No terceiro dia do X Fospa, lideranças indígenas da Amazônia denunciam os constantes ataques sofridos dentro dos territórios
No último dia de atividades organizadas pelo Cimi no Fospa, lideranças de diferentes regiões falaram sobre o enfrentamento à política anti-indígena e aos invasores dos territórios indígenas
O terceiro dia do X Fórum Social Pan-Amazônico – o Fospa 2022 – amanheceu com a resistência e partilha dos povos indígenas de diferentes regiões do país. Reunidos na mesa “Povos indígenas e mobilização por seus territórios, diálogo com a ecologia integral e o sínodo da Amazônia”, no Tapiri Ecumênico III, na Universidade Federal do Pará (UFPA), as lideranças falaram sobre o enfrentamento à política anti-indígena e aos invasores dos territórios indígenas.
Mediada por Eliane Franco, coordenadora do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) – Regional Goiás/Tocantins, a mesa contou com a participação de Auricélia Arapiuns, do Baixo Tapajós (PA), de Adelina Guarani Kaiowá, de Mato Grosso do Sul (MS), e Davi Krahô, de Tocantins (TO).
Em sua fala, Auricélia Arapiuns criticou a postura do atual governo. “Muitas são as estratégias que nossos inimigos estão usando. Nós, que somos filhos da Amazônia, sofremos vários ataques. São ataques às pessoas e aos territórios. Estão matando os defensores da floresta. O governo Bolsonaro conseguiu acabar com a Funai [Fundação Nacional do Índio], não demarcou um centímetro de terra. Ele quer matar a gente de fome, quer tirar nossos territórios, que acabar com a Amazônia. Mas ele não vai conseguir”, afirmou Auricélia.
“Muitas são as estratégias que nossos inimigos estão usando. Nós, que somos filhos da Amazônia, sofremos vários ataques. São ataques às pessoas e aos territórios”
“Até os territórios que deveriam ser impedidos, por lei, de fazer retirada de madeira e mineração, estão ameaçados. E essa realidade não é só de Santarém [Pará], não é só do Tapajós [Pará]. É uma realidade da Amazônia como um todo”, completou.
Demarcação Já
O atraso do julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365 – pelo Supremo Tribunal Federal (STF) – foi um ponto lembrado pelos participantes da mesa. Segundo Auricélia, na prática, o marco temporal faz parte da realidade dos territórios indígenas do país.
“Não concluem nunca o julgamento do marco temporal, e isso é um dos grandes problemas que temos hoje. Infelizmente, nesse momento de campanha eleitoral, as ameaças aos indígenas e indigenistas vão aumentar. As mortes de Bruno e do Dom, por exemplo, foram pensadas. Foi uma estratégia”, lamentou Auricélia.
“Não concluem nunca o julgamento do marco temporal, e isso é um dos grandes problemas que temos hoje”
Na mesma linha, Davi Krahô, liderança indígena do povo Krahô, do estado de Tocantins (TO), também se pronunciou sobre o adiamento do julgamento pelo STF. “O marco temporal é péssimo para nós, uma vez que, se for aprovado, não teremos mais as nossas terras demarcadas. E, quem tem território demarcado, correrá o risco de perder”.
“O momento agora é de refletir e buscar o que é bom para todos nós. Temos que defender nossas terras indígenas. O nosso território é nossa morada, é nossa mãe. Se não tivermos o nosso território, vamos morrer. Iremos perder nossa língua, nossa cultura, nossa forma de viver, de se alimentar. O território é sagrado para nós”, completou a liderança Krahô.
“O momento agora é de refletir e buscar o que é bom para todos nós. Temos que defender nossas terras indígenas. O nosso território é nossa morada, é nossa mãe”
Adelaide Guarani Kaiowá, liderança do estado de Mato Grosso do Sul, também denunciou os constantes ataques sofridos pelo seu povo em decorrência da não-demarcação de seus territórios. “Quero dizer que tenho uma dor no meu coração pelo genocídio que estamos vivendo no estado de Mato Grosso do Sul. Estou aqui, desesperada, por não termos nossas terras Guarani Kaiowá demarcadas”, afirmou Adelaide durante sua participação na mesa.
Entenda o RE 1.017.365
No mérito, o Recurso Extraordinário com repercussão geral (RE-RG) 1.017.365, que tramita no STF, trata de um pedido de reintegração de posse movido pelo Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA) contra a Fundação Nacional do Índio (Funai) e indígenas do povo Xokleng, envolvendo uma área reivindicada – e já identificada – como parte de seu território tradicional.
A terra em disputa faz parte do território Ibirama-Laklanõ, reduzido ao longo do século XX. Além dos Xokleng, vivem também no local indígenas dos povos Guarani e Kaingang. Os indígenas nunca deixaram de reivindicar a área, que foi identificada pelos estudos antropológicos da Funai e declarada pelo Ministério da Justiça como parte da sua terra tradicional.
Em 2019, o processo teve sua repercussão geral reconhecida pela Suprema Corte, o que significa que a decisão tomada neste caso servirá como referência para todos os outros processos, julgamentos e decisões envolvendo o tema das demarcações de terras indígenas.
A expectativa dos povos originários é que os ministros do STF se posicionem a favor dos direitos constitucionais indígenas e contra a tese ruralista do “marco temporal”, utilizada para inviabilizar as demarcações de terras indígenas. No momento, o julgamento que foi interrompido após pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes teve um voto favorável aos povos indígenas, proferido pelo relator do caso, o ministro Edson Fachin, e um voto contrário aos direitos indígenas, expresso pelo ministro Nunes Marques.
Demarcação dos territórios da Amazônia
No turno da tarde, a narrativa não foi muito diferente. Durante a atividade “Demarcação dos territórios na Amazônia”, lideranças indígenas Guajajara, Guarani Kaiowá, Cujubim e Puruborá aproveitaram o momento para compartilhas com as pessoas presentes as suas vivências e lutas travadas dentro dos territórios.
Mário Puruborá, liderança do estado de Rondônia, falou sobre a importância de proteger os territórios. “Se não mantermos os territórios, não teremos vida. Esse mundo não viverá 50, 60 anos se não tivermos o cuidado com os territórios indígenas. E onde ainda tem floresta? É justamente em áreas demarcadas, áreas de conservação. Mas mesmo assim o governo está indo até esses lugares e destruindo tudo”, lamentou.
“Se não mantermos os territórios, não teremos vida. Esse mundo não viverá 50, 60 anos se não tivermos o cuidado com os territórios indígenas”
Do Maranhão, Olimpio Guajajara, liderança do povo Guajajara, disse que, apesar de ser de uma terra indígena já demarcada, o território “não sai da mira do governo, da destruição e da ambição do estado brasileiro”. Por isso, Olimpio disse que o seu povo criou a própria estratégia de proteção dentro do território.
“Nós, Guajajara, decidimos que nós mesmos quem iremos tomar conta do território. Por isso, os Guardiões da Floresta foi criado. Criamos esse grupo e discutimos como iria funcionar os trabalhos. E o trabalho dos guardiões é exatamente guardar e preservar os nossos conhecimentos, a nossa cultura, as nossas tradições, o nosso modo de viver. Nós conseguimos nos unir e mostrar que o nosso trabalho é importante a nível mundial. Queremos minimizar os impactos climáticos do planeta, permitir que o planeta respire um pouco”, explicou.
“Terras Indígenas não demarcadas: Amazonas e Roraima”
Logo após o encerramento das partilhas, Francesc Comelles – Chiquinho –, missionário do Cimi – Regional Norte I apresentou o livro “Terras indígenas não demarcadas: Amazonas e Roraima”.
A publicação é resultado de um amplo processo participativo e tem como objetivo resolver essa lacuna nos registros sobre territórios indígenas nos estados do Amazonas e de Roraima. O livro também foi apresentado na tarde desse sábado (30), na tenda Tapiri, um espaço do Fospa, em um momento de divulgação de publicações.
Pouco se sabe sobre esses territórios ocupados por indígenas, além de que lhes falta a documentação necessária para que o Estado e a sociedade brasileira os reconheça como de posse dos povos originários. A própria Funai não possui as devidas e completas informações sobre essas terras.
Essa ausência de informações contribui com a invisibilidade tanto das terras como de seus habitantes, aprofundando preconceitos e discriminação. Por não possuírem o reconhecimento de seus territórios, são tratados como se não fossem indígenas.
Assim, na intenção de contribuir com informações precisas e concretas sobre essa realidade, o Cimi – Regional Norte I desencadeou um processo de levantamento das terras indígenas que ainda não estão demarcadas, mas que se encontram em alguma das etapas do processo demarcatório definido pelo Estado brasileiro, na Constituição Federal de 1988.
*Com informações de materiais anteriores do Cimi