23/03/2023

Depois de nove anos, aldeia do povo Karipuna volta a ficar debaixo d’água

Indígenas e integrantes do Cimi Regional Rondônia acreditam que os episódios de inundação são consequência da construção das hidrelétricas do Complexo Madeira, em Porto Velho (RO)

Indígenas e integrantes do Cimi Regional Rondônia acreditam que construção de hidrelétricas do Complexo Madeira (RO) tenha agravado as enchentes no território Karipuna. Foto: André e Adriano Karipuna

Por Marina Oliveira, da Assessoria de Comunicação do Cimi

Depois de nove anos, uma cena triste se repetiu dentro do território Karipuna, em Rondônia. Após fortes chuvas, o rio Jaci Paraná transbordou e deixou a aldeia Panorama (RO), na Terra Indígena (TI) Karipuna, debaixo d’água – desde o dia 16 de março de 2023. Mas, muito provavelmente, a culpa não é apenas do fenômeno natural.

Indígenas e integrantes do Conselho Indigenista Missionário – Cimi Regional Rondônia acreditam que os episódios de inundação – de 2014 e 2023 – podem ser agravados pelas hidrelétricas Jirau e Santo Antônio, que compõem o Complexo Madeira, em Porto Velho (RO). As obras foram desenvolvidas entre os anos de 2008 e 2016.

De acordo com Adriano Karipuna, liderança do povo Karipuna, e com o Cimi Regional Rondônia, existem diversos levantamentos técnicos que apontam a construção das hidrelétricas e a elevação da cota de produção de energia como a principais causas das enchentes na aldeia Panorama. Ao Cimi, Adriano conta sobre os danos causados à comunidade nesse último episódio.

“Até o momento, foram três famílias afetadas, com perdas e danos, entre bens materiais, alimentação e o comprometimento das casas das pessoas. Sabemos que, como as chuvas não estão passando, outras casas serão afetadas”, lamenta, com muita angústia, a liderança.

“Sabemos que, como as chuvas não estão passando, outras casas serão afetadas”

Parte do povo Karipuna se deslocou para Porto Velho (RO). Enquanto outras pessoas permaneceram no território, mas em áreas mais altas para se proteger de novos episódios. Foto: André e Adriano Karipuna

Em 2014, quando ocorreu a outra enchente, Katiká Karipuna – mãe de Adriano e uma das quatro pessoas sobreviventes do povo ao contato traumático com a sociedade não indígena – foi uma das afetadas, perdendo moradia e pertences. Até hoje, Katiká não teve qualquer reparação.

Para não colocar em risco a própria vida, parte do povo Karipuna se deslocou para Porto Velho (RO), enquanto outras pessoas estão se movendo para áreas mais altas dentro do próprio território para buscar um abrigo seguro.

“O povo está em estado de emergência, a situação está ficando crítica”

“Os Karipuna sofrem, há anos, com a invasão permanente em seu território. E agora, pela segunda vez, foram atingidos pela forte enchente do rio Jaci Paraná, o que impossibilita o tráfego, expondo a comunidade a doenças e ataques de animais peçonhentos trazidos pelas águas. O povo está em estado de emergência, a situação está ficando crítica”, explica o Cimi Regional Rondônia por meio de nota.

 

Providências

De acordo com Adriano Karipuna, já foi protocolado um pedido de ajuda no Ministério Público Federal em Rondônia (MPF-RO). “Já denunciei ao MPF em Rondônia, para que tomem as providências. E que responsabilizem os autores dessa situação. Inclusive, pedi ao MPF que compareça, presencialmente, em nosso território”, afirma.

“Já denunciei ao MPF em Rondônia, para que tomem as providências. E que responsabilizem os autores dessa situação”

Adriano Karipuna no Fórum Permanente da ONU sobre Assuntos Indígenas, em 2018. Foto: Luiz Roberto LimaO documento, compartilhado com o Cimi, narra o triste cenário e denuncia a negligência dos órgãos responsáveis pela proteção e assistência aos povos indígenas.

