22/04/2022

Pós-colonial e pós-conciliar: 50 anos do Cimi em defesa dos povos indígenas

Em vez de assumir a moratória proposta pelos antropólogos em Barbados, o Cimi mostrou que presença missionária e defesa dos povos indígenas são compatíveis. Sua missão continua, como defesa das vítimas e “memória perigosa” de um outro mundo possível

Por Paulo Suess[1] e José Agnaldo Gomes[2]

O prefixo “pós”, neste texto, tem dois significados distintos. Um aponta para a superação ou ruptura de práticas missionárias pertencentes a uma época histórica anterior, as quais confundiram missão com colonização. Para superá-las, portanto, propõe-se a prática pós-colonial. O outro significado inerente ao prefixo “pós” pode assumir uma perspectiva de continuidade temporal e ideológica. A pastoral pós-conciliar, por exemplo, seguiu as inspirações e decisões do Concílio Vaticano II, realizado entre 1962 e 1965, e os coloca em um campo específico de evolução histórica.

Sendo assim, a pastoral do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), desde seu início, no ano de 1972, foi marcada por rupturas coloniais e continuidade conciliar. Necessitava-se um bom tempo para respaldar no interior das múltiplas pastorais da própria Igreja católica a pastoral do Cimi, com seu núcleo central de defesa da vida dos seus interlocutores, como uma pastoral específica, ecumênica, sem proselitismo, e inter-religiosa, sem exclusivismo salvífico.

Em torno de cinco eixos – “contextos”, “discernimentos”, “propostas”, “alianças”, “martírios”, procuro lembrar essa proeza pastoral cinquentenária, da qual participei com muitos companheiros e companheiras, tendo alguns entre eles recebido a graça de dar sua vida como mártires.

O Cimi é filho do Concílio Vaticano II e de Medellín, que não tematizaram propriamente a questão indígena, mas que abriram caminhos para tratá-la adequadamente

Missionários na II Assembleia de Chefes Indígenas, no rio Cururu (PA), em 1975. Foto: arquivo do Cimi

Missionários na II Assembleia de Chefes Indígenas, no rio Cururu (PA), em 1975. Foto: arquivo do Cimi

Contexto

O Cimi nasceu como organismo anexo à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em 1972, no oitavo ano da ditadura militar, quando o general Emílio Garrastazu Médici era presidente do Brasil. A ideologia desenvolvimentista e autoritária daquela época não era favorável a uma pastoral em defesa dos povos indígenas.

Foi o secretário-geral da CNBB, Dom Ivo Lorscheiter, que convocou um pequeno grupo de 25 missionárias e missionários para discutir o Projeto de Lei nº 2328, que tramitava na Câmara e dispunha sobre o Estatuto do Índio. No grupo convocado, o qual se constituiria no primeiro núcleo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), encontravam-se, segundo sua primeira ata de 23 de abril de 1972, os bispos Ivo Lorscheiter, Eurico Kräutler (Altamira, PA; tio de D. Erwin Kräutler), Pedro Casaldáliga (São Félix, MT), Tomás Balduíno (Goiás, GO) e os missionários Tomás de Aquino e Sílvia Wewering.

Assim se deu o nascimento do Cimi, sete anos depois do final do Concílio Vaticano II (1965), quatro anos depois da II Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, em Medellín (1968). Medellín traduziu o sonho do aggiornamento de João XXIII, que movimentou o Vaticano II, em bandeira de descolonização teológico-eclesial e amplificou as vozes de milhões de pessoas dispostas a lutar por sua libertação da escravidão de pobreza e miséria. Quatro anos mais tarde, realizou-se em Santarém o IV Encontro Pastoral da Amazônia (24-30.05.1972), com suas Linhas Prioritárias de “encarnação na realidade” e “evangelização libertadora”, que hoje consideramos o “Medellín da Amazônia”.

No mesmo ano, em 25 de setembro de 1972, foram inaugurados os primeiros 1.254 km da rodovia Transamazônica (BR-230), cujo traçado atingiu mortalmente 29 territórios indígenas. Pela TV brasileira, o evento da Transamazônica passa a ser transmitido pela primeira vez em cores, por imagens sinistras, censuradas, e festejado como um dos esteios do “milagre brasileiro”. Na mesma época, a denúncia de uma “Biafra brasileira” no Vale do Guaporé percorreu a imprensa internacional. O traçado da BR-364, de Cuiabá para Porto Velho, que cortou o território Nambikwara no meio, causou a morte de toda a população Nambikwara menor de 15 anos pela transmissão de sarampo.

