19/01/2023

Bolsonaro sai, mas práticas incentivadas pelo seu governo permanecem na TI Karipuna

Frequentes invasões de grileiros, madeireiros e garimpeiros seguem ameaçando as vidas de indígenas que vivem na TI Karipuna, incluindo povos em isolamento voluntário

Região do rio Formoso, na Terra Indígena Karipuna, em Rondônia. Foto: Christian Braga Greenpeace

Por Marina Oliveira, da Assessoria de Comunicação do Cimi

No Brasil, assim que o ano virou, milhões de corações transbordaram de esperança e alegria com a troca de governo. Depois de quatro longos anos vivendo sob uma noite escura e nebulosa, finalmente muitas pessoas puderam respirar aliviadas ao enxergar uma luz no caminho.

Para os povos originários, um sonho que parecia ser tão distante virou realidade: a concretização do Ministério dos Povos Indígenas. Além disso, a poucos quilômetros de distância da Esplanada dos Ministérios, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) substituiu o rosto branco e insignificante de Marcelo Xavier pelas cores vibrantes de Joênia Wapichana – que entrou para a história do país como a primeira mulher indígena eleita deputada federal.

Mas, apesar das importantes conquistas, ainda há muito o que reconstruir. Infelizmente, Bolsonaro cumpriu com as promessas que fazia ainda na época da campanha eleitoral para a presidência do país, em 2018. Nos últimos quatro anos, nenhum centímetro de terra indígena (TI) foi demarcado, expondo os corpos e territórios dos povos originários a todo tipo de violência e invasão. Bolsonaro e seus aliados deixaram um verdadeiro rastro de destruição ao abrir os cercos para a “boiada passar”.

No Norte do país, em Rondônia, a TI Karipuna é uma das grandes vítimas desse cenário obscuro – mesmo já sendo demarcada, homologada e registrada. Invasões de madeireiros, grileiros e garimpeiros forçam os Karipuna a ficar na defensiva durante dia e noite mesmo com o término do último governo, e colocam em risco ainda mais grave os indígenas isolados que também vivem no território.

 

TI Karipuna

Na última segunda-feira (16), após fazer um novo monitoramento na terra indígena, lideranças do povo protocolaram um documento na Funai, no Ministério Público Federal de Rondônia (MPF-RO) e na Sexta Câmara do MPF para denunciar “a situação de extrema vulnerabilidade e de ameaça à integridade física de povos isolados e do povo Karipuna presente na TI Karipuna, devido à permanente presença de grileiros, garimpeiros e madeireiros no interior da mesma”.

Ainda de acordo com as lideranças, algumas operações já foram realizadas na TI Karipuna, mas não foram suficientes para garantir “uma proteção permanente e eficaz na Terra Indígena Karipuna”.

“As operações não foram suficientes para garantir uma proteção permanente e eficaz na Terra Indígena Karipuna”

Aumento de 44% do desmatamento mostra a vulnerabilidade da TI Karipuna, que permanece sendo bastante ameaçada. Foto: Christian Braga/Greenpeace

Em outro documento – protocolado no MPF de Rondônia, no Ministério dos Povos Indígenas, na Funai e na Polícia Federal (PF) –, os Karipuna relatam, com mais detalhes, como ocorrem as invasões e ameaças.

“Apesar das inúmeras denúncias protocoladas, as ações de fiscalizações e proteção feitas na TI Karipuna surtiram pouco efeito, por falta de um plano de proteção permanente que seja eficaz para coibir toda a ação de grilagem de terra, roubo de madeira e ameaça à integridade física dos povos isolados e de nós, povo Karipuna”.

Outra situação que os Karipuna denunciam com frequência, desde 2021, é a construção de pontes de madeira dentro do território para facilitar o trânsito de invasores no local.

“Em menos de três dias, reconstroem as pontes e continuam a roubar os recursos naturais”

Povo Karipuna denuncia novos casos de roubo de madeira e grilagem na região do rio Formoso, na TI Karipuna. Foto: povo Karipuna

“Apesar da última operação feita para destruir pontes, que ligam estradas clandestinas para a terra indígena, os invasores ficam cada dia mais audazes e, em menos de três dias, reconstroem as pontes e continuam a roubar os recursos naturais, que são indispensáveis para nossa sobrevivência e soberania alimentar”, relatam os Karipuna.

 

Desmatamento

Nos últimos anos, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), por meio de sua equipe do Cimi Regional Rondônia e em parceria com o Greenpeace Brasil, vem monitorando – e também noticiando – as diversas denúncias e “pedidos de socorro” feitos pelos indígenas dessa região. Em outubro de 2021, uma matéria mostrou que um monitoramento feito pelo Cimi, Greenpeace Brasil e pelo povo Karipuna na TI Karipuna identificou uma nova frente de desmatamento no local. 

Uma visita in loco encontrou 850 hectares de área desmatada ilegalmente dentro de um período de doze meses (de outubro de 2020 a outubro de 2021) na terra indígena – um aumento de 44% em relação ao período anterior. Nesse mesmo local, foram encontradas áreas com mais de 100 hectares de corte raso.

“Uma visita in loco encontrou 850 hectares de área desmatada ilegalmente dentro de um período de doze meses na terra indígena”

Desmatamento e queimada de mais de 100 hectares dentro da TI Karipuna na região do Rio Formoso, registrado em 2021, durante monitoramento feito pelo povo Karipuna, Greenpeace Brasil e pelo Cimi. Foto: Christian Braga/Greenpeace

Desmatamento e queimada de mais de 100 hectares dentro da TI Karipuna na região do Rio Formoso, registrado em 2021, durante monitoramento feito pelo povo Karipuna, Greenpeace Brasil e pelo Cimi. Foto: Christian Braga/Greenpeace

Após realizarem o levantamento, o Cimi, o Greenpeace Brasil e os Karipuna concluíram também que a produção de carne e soja está entre os principais atores que pressionam as florestas daquela área. Em matéria, foi abordado, ainda, que a pecuária cresceu 87% no município de Porto Velho nos últimos nove anos (considerando o ano de 2021) e o território voltado à produção de soja em Rondônia triplicou na última década, passando de 111 mil hectares para 400 mil hectares em 2020.

 

Ameaça

A aldeia do povo Karipuna está, atualmente, cercada por invasores. De acordo com relatos dos indígenas, os criminosos fizeram novas derrubadas de árvores a menos de 50 metros da casa do cacique no ano passado.

Após a liderança tomar providências para – ao menos tentar – frear as ações dos invasores, ele recebeu um recado em tom de ameaça: “por favor, não mexa na minha madeira”.

Além disso, outra situação anda tirando o sono do cacique e de sua comunidade. Uma pessoa não-indígena anunciou, recentemente, a abertura de um lote dentro da TI Karipuna, próximo à aldeia da liderança. Para os indígenas, isso significa uma “clara ameaça à integridade física do cacique e de seu povo”.

 

‘Vestígios de povos isolados’

O próprio povo Karipuna é um dos principais responsáveis por realizar, com frequência, um monitoramento de seu território. Ainda conforme o primeiro documento mencionado nesta matéria, recentemente os indígenas encontraram vestígios que indicam presença de povos indígenas em situação de isolamento voluntário dentro do território Karipuna.

“Desde de agosto de 2021, lideranças do povo Karipuna, em incursão por seu território, se deparam com vestígios de povos isolados, que se encontram muito ameaçados pelas intensas invasões de madeireiros, grileiros e garimpeiros. Em outubro de 2022, lideranças do povo Karipuna já haviam cobrado providências. Além disso, em agosto de 2022, um membro da comunidade teria visto um pequeno grupo atravessando o Ramal Panorama, a menos 5km da Aldeia Panorama, notificando o fato imediatamente à Funai e ao MPF”, contam as lideranças em documento.

“Desde de agosto de 2021, lideranças do povo Karipuna, em incursão por seu território, se deparam com vestígios de povos isolados”

Para Laura Vicuña, missionária do Cimi Regional Rondônia, os criminosos continuam a invadir o território, porque não há uma efetiva punição dos mandantes.

“Há vestígios de isolados em dois pontos distintos da Terra Indígena Karipuna, confirmando a informação que já havíamos levantado no Cimi, de que são dois grupos distintos. Agora, temos a certeza de que não só os Karipuna estão ameaçados, mas também os povos isolados. As invasões continuam por todos os quadrantes do território. Apesar das operações, os invasores continuam a adentrar o território, pois falta cumprir com a prisão de mandantes”, explica a missionária.

“As invasões continuam por todos os quadrantes do território”

Retirada de madeira ilegal na Terra Indígena Karipuna, registrada em 2019. Foto: Chico Bata/Todos os Olhos na Amazônia

Retirada de madeira ilegal na Terra Indígena Karipuna, registrada em 2019. Foto: Chico Bata/Todos os Olhos na Amazônia

Pedidos de ajuda

Perante os fatos expostos em documento protocolado na Funai, no MPF de Rondônia e na Sexta Câmara do MPF, os Karipuna solicitam, com urgência, alguns pedidos: a retirada imediata do invasores; a proteção de caráter de urgência para o povo Karipuna e para os povos isolados; a permanência de uma equipe de fiscalização e proteção na parte norte e sul da TI Karipuna, com um plano permanente de fiscalização, segundo recomendado pela Justiça Federal de Rondônia; a instalação de uma base da Funai na TI Karipuna; e o deslocamento da equipe da Funai até a TI Karipuna para garantir a integridade e proteção dos povos em situação de isolamento voluntário.

Em setembro do ano passado, uma delegação de indígenas da TI Karipuna levou a embaixadas e representantes de 21 países um pedido de ajuda. Eles solicitaram apoio internacional para pressionar o governo federal a cumprir com sua obrigação de proteger a terra indígena. 

Em outubro, mais de 50 organizações e parlamentares divulgaram uma carta defendendo a criação de uma Comissão Parlamentar para averiguar invasões sistemáticas à TI Karipuna e omissão do governo federal.

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