VII Assembleia da Juventude Indígena de Roraima elege novos coordenadores e assume o compromisso da resistência com a força de sua ancestralidade
Mais de 1200 jovens Macuxi, Wapichana, Yanomami, Ye´kuana, Taurepang, Sapará, Ingarikó, Wai Wai e Patamona aprofundam debate sobre sua identidade e analisam os desafios do movimento indígena
As palavras de Marçal de Souza, proferidas em 30 de setembro de 1983, na Associação Brasileira de Imprensa, nunca soaram com tanta urgência como nesses tempos. “Mas para onde nós vamos?”, interpela-nos sem meias palavras o líder Avá Guarani. Com lucidez, aponta que “neste século chegamos ao fim da picada”, “não temos muita alternativa”. O avanço voraz, impiedoso e sem critério da fronteira agrícola sobre o bioma amazônico fundamenta sua análise.
Hoje poderíamos acrescentar a terrível ameaça do garimpo e da mineração que destroem cruelmente os povos Yanomami e Munduruku. Sem contar com os devoradores projetos predatórios que só enxergam mercadorias e lucros. Afinal, continua de forma certeira o guerreiro Guarani, “não temos mais mata para fugir, nem floresta para nos proteger do perigo, da perseguição, do massacre”. É como se estivéssemos à beira de um grande rio, sem canoa, sem ter como atravessar”, finaliza com inquietante angústia.
“Não temos mais mata para fugir, nem floresta para nos proteger do perigo, da perseguição, do massacre”
Infelizmente, são inúmeras as notícias que fazem tremer o mundo indígena e seus aliados. Aquilo que o antropólogo jesuíta Bartomeu Melià (SJ) denunciou como um “genocídio dissimulado”. Recentemente, houve o brutal assassinato do jovem Guarani Kaiowá, Alex Recarte Vasques Lopes, no Estado de Mato Grosso do Sul. A organização indígena Aty Guasu – Grande Assembleia Guarani Kaiowá atribui o crime ao intenso histórico de conflito com os fazendeiros da região que, além de terem invadido seus territórios tradicionais, agem com truculência, à margem da lei.
Diante desse cenário desolador, esperançar é um imperativo para aqueles que se alimentam de utopia. Após o Abril Indígena, mês de intensificação das lutas, pode-se falar em Maio da Resistência. Com absoluta certeza, a VII Assembleia Estadual da Juventude Indígena de Roraima foi um desses luminosos sinais semeados pelo movimento indígena. Sob a proposta de refletir o tema “Juventude Indígena na luta pelos direitos indígenas e soberania territorial”, cerca de 1200 jovens se reuniram, entre os dias 12 a 15 de maio, à beira do sagrado Lago Caracaranã, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol.
Juventude vinda das diversas regiões que integram o Conselho Indígena de Roraima (CIR), formado pelos povos Macuxi, Wapichana, Yanomami, Ye´kuana, Taurepang, Sapará, Ingarikó, Wai Wai, Patamona, das regiões Serra da Lua, Murupú, Amajarí, Tabaio, Alto Cauamé, São Marcos, Surumú, Serras, Baixo Cotingo e Raposa, e algumas delegações convidadas, como o povo indígena venezuelano Warao, das comunidades Janakoida e Tarauparu, e representantes da juventude indígena do Estado do Amazonas. Como instituições parceiras também estiveram presentes o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o Levante Popular da Juventude, além dos missionários da Pastoral Indigenista da Diocese de Roraima.
Nesse lugar histórico de tantas lutas e encontros dos povos indígenas, a realização da assembleia da juventude possibilitou o aprofundamento da identidade e a reflexão sobre os desafios do movimento indígena. Um verdadeiro kairós! Tempo propício para escutar os anciões e as anciãs e deixar aflorar a força da ancestralidade daqueles e daquelas que os precederam na retomada dos territórios e na conquista dos direitos previstos na Constituição Federal de 1988.
No primeiro dia, 12 de maio, após a partilha das coordenações regionais da juventude sobre a caminhada nas respectivas regiões e a exposição dos alimentos, artesanatos e medicina tradicional trazidos pelos participantes, houve uma mesa de debates sobre “sustentabilidade e empreendedorismo”, conduzida pelo Departamento de Gestão Territorial e Ambiental do CIR, com a presença de representantes da Universidade Federal de Roraima (UFRR), do Instituto Federal de Roraima (IFRR) e do Centro Indígena de Formação e Cultura Raposa Serra do Sol (CIFCRSS), entre outros.
Na parte da tarde houve espaço para uma partilha de experiências, em que os representantes da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) apresentaram seus projetos nas áreas do ecoturismo e do trabalho com a juventude. Já na parte da noite, aconteceu o encontro com a coordenação da juventude juntamente com alguns membros da coordenação executiva para um diálogo franco sobre a organização e os atuais desafios do movimento.
Com a alvorada do dia seguinte, a juventude já estava desperta e animada para a realização de um ato de apoio a Deputada Federal Joenia Wapichana (REDE-RR), única representante indígena no Congresso Nacional. No dia anterior, a parlamentar fora hostilizada com ameaças e xingamentos pelos garimpeiros que protestavam contra a visita da comitiva do Senado Federal para apurar as sistemáticas violações de Direitos Humanos do povo Yanomami.
