08/06/2022

Y-Juca-Pirama e o Clima em que se movia o Cimi em seus primeiros anos

Texto da coluna “Causos e Casos”, um especial do Jornal Porantim em comemoração aos 50 anos do Conselho Indigenista Missionário

Ilustração Mariosan

Por Egydio Schwade*  – MATÉRIA PUBLICADA ORIGINALMENTE NA EDIÇÃO 445 DO JORNAL PORANTIM

“Egydio, pegue aí, o Moura acaba de ser preso!”.

Foi na rodoviária de Goiânia, pela noite nos inícios de 1974. Antônio Moura controlava a “central” de distribuição do Y-Juca-Pirama em Goiânia. Poucos, além de D.Tomás e Moura, sabiam onde o documento foi impresso. Nem eu, secretário do Cimi, sabia.

Sem descer do ônibus, voltei ao meu assento. De Brasília eu havia telefonado para o Moura solicitando dois pacotes de “material escolar” (era a senha do Y-Juca-Pirama). Eu me dirigia ao Sul do Brasil. E na rodoviária de Goiânia, Moura me faria a entrega. O ônibus Brasília-São Paulo fazia escala em Goiânia para embarque de passageiros.

Naquela noite, enquanto Moura e Júlia, uma destemida agente de pastoral da Diocese de Goiás, esperavam a chegada do ônibus, Moura recebeu voz de prisão. Com grande presença de espírito, no que sempre foi um mestre, passou discreta e tranquilamente o pacote do Y-Juca-Pirama para as mãos de Júlia, como quem livra as mãos para erguê-las em sinal de rendição. Com a mesma discrição, Júlia recebeu o pacote e se retirou para a plataforma onde encostaria o ônibus.

Naquela noite entrou um só passageiro e este se sentou justo no assento atrás de mim. Inútil dizer que durante aquela noite não dormi um instante sequer, porque o passageiro nas minhas costas, mesmo inocente, me “controlou” a noite toda.

Em São Paulo, dirigi-me imediatamente ao apartamento da mãe do Moura para lhe dar mais esta dolorosa notícia da prisão de seu filho. Moura já sofrera alguns anos de prisão, quando foi agente de pastoral da Prelazia de S. Félix do Araguaia.

Sob este mesmo clima, nos reunimos no dia 21 de novembro de 1973, D.Tomás Balduino, D. Pedro Casaldáliga, Pe. Antônio Iasi, Pe. Ivo Poletto, o Frei Eliseu Lopes e eu, então secretário executivo do Cimi, no sítio do Frei Matheus, interior de Abadiânia/GO, para elaborar o Y-Juca Pirama.

O documento questionou duramente a política indigenista da ditadura militar. E estávamos convencidos de que haveria de ter repercussão e repressão. Que todos seriamos perseguidos. Como o secretariado do Cimi havia sido recém-criado e eu era o seu primeiro secretário executivo, temendo que uma eventual prisão minha interrompesse a continuidade da ação do Cimi, D. Pedro Casaldáliga sugeriu que eu não assinasse o documento.

Fiquei encarregado de conseguir assinaturas para o documento na Região Sul. Com esta finalidade me dirigi para lá logo após o encontro no sítio do Frei Mateus. O tempo era bem curto, pois o documento teria que sair antes do Natal e deveria conseguir preferencialmente assinaturas de bispos. Tarefa nada fácil. Por isso recebi logo algumas recomendações para a tarefa: “Vá logo lá, não adianta passar ali, aquele não assinará!”. E assim por diante. Mas, seguindo estas recomendações, cometi equívocos, por exemplo: “em Chapecó não adianta passar”, o bispo dali era D. José Gomes, mas que certamente teria assinado o Y-Yuca-Pirama, pois cedo passou a ser um dos maiores apoiadores do Cimi, chegando inclusive a ser o substituto de D.Tomás na Presidência do órgão. “Vá a Erechim, o recém-empossado D. João vai assinar!”, mas D. João se negou assinar o documento. Em Palmas, para onde me dirigi pensando conseguir apenas a assinatura do Pe. Natalício Weschenfelder, grande apoiador da nossa causa, consegui mais duas outras assinaturas, incluindo a do bispo D. Agostinho, a quem me dirigi num domingo pela manhã. Ele me pediu o documento solicitando que eu voltasse à noite, quando daria a sua resposta. No fim da tarde me recebeu com o rosto vermelho, tenso, e me devolveu o Y-Yuca-Pirama dizendo: “Li tudo! É isto mesmo! Pode colocar o meu nome!”.

Pelo Norte os companheiros tiveram ainda menos sucesso. Além dos que colaboraram na redação do documento, apenas o Pe. Thomaz Lisboa se juntou. Ninguém mais assinou o documento.

O 3º. Encontro de Pastoral Indigenista, realizado em Palmas no Paraná, de 15 a 17 de outubro de 1974, transcorria animado e parecia findar tranquilamente. A presença do jornalista Romildo Lima, esposo de nossa primeira secretária da sede em Brasília, Clara Favilla, agilizou a redação do relatório. Já estava quase todo mimeografado e todos esperando a sua entrega, quando fomos surpreendidos com Dom Tomás, Dom Agostinho e o Presidente do Cimi, Pe. Cesar, serem chamados à portaria pela Polícia Federal.

Enquanto os bispos discutiam com a polícia, nós ficamos reunidos sob grande clima de tensão enquanto Romildo e Egon, rapidamente, queimavam o relatório no quintal, sem deixar um só exemplar escondido, o que me obrigou reescrever o relatório depois, com base nas minhas anotações pessoais. Assim, bispos e missionários presentes, começamos a sentir na carne o que o índio vem sentindo desde 1500.

Em julho de 1976, deu entrada na Agencia Central do SNI o “Relatório Especial de Informações” do CIE, onde este abordou a atuação do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a quem atribuiu “um dos motivos de frequentes atritos entre órgãos governamentais e a Igreja Católica”.

“No bojo dessa atuação do Cimi escondem-se os reais propósitos da esquerda clerical”, afirmava o relatório. “Utilizar o órgão como instrumento e o assunto “índio” como pretexto para solapar a ação do governo”. Para o CIE, no documento assinado pelo general Confúcio, a renúncia do padre Jose Vicente Cesar à presidência do Cimi e, mais particularmente, a assunção de Dom Tomás Balduíno ao cargo, “caracterizam a preponderância da esquerda clerical no âmbito do órgão e o propósito de aprofundar a orientação contestatória imprimida à sua atuação”.

O secretário-executivo do Cimi, padre Egydio Schwade, foi apontado como “principal responsável pelas distorções verificadas na atuação do Cimi”. O padre, segundo o documento, era estreitamente ligado a Dom Ivo Lorscheiter”.

(O Pe. Vicente Cesar, sempre se mostrou duvidoso diante de nossa ação indigenista e acabou se demitindo no início da Assembleia Nacional do órgão, em junho de 1975, responsabilizando-me por sua atitude).

Casa da Cultura do Urubuí, 10 de setembro de 2019.

 

Causos e Casos

Iniciada na edição de abril de 2021, a coluna “Causos e Casos” é um especial rumo aos 50 anos do Conselho Indigenista Missionário que traz textos assinados por Egon Heck e Egydio Schwade, dois dos fundadores do Cimi e militantes da causa indígena brasileira antes mesmo da criação da entidade.

É a comemoração do cinquentenário por meio do reconhecimento da contribuição do Cimi para o desenvolvimento da causa indigenista a partir de seus missionários e missionárias, aqui representados por Egon Heck e Egydio Schwade. Figuras históricas de luta que contribuem fortemente para a atuação missionária junto aos povos originários, dando um novo sentido ao trabalho da igreja católica.

As histórias da “Causos e Casos”, escritas especialmente para esta coluna, mostrará que a atuação missionária, além de favorecer a articulação entre aldeias e povos, promovendo as grandes assembleias indígenas, onde se desenharam os primeiros contornos da luta pela garantia do direito à diversidade cultural; também fomenta espaços políticos e estratégias para o fortalecimento do protagonismo indígena.

Egon Heck e Egydio Schwade relatam causos e casos com propriedade, pois, desde os primórdios, fizeram parte das linhas de ação do Cimi, sendo impossível separar suas vidas da causa indígena brasileira. Engajados com as comunidades desde a juventude, eles compartilham dos mesmos sentimentos dos povos originários e adotaram a causa como parte integral de suas trajetórias.

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*Egydio Schwade é indigenista, pesquisador, apicultor, ativista e cidadão do Estado do Amazonas, título concedido pela Assembleia Legislativa daquele Estado pela dedicação em prol dos povos indígenas da Amazônia. Relação que se iniciou em 1963, num momento em que os povos daquela região eram dizimados, tendo seus territórios rasgados por estradas, invadidos, saqueados e sendo sistematicamente desqualificados e discriminados nas suas formas de ser e agir.

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