Nesse contexto histórico de descolonização, diálogo e libertação, surgiu uma série de questionamentos em torno da prática missionária direcionada aos povos indígenas

Da esquerda para a direita, Egydio Schwade, Pe. Vicente Cezar, Eugênio Rondon Aíje Kugúri, liderança do povo Bororo e cacique da aldeia Meruri, Pe. Rodolfo Lunkembein, Ir. Sílvia Wewering, Dom Tomás Balduino e Tomás Lisboa, em Diamantino (MT), em 1975. Foto: arquivo Cimi

Da esquerda para a direita, Egydio Schwade, Pe. Vicente Cezar, Eugênio Rondon Aíje Kugúri, liderança do povo Bororo e cacique da aldeia Meruri, Pe. Rodolfo Lunkembein, Ir. Sílvia Wewering, Dom Tomás Balduino e Tomás Lisboa, em Diamantino (MT), em 1975. Foto: arquivo Cimi

O Cimi é filho do Concílio Vaticano II e de Medellín, que não tematizaram propriamente a questão indígena, mas que abriram caminhos para tratá-la adequadamente. Nesse contexto histórico de descolonização, diálogo e libertação, surgiu uma série de questionamentos em torno da prática missionária direcionada aos povos indígenas. Não seriam também os povos autóctones deste continente parceiros privilegiados de um diálogo interreligioso? Não interessam também a eles a liberdade religiosa, a libertação de todas as formas de colonialismo, o respeito à sua cultura e, afinal, a sua autodeterminação no campo sociopolítico, cultural e religioso?

“Nesse contexto, falar dos povos indígenas não significa falar de casos isolados do passado, mas de uma causa étnico-racial da alteridade e biodiversidade que até hoje é marcado por sofrimento e violência, representa uma crítica da razão colonial, a busca da descolonialidade sociocultural e econômica, e um projeto de vida com horizontes de esperança” (SUESS; GOMES, 2019).

Questões como a “promoção da cultura” (Gaudium et spes, 53-59), a “liberdade religiosa” (Dignitatis humanae), o “valor salvífico das religiões não-cristãs” (cf. Lumen gentium, 16) e o “diálogo” com os seguidores de outras religiões (Nostra aetate, 2) e o mundo moderno, que através de Medellín foram colocadas no contexto latino-americano, incentivaram a prática pastoral pós-colonial do Cimi. Logo no início do Concílio, o papa João XXIII, em sua Carta Encíclica sobre a Paz na Terra (PT), de 1963, qualificou a descolonização dos povos como um “sinal do tempo”, que deve marcar uma nova época:

Acontecerá dentro em breve que já não existirão povos dominadores e povos dominados. […] Hoje comunidade nenhuma de nenhuma raça quer estar sujeita ao domínio de outrem. Porquanto, em nosso tempo, estão superadas seculares opiniões que admitiam classes inferiores de homens e classes superiores, derivadas de situação econômico-social, sexo ou posição política (PT 42s).

Quando o Cimi abriu as janelas e as portas de uma pastoral missionária amarrada ao seu passado colonial, nem todos os setores eclesiais ficaram satisfeitos. Como trabalhar e comunicar-se com o culturalmente diferente e o geograficamente distante?

Missionários e indígenas a caminho da X Assembleia de Chefes Indígenas, na aldeia do povo Tapirapé (MT). Do Cimi, Dom Pedro Casaldáliga e Marlene Castro Ossami de Moura. Foto: Antônio Carlos Moura/Cimi

Missionários e indígenas a caminho da X Assembleia de Chefes Indígenas, na aldeia do povo Tapirapé (MT). Do Cimi, Dom Pedro Casaldáliga e Marlene Castro Ossami de Moura. Foto: Antônio Carlos Moura/Cimi

Discernimentos

Perguntado sobre o significado do Concílio, João XXIII abriu, em um gesto simbólico, as janelas do seu quarto. Quando o Cimi abriu as janelas e as portas de uma pastoral missionária amarrada ao seu passado colonial, nem todos os setores eclesiais ficaram satisfeitos. Como trabalhar e comunicar-se com o culturalmente diferente e o geograficamente distante? Precisavam-se clarear algumas questões de fundo:

A pastoral indigenista deve preparar os povos indígenas para sua integração na civilização ocidental e na sociedade nacional? Isso significaria orientar todas as suas atividades para o mercado e o lucro: suas terras e seus saberes, a sua educação, as suas atividades econômicas e políticas. Nessa perspectiva, a missão negaria a autodeterminação e continuaria suas práticas coloniais de destruição cultural e dominação política.

A alternativa seria transformar o estilo de vida da sociedade nacional com sua “alegre irresponsabilidade” (LS 59) face ao planeta terra, ou ao menos, abrir o horizonte de um caminho específico no interior dessa sociedade, com formas de vida próprias, pós-coloniais e pós-