Apesar de celebrarem os 30 anos de homologação de seu território nesse dia 25 de maio, a invasão de mais 20 mil garimpeiros ilegais em suas terras tem espalhado terror e causado muita destruição socioambiental. Como coordenadora da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas, a deputada federal Joenia Wapichana (REDE/RR), por muitos anos advogada do movimento indígena, tem atuado com firmeza na denúncia das atrocidades cometidas contra o povo Yanomami.
Durante todo o dia, houve a oportunidade de a juventude ouvir as matriarcas e as patriarcas da luta sobre os primórdios da organização do movimento indígena em Roraima. As lideranças tradicionais narraram os anos da reconquista da terra, as agressões cometidas pelos latifundiários e políticos locais e o apoio indispensável da Igreja Católica por meio de seus bispos e missionários e missionárias comprometidos com a causa indígena. Um momento memorável que tocou profundamente os jovens.
Para encerrar o dia, houve uma vibrante noite cultural regada com danças tradicionais de parishara (dança tradicional) e muita alegria. O racismo estrutural não foi suficiente para apagar as origens desses povos. Nos últimos tempos, a juventude indígena vem retomando o orgulho de sua identidade. E após anos de luta pela demarcação de seus territórios, que infelizmente continuam ameaçados, tem ocorrido também a demarcação dos corpos indígenas.
Corpos que, diferentemente de parte da geração anterior, não sentem mais vergonha de se apresentar marcados com grafismos, adornados com artesanatos e comunicados a partir de suas línguas maternas. Como disse com sabedoria aquele que se fez Guarani com o Povo Guarani, Bartomeu Melià (SJ) “a língua é o território do ser” e “os povos, mesmo subjugados, ainda não estão conquistados se falam sua língua”.
“A língua é o território do ser”
No terceiro dia, centenas de jovens pintados de jenipapo e urucum, com seus trajes de palha e sincronizados na beleza dos parisharas se reuniram para receber a primeira mulher indígena a ocupar uma cadeira na Câmara dos Deputados. A mesma que anos antes fora a primeira advogada indígena a fazer sustentação oral no Supremo Tribunal Federal (STF), na defesa da demarcação contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Recebida por uma juventude consciente de seu papel político e embalada no ritmo dos gritos de resistência, Joenia Wapichana se emocionou ao ouvir a fala de uma jovem liderança que dizia se orgulhar da representatividade feminina indígena na política.
Durante o dia, houve uma mesa com espaço para dialogar sobre as possibilidades de formação e engajamento da juventude com os representantes das entidades parceiras, dentre elas, o Instituto Socioambiental (ISA), o Instituto Insikiran e a Diocese de Roraima. À noite, capitaneada pela psicóloga do movimento, Iterniza Pereira Macuxi, ocorreu um aprofundamento sobre saúde mental. No último dia do encontro, procedeu-se à eleição da nova coordenação da juventude, tendo sido eleita a jovem Wapichana Raquel Viana da Região Serra da Lua e como vice-coordenador, Messias Pereira, indígena Macuxi da Região Raposa Serra do Sol.
Com a energia e vibração de sua juventude, Raquel, agradecida pela confiança depositada em sua liderança, diz que as lideranças repassaram a ela e ao Messias um “jamaxim” cheio de desafios, mas juntos assumirão as responsabilidades com dedicação.
“Agora, como atual coordenação estadual da juventude, vamos lutar para fortalecer ainda mais a linha ao qual já trabalhávamos na gestão passada, atuando juntamente com nossas coordenações regionais de juventude. Acredito também que o maior desafio agora é alcançar mais comunidades nas regiões e atender suas demandas. Uma das maiores expectativas é que eu e Messias, como coordenação, executemos nosso trabalho com muito êxito e responsabilidade. Para que aqueles que estejam na base, não vejam só uma coordenação, mas que vejam lideranças com suas responsabilidades. Somos jovens, com responsabilidade e desafio muito grande de carregar o ‘jamaxim’ que nossas lideranças nos repassaram para dar continuidade nessa história de luta e resistências dos nossos antepassados”.
“Somos jovens, com responsabilidade e desafio muito grande de carregar o ‘jamaxim’ que nossas lideranças nos repassaram para dar continuidade nessa história de luta”
Em abril de 1977, na 8ª Assembleia dos Chefes Indígenas do Brasil, realizada nas ruínas de São Miguel das Missões, no Rio Grande do Sul, o líder Marçal Tupã-i profetizou com a força daqueles que lutam contra a opressão: “chegou a hora que nós, sozinhos, não conseguiremos fazer nada. Precisamos nos unir braço a braço, e levantar alto a voz dos nossos antepassados que foram massacrados. Chegou a um ponto que nós, os índios, devemos tomar a rédea do governo indígena, e esse é o caminho certo: a assembleia, reunir, ouvir todos”.
“A juventude não é o futuro, mas o presente”
Como foi repetido inúmeras vezes nessa assembleia, “a juventude não é o futuro, mas o presente”. E ao assumir esse presente com coragem e esperança torna-se protagonista de sua história, cansada de ser conduzida pela velha política que escraviza. Mesmo tendo sido o guerreiro Guarani Marçal de Souza assassinado, em 25 de novembro de 1983, a mando dos latifundiários de Mato Grosso do Sul, sua luta continua viva na juventude indígena de Roraima. Suas palavras se encarnaram em corpos e consciências demarcados. Seu ideal pulsa nos corações rebeldemente jovens de seus parentes. É tempo de trocar o vermelho do sangue indígena derramado pelo vermelho do urucum pintado, a cor da resistência!