“As cheias têm gerado vários danos à comunidade Karipuna, como a queda de uma das pontes de acesso à aldeia, o rompimento das forças e o comprometimento dos poços artesianos, além de outras perdas e danos. Assim, é preciso que o DER [Departamento de Estradas de Rodagem] e a Semagric [Secretaria Municipal de Agricultura e Abastecimento em Porto Velho, Rondônia] realizem, imediatamente, obras e serviços de manutenção e cascalhamento de estrada e a construção de nova ponte para possibilitar o acesso à Sesai [Secretaria Especial de Saúde Indígena], Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas] e outros órgãos”, diz um trecho do documento.

Ainda em texto, a Associação dos Povos Indígenas Karipuna (Apoika) diz que, até o momento, apenas a Casa de Saúde Indígena (Casai) compareceu ao território para verificar a situação. A Funai e a Defesa Civil não prestaram qualquer assistência, segundo a associação.

Além disso, em 2018, o povo Karipuna já havia recorrido ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) para solicitar a implementação de programa de proteção territorial e o pagamento de indenização por danos morais coletivos – em decorrência da enchente no ano de 2014. No entanto, o caso não foi tratado com a devida importância até o momento da publicação desta matéria.

 

Impactos ambientais

Neste período do ano, é normal que ocorram chuvas na região e, consequentemente, a cheia do rio Jaci Paraná. No entanto, desde o levantamento dos empreendimentos no Complexo Madeira, o rio passou a encher mais do que o previsto.

“Estamos no inverno amazônico, mas é bom lembrar que muito antes das construções das hidrelétricas, isso não acontecia. Se fizer uma linha do tempo, vemos que os rios sempre estavam em seu curso natural. Mas, depois das construções, ficou sem funcionar o seu curso natural. Além de ter afetado inúmeras coisas da natureza, a exemplo da escassez do pescado, a escassez da caça tradicional, de frutas tradicionais. Os peixes precisam subir os rios para a procriação, mas, com as hidrelétricas, não estão subindo mais”, explica Adriano Karipuna.

“Estamos no inverno amazônico, mas é bom lembrar que muito antes das construções das hidrelétricas, isso não acontecia”

Cheia do rio Jaci Paraná (RO), em março de 2023. Foto: André e Adriano Karipuna

A liderança diz que agora o povo Karipuna aguarda, com grande expectativa, que os órgãos públicos tomem as devidas providências e reparem os danos causados aos indígenas. “E que também tenhamos respeito perante isso que está ocorrendo, que façam melhorias e mudem a aldeia [Panorama] para a parte mais alta, com as casas já reconstruídas”, clama.

 

Apoio do Cimi

Em nota, o Cimi Regional Rondônia se solidariza e lamenta a situação que a comunidade está enfrentando. E pede que as autoridades competentes tomem as devidas providências para evitar danos ainda mais graves ao povo Karipuna.

 

Outras ameaças

Mesmo já sendo demarcada, homologada e registrada, a TI Karipuna vive sob constante insegurança. Invasões de madeireiros, grileiros e garimpeiros forçam os Karipuna a ficar na defensiva durante dia e noite, mesmo com o término do último governo, e colocam em risco ainda mais grave os indígenas isolados que também vivem no território.

Nos últimos anos, o Cimi, por meio de sua equipe do Regional Rondônia e em parceria com o Greenpeace Brasil, vem monitorando – e também noticiando – as diversas denúncias e “pedidos de socorro” feitos pelos indígenas dessa região. Em outubro de 2021, um monitoramento feito pelo Cimi, Greenpeace Brasil e pelo povo Karipuna na TI Karipuna identificou uma nova frente de desmatamento no local.

Uma visita in loco encontrou 850 hectares de área desmatada ilegalmente dentro de um período de doze meses (de outubro de 2020 a outubro de 2021) na terra indígena – um aumento de 44% em relação ao período anterior. Nesse mesmo local, foram encontradas áreas com mais de 100 hectares de corte raso.

Outra situação que os Karipuna, o Cimi Regional Rondônia e o Greenpeace Brasil denunciam com frequência, desde 2021, é a construção de pontes de madeira dentro do território para facilitar o trânsito de invasores no local.

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