Nota técnica: decreto do governo federal enfraquece Funai, afronta Constituição e inviabiliza participação indígena
Decreto que reformulou estatuto da Funai extingue espaços de participação indígena e enfraquece unidades descentralizadas, aponta análise técnica da Assessoria Jurídica do Cimi
O Decreto 11.226/2022, que reformulou o Estatuto da Fundação Nacional do Índio (Funai), extingue espaços de participação e controle social destinados aos povos indígenas, afronta a Constituição Federal e enfraquece a missão institucional do órgão, responsável por zelar pelos direitos dos povos originários. Essa é a conclusão da análise técnica do decreto realizada pela assessoria jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Publicado no dia 7 de outubro de 2022, o decreto estabelece uma série de modificações na estrutura da Funai, especialmente no que diz respeito às atribuições das coordenações e unidades descentralizadas do órgão indigenista.
“O Decreto nº 11.226/2022 gera prejuízos imensuráveis aos indígenas, seus direitos e ao seu patrimônio material e imaterial”
Entre outras alterações, o decreto extingue os Comitês Regionais e o Conselho Fiscal da Funai e esvazia as funções institucionais das Coordenações Técnicas Locais, das Coordenações Regionais e das coordenações das Frentes de Proteção Etnoambiental e do Museu do Índio. Além disso, modifica competências de setores como a Procuradoria Federal Especializada, da Diretoria de Proteção Territorial, da Ouvidoria e da Corregedoria.
Na avaliação da assessoria jurídica do Cimi, o decreto “gera prejuízos imensuráveis aos indígenas, seus direitos e ao seu patrimônio material e imaterial”, e “desestrutura às inteiras o órgão indigenista, em especial no seu funcionamento descentralizado”.
A análise técnica aponta que o decreto atenta contra os princípios constitucionais que devem ser obedecidos pela administração pública – legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência – e afronta os artigos 231 e 232 da Constituição Federal, que garantem aos povos indígenas seus direitos específicos.
“Há uma deliberada intenção de esvaziar a transparência e o monitoramento das ações do órgão e de seus gestores, que atenta contra o Estado Democrático de Direito”, avalia a assessoria jurídica do Cimi.
“Se as demarcações de terras indígenas já se encontram em estágio letárgico, para não dizer suspensas pela Funai, certo é que o novo decreto contribuirá ainda mais com a paralisação dessa política constitucional, também em claro prejuízo à proteção e fiscalização dos territórios já demarcados”
Segundo a análise, o enfraquecimento das unidades descentralizadas e da procuradoria especializada também afeta negativamente as demarcações de terras e as ações de proteção e fiscalização das terras já demarcadas.
“Se as demarcações de terras indígenas já se encontram em estágio letárgico, para não dizer suspensas pela Funai, certo é que o novo decreto contribuirá ainda mais com a paralisação dessa política constitucional, também em claro prejuízo à proteção e fiscalização dos territórios já demarcados”, afirma a nota.
A assessoria jurídica do Cimi também destaca o fato de que, no primeiro artigo do estatuto da Funai, foi retirada a menção ao “prazo de duração indeterminado” do órgão.
“Caso não seja uma mera coincidência”, aponta a nota, “estamos diante de um desmonte deliberado da política indigenista que nada mais pretende a não ser apontar o caminho para a extinção do órgão mais importante para a concretização dos direitos indígenas”.
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Principais pontos
Sem consulta
A modificação substancial da estrutura do órgão sem que os povos indígenas fossem consultados viola a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário. A Convenção regulamenta o direito dos povos indígenas à consulta livre, prévia e informada.
“Temos aqui uma grave afronta ao direito indígena e por isso mesmo se torna viciado o Decreto nº 11.226/2022, devendo ser, desde logo, revogado, pois não foram obedecidas as diretrizes apontadas em norma supralegal”, aponta a análise técnica.
Extinção de órgãos colegiados
Os Comitês Regionais e o Conselho Fiscal foram extintos na reestruturação da Funai. Na avaliação da assessoria jurídica do Cimi, embora não contasse com a participação direta de indígenas ou de integrantes da sociedade civil, a extinção do Conselho Fiscal diminui a “transparência na administração econômica e financeira da Funai e do patrimônio indígena”.
Os Comitês Regionais, por outro lado, permitiam a participação de representantes indígenas e tinham, entre suas atribuições, as de colaborar na formulação de políticas públicas de proteção territorial e de acompanhar a prestação de contas das Coordenações Regionais da Funai.
O novo decreto centraliza essas atribuições na Diretoria Colegiada, formada apenas pelo presidente da Funai e pelos diretores do órgão. “Na prática, o que o novo decreto faz é justamente retirar os povos indígenas das instâncias onde se estabelecem as políticas públicas da Funai”, sintetiza a nota técnica.
“Sem competência, a estrutura descentralizada deixa de existir”
Unidades descentralizadas
As Coordenações Técnicas Locais, as Coordenações Regionais, as Coordenações das Frentes de Proteção Etnoambiental e o Museu do Índio, embora não tenham sido extintos, tiveram suas competências completamente suprimidas no novo estatuto da Funai.
“Dado que existe a previsão legal de uma estrutura, mas esta é extirpada de sua funcionalidade e de sua competência, fica obviamente esvaziada na prática a sua função institucional”, aponta a assessoria jurídica do Cimi. “Sem competência, a estrutura descentralizada deixa de existir”.
Entre as atribuições que foram retiradas das Coordenações Regionais estão funções como coordenar, implementar e monitorar ações de proteção territorial e de promoção dos direitos indígenas e apoiar o monitoramento territorial das terras indígenas.
No caso das Coordenações Técnicas Locais, foram removidas atribuições como o planejamento e a implementação de ações de promoção e proteção dos direitos indígenas e de proteção territorial.
E, no caso das Coordenações das Frentes de Proteção Etnoambiental, as principais atribuições referiam-se à proteção e ao levantamento de informações sobre povos indígenas em isolamento voluntário.
“Temas como educação, cultura, preservação ambiental, saúde, proteção e fiscalização territorial e, até mesmo, a manutenção dos sistemas de sobrevivência física e cultural de grupos em isolamento voluntário ficam prejudicados”, analisa a assessoria jurídica do Cimi.
Esta alteração é grave, segundo a avaliação técnica, pois “tende a afetar diretamente a questão territorial, deixando completamente desprotegidos os territórios indígenas, o que facilita a invasão, o esbulho, a violência e a apropriação das riquezas naturais existentes nas terras indígenas, bem como prejudica a efetivação do direito fundamental de demarcação das terras de ocupação tradicional”.
Gabinete da Funai
O Gabinete da Funai, que era responsável por realizar a interlocução entre o Presidente e as diretorias, unidades descentralizadas e público externo, também ficou esvaziado em suas funções – o que, na avaliação técnica da assessoria jurídica do Cimi, resulta num distanciamento entre a presidência da Funai e as unidades de base.
“Se a política indigenista deve ser feita de forma uniforme no país, com um comando central articulado entre todas as regionais e dirigentes, a transformação do ‘Gabinete’ num espaço esvaziado resulta num verdadeiro retrocesso”, aponta a nota técnica.
Procuradoria Federal Especializada
A Procuradoria Federal Especializada também sofreu grande redução nas suas atribuições. Antes, ela possuía competência para expedir pareceres normativos vinculantes, sob a aprovação do Presidente e Procurador-Chefe da entidade, além de também poder buscar soluções para controvérsias envolvendo os povos indígenas e a Funai.
A análise técnica da assessoria jurídica do Cimi aponta que a diminuição das atribuições da Procuradoria Especializada da Funai reduz, também, a autonomia dos servidores para divergirem das diretrizes políticas do governo federal.
“A Procuradoria vê diminuir sua incidência dentro das decisões da Fundação”, aponta a nota técnica. “Sendo servidores públicos de carreira, suas análises técnicas e jurídicas poderiam não estar alinhadas ao governo federal, e o novo Estatuto tratou de diminuir sua interferência, principalmente com a desautorização na edição de pareceres e na resolução de conflitos entre indígenas e Funai, o que é extremamente prejudicial”.