid Ãgohó, liderança Pataxó que se aflige ao ver “a mãe natureza gritando, pedindo socorro, e só a gente que pode socorrer”.

“O Pataxó, quando ocupa, ele ocupa porque é dele e porque ele vê a violência com a própria natureza, a poluição nos rios, o desmatamento. A gente ocupa também por causa disso, porque a natureza nos chama, pede socorro para podermos recuperar e manter o equilíbrio. Se a gente não tivesse feito a nossa ocupação, estava cheio de eucalipto, os nossos rios estariam ainda mais secos e os peixes estariam morrendo”, explica Ingrid.

Estamos pisando em cima da nossa terra e nós não temos a liberdade de passar

A violência que acomete o povo Pataxó é também a violência investida contra a natureza que os integra – e que aumenta à medida em que a comunidade avança sobre o território invadido pelos fazendeiros que os ameaçam e pressionam continuamente.

Limitados por cercas e ilhados por eucaliptos, os Pataxó têm sido tomados por um sentimento de aprisionamento em seu próprio território. É como “um passarinho na gaiola”, diz Zé Fragoso, cacique da aldeia Tibá. “Ele tem comida, tem água e talvez ele canta, mas ele não tem a liberdade. Nós estamos pisando em cima da nossa terra e nós não temos a liberdade de passar”, explica o cacique.

A situação de violência por eles vivenciada é uma consequência histórica de um longo e conflituoso processo de expulsão e cerceamento dos Pataxó, que se inicia com a invasão colonial e se arrasta até os dias de hoje. “De lá pra cá foram mais de quatrocentos e cinquenta anos de conflito, de guerra direta, botando fogo e correndo para dentro da mata”, explica Mãdy Pataxó, cacique da aldeia rio do Cahy, localizada na TI Comexatibá.

Maiara Dourado/Cimi

Os Pataxó foram um dos primeiros povos a ser contatados no período colonial. Entretanto “estamos sendo os últimos a concluir a questão fundiária de nossas terras”, lamenta Mãdy.

O território do seu povo inclui o Monte Pascoal, que a esquadra de Pedro Álvares Cabral avistou do mar, e a barra do rio Cahy, que foi a primeira praia onde os portugueses ancoraram e o primeiro rio que eles viram antes de subir para Porto Seguro, onde encontraram um lugar mais favorável para fundear os navios. Também foi onde tiveram o primeiro contato com a população local.

A falta de resolução para a situação territorial na qual se encontram gera uma tensão que se arrasta ao longo das décadas. “A gente está sendo igualmente uma folha seca tocada pelo vento. A gente não tem sossego”, explica o cacique Fragoso.

Um desassossego, que canalizado ao longo dos anos, se tornou processo de luta e retomada para o povo Pataxó. “A gente ficou muito tempo invisibilizado, violentado, vivendo de uma forma para se manter, para chegar a hora de fazer a luta, fazer a frente do movimento”, explica Mãdy ao informar que muita coisa de 1500 para cá não mudou. “A gente sente a mesma violência de 523 anos atrás”, a mesma que historicamente, vem invisibilizando, matando e inferiorizando os povos indígenas.

Rádios bolsonaristas

Ligados a fazendeiros locais, programas de rádio do extremo sul da Bahia tem inflamado ainda mais o contexto de violência na região, instigando discursos de ódio e comportamentos agressivos e racistas contra o povo Pataxó. A gente vem sofrendo racismo, discriminação de todo lado, até mesmo da sociedade civil, não só da parte da polícia. Hoje a gente não pode nem andar na cidade porque está sendo ameaçado, atacado”, conta Uruba Pataxó, vice-cacica da aldeia-mãe Barra Velha, ao se referir às “rádios bolsonaristas que vem chamando a gente de supostamente indígena”.

Trata-os como invasores de suas próprias terras, insuflando a narrativa anti-indígena empreendida pelos fazendeiros

É o caso dos ataques empreendidos pelo programa Café Rural, veiculado na rádio de Itamaraju (BA), sob o comando do radialista Carlos Brito, e que tem investido sistematicamente contra os Pataxó. O programa, transmitido de segunda a sexta na rádio Itamaraju 99.7 FM, assume um discurso belicoso contra os povos indígenas, deprecia-os publicamente e questiona sua identidade e seus direitos enquanto povo originário.

No episódio veiculado no dia 16 de janeiro de 2023, um dia antes do assassinato de Nauí e Samuel, o radialista se refere aos Pataxó como “supostos índios” agindo “à margem da lei”. Trata-os como invasores de suas próprias terras, insuflando a narrativa anti-indígena empreendida pelos fazendeiros.

“Não existe nenhuma demarcação de terra nova na região para que aqueles supostos índios estejam invadindo essas propriedades. […] Na hora que morrer um bocado, o grande culpado aí principalmente são os homens da lei”, afirma o radialista, numa das muitas edições do programa em que ataca os Pataxó.

Além de agressiva, a afirmação é falaciosa: há, sim, terras em processo de demarcação na região. Os conflitos são uma consequência da morosidade na conclusão desses processos.

Em um levantamento feito pela reportagem, entre outubro de 2022 e janeiro de 2023, o radialista Carlos Brito se referiu a temas relacionados aos povos indígenas, principalmente ao conflito instaurado entre os Pataxó e os fazendeiros da região, em pelo menos 22 episódios de seu programa. As menções, em sua maioria, se dão de forma depreciativa e preconceituosa.

Ataques midiáticos ao povo Pataxó também foram transmitidos por grandes meios de comunicação, por meio de reportagens que questionam a legitimidade das demarcações no extremo sul da Bahia e a identidade indígena das comunidades em luta pela terra.

Em nota, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e a Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme) afirmam que “algumas empresas de comunicação têm promovido uma campanha midiática contra as autodemarcações na região”.

Para as organizações, matérias veiculadas pelos canais Jovem Pan News e Band “não esclarecem os motivos reais dos conflitos e não apuram responsáveis, atribuindo supostos crimes à luta dos indígenas, ao mesmo tempo que não reconhecem a legitimidade do povo sobre seu território”.

*Matéria publicada originalmente no jornal Porantim, edição de março de 2023

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