14/09/2022

Apesar de decisões judiciais favoráveis, povo Pataxó segue sofrendo ataques armados na Bahia

Presente em Brasília, delegação indígena tem se reunido com órgãos públicos e cobrado providências para proteção das comunidades e investigação dos agressores

Lideranças indígenas Pataxó e de povos do Maranhão, de Minas Gerais e de Roraima denunciaram violência nos territórios durante reunião com CNDH, em Brasília. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Lideranças indígenas Pataxó e de povos do Maranhão, de Minas Gerais e de Roraima denunciaram violência nos territórios durante reunião com CNDH, em Brasília. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Por Tiago Miotto, da Assessoria de Comunicação do Cimi

Ao menos duas decisões judiciais recentes garantiram ao povo Pataxó o direito de permanecer em áreas retomadas dentro do perímetro já identificado e delimitado como parte da Terra Indígena (TI) Barra Velha do Monte Pascoal, no município de Porto Seguro, no extremo sul da Bahia. Apesar disso, os ataques de pistoleiros e grupos armados que os indígenas identificam como “milicianos” contra as comunidades Pataxó das TIs Barra Velha e Comexatibá, localizada no município de Prado, têm sido recorrentes.

O mais recente dos ataques armados contra o povo Pataxó ocorreu na aldeia Nova, na TI Barra Velha, no dia 12 de setembro, sem deixar feridos. No dia 6 de setembro, um ataque armado já havia aterrorizado a mesma aldeia, também sem registro de feridos.

No dia 3 de setembro, um ataque contra uma retomada da TI Comexatibá resultou no assassinato de Gustavo Silva da Conceição, Pataxó de apenas 14 anos, e deixou outro indígena, de 16 anos, ferido no braço. As duas terras indígenas são contíguas, separadas apenas por um “corredor” que é ocupado por fazendas.

Em razão dos contínuos ataques e ameaças, uma delegação de lideranças do povo Pataxó está presente em Brasília, realizando uma série de incidências e cobrando providências de órgãos públicos. Nesta terça-feira (13), os Pataxó participaram de uma audiência com o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), junto a outros povos que participam da mobilização na capital federal, e levaram suas denúncias à Sexta Câmara do Ministério Público Federal (MPF).

“Essas decisões judiciais dão alguma segurança jurídica aos Pataxó, mas é importante dizer que violência já se espalhou pela região de tal forma que a aldeia atacada nos dias 6 e 12 de setembro não faz parte do movimento de retomadas”

Decisões judiciais

No dia 9 de junho, a juíza federal da subseção judiciária de Teixeira de Freitas (BA), Celia Regina Ody Bernardes, negou pedido liminar de reintegração de posse contra a aldeia Quero Vê, retomada estabelecida pelos Pataxó na TI Barra Velha em janeiro de 2022.

A TI Barra Velha possui uma área demarcada na década de 1980 com apenas 8,6 mil hectares, que deixou de fora a maior parte do território Pataxó. Por esta razão, em 2008, a Fundação Nacional do Índio (Funai) realizou o reestudo da área e, em 2014, como fruto dessa revisão, identificou e delimitou a TI Barra Velha do Monte Pascoal com 52,7 mil hectares.

Desde então, contudo, o processo demarcatório encontra-se paralisado. A falta de espaço para sobrevivência e reprodução de seu modo de vida tradicional, assim como o avanço de fazendeiros, posseiros e empreendimentos imobiliários sobre o território, motivaram uma série de retomadas do povo Pataxó, dentro do perímetro já identificado como parte de sua terra tradicionalmente ocupada.

A decisão de junho garantiu aos Pataxó a permanência na área retomada em janeiro, explica Lethicia Reis, assessora jurídica do Conselho Indigenista Missionário – Cimi Regional Leste e advogada da comunidade indígena no processo.

“Essa decisão determina a manutenção da comunidade na aldeia Quero Vê, uma vez que ela faz parte, e isso está mais do que comprovado, da TI Barra Velha. Vai na linha de garantir os Pataxó na área, por entender que eles não podem ser responsabilizados pela demora na demarcação”, analisa a assessora.

Mais recentemente, no dia 8 de setembro, em audiência sobre outros quatro processos de reintegração de posse e interdito proibitório contra os Pataxó da TI Barra Velha, o juiz federal Pablo Baldivieso, da subseção judiciária de Eunápolis (BA), determinou a suspensão de processos contra os indígenas e garantiu sua permanência nas áreas retomadas pelos indígenas entre junho e agosto.

A base das decisões é a determinação do ministro Edson Fachin no âmbito do processo de repercussão geral sobre demarcação de terras indígenas, do qual é relator. O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu a tramitação dos processos que possam resultar em despejos ou em retrocesso nos direitos territoriais indígenas até que o processo seja julgado pela Suprema Corte.

“Na audiência, as próprias testemunhas dos fazendeiros disseram saber que lá era terra indígena. O juiz suspendeu os processos conforme a determinação do ministro Fachin, e garante que os Pataxó se mantenham nas áreas que eles ocuparam de junho para cá”, explica a advogada dos indígenas.

“Não estamos tendo ninguém por nós lá, só nosso Deus e a esperança de nosso povo, que enviou a gente para cá para voltar com algo que estanque a violência”

Em reunião com CNDH, lideranças do povo Pataxó pediram providências para proteção das comunidades nas TIs Barra Velha do Monte Pascoal e Comexatibá, no extremo sul da Bahia. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Em reunião com CNDH, lideranças do povo Pataxó pediram providências para proteção das comunidades nas TIs Barra Velha do Monte Pascoal e Comexatibá, no extremo sul da Bahia. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Violência disseminada

As garantias obtidas por meio das decisões judiciais não têm sido suficientes para barrar os ataques contra as comunidades Pataxó do extremo sul da Bahia. As lideranças presentes em Brasília denunciaram a situação à Sexta Câmara do Ministério Público Federal (MPF) e ao CNDH, pedindo proteção às comunidades e lideranças ameaçadas.

“Nós estamos realmente acuados”, relata Mandy Pataxó, liderança da TI Comexatibá. “Não estamos tendo ninguém por nós lá, só nosso Deus e a esperança de nosso povo, que enviou a gente para cá para voltar com algo que estanque a violência. Nós não temos fuzil, nem metralhadora, nem colete à prova de balas e nem dinheiro, como o que estão colocando contra nós. Somos formiguinhas”.

As lideranças relataram às autoridades que os ataques têm sido articulados e até antecipados em grupos de whatsapp locais, com atuação de políticos, policiais e fazendeiros. Foi o que ocorreu no dia do ataque na TI Comexatibá que resultou no assassinato de Gustavo da Silva Pataxó.

Os dois ataques mais recentes na TI Barra Velha foram contra a comunidade denominada “aldeia Nova” – que, apesar do nome, é uma aldeia já estabelecida há anos na área já identificada da terra indígena e que ainda aguarda o fim do processo de regularização.

“Essas decisões judiciais dão alguma segurança jurídica aos Pataxó, mas é importante dizer que violência já se espalhou pela região de tal forma que a aldeia que foi atacada nos dias 6 e 12 de setembro não faz parte do movimento de retomadas. Ela já é uma aldeia constituída há alguns anos, tem inclusive escola construída, escola funcionando, onde os indígenas foram se abrigar durante o tiroteio”, explica Lethicia Reis.

Vídeos gravados pelos indígenas durante o último ataque contra a aldeia Nova, no dia 12 de setembro, mostram famílias Pataxó correndo para se abrigar dos ataques na mata próxima à comunidade.

“Pedimos providência para que parem de matar e atacar nosso povo. Dia após dia estamos sendo parados pela força da bala, bala de fuzil. A gente não tem tido mais sossego para tomar uma decisão em busca da vida e da sobrevivência. Estamos sendo atacados 24 horas, as crianças estão jogando-se pelo mato, se arriscando em busca da vida”, relata o cacique Aldair Pataxó, liderança da TI Barra Velha.

“Estamos sendo caçados e atacados. Na nossa região, há muito interesse de empresas de fora, em função das matas e das águas que só existem porque nós protegemos. E essas empresas estão lá explorando plantios de monocultura dentro do território, de café, de mamão, de pimenta, de eucalipto. Essas empresas estão fazendo com que os ataques contra nossos povos aumentem”, avalia o cacique.

A liderança reforça os pedidos de proteção, mas pondera que a solução definitiva para o contexto de violência passa por um único caminho: “essa situação só será resolvida com a assinatura da carta declaratória desses territórios, tanto de Barra Velha quanto de Comexatibá”, reivindica.

“Solicitamos investigação da Polícia Militar, de dia atuando como força pública e em outros momentos atuando como milícia paramilitar”

Providências para a proteção e segurança

Após reunião com as lideranças Pataxó, a coordenadora da Sexta Câmara do MPF, Eliana Torelly, garantiu que irá reforçar o pedido já feito ao Ministério da Justiça para que garanta o “reforço do efetivo especializado da Polícia Federal” na região do território Pataxó. A solicitação foi feita por meio de dois ofícios dirigidos ao ministro Anderson Torres – um deles no dia 29 de agosto e outro depois do assassinato de Gustavo Pataxó.

Após reunião com várias instituições no dia 6 de setembro, o CNDH solicitou à Procuradoria-Geral do Ministério Público Estadual (MPE) da Bahia que o órgão incidisse junto ao governo estadual para garantir a presença da Força Nacional na região, como forma de proteção às comunidades indígenas. O Conselho também recomendou que as ações sejam coordenadas com a participação da Polícia Federal.

“As pessoas ameaçadas e as próprias comunidades que estão com risco de vida neste momento precisam ter as garantias de proteção dos programas estadual e nacional de defensores e defensoras de direitos humanos. O Conselho oficiou e está cobrando medidas neste sentido, de garantia de que as comunidades não sejam atacadas”, explica o presidente do CNDH, Darci Frigo.

“Junto com os ofícios que fizemos ao Ministério Público, também denunciamos e solicitamos investigação da Polícia Militar, de dia atuando como força pública e em outros momentos atuando como milícia paramilitar, e se somando a essa ação miliciana que está acontecendo na região do sul da Bahia”, aponta Frigo.

Já como resultado das solicitações, a partir desta terça-feira (13), uma Força Tarefa criada pela Secretaria de Segurança Pública do estado da Bahia, composta pelas polícias Militar, Civil e Técnica e com apoio da Polícia Rodoviária Federal (PRF), passou a atuar na região com a finalidade de impedir novos conflitos e identificar os responsáveis pela morte de Gustavo.

Audiência dos povos da Bahia, Minas Gerais, Maranhão e Roraima com o CNDH

Delegação em Brasília

Desde segunda-feira (12), cerca de 120 indígenas dos estados de Maranhão, Bahia, Roraima e Minas Gerais estão presentes na capital federal e realizam mobilizações e incidências em defesa de seus direitos ao longo da semana.

Participam da mobilização em Brasília lideranças dos povos Apãnjekra Canela, Memortumré Canela, Akroá Gamella, Tremembé do Engenho e Kari’u Kariri, do Maranhão, Macuxi, de Roraima, Pataxó, da Bahia, e Xakriabá, de Minas Gerais.

Estes povos também participaram da audiência com o CNDH, junto a representantes do Cimi e da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), e na segunda-feira acompanharam a posse da ministra Rosa Weber na presidência do STF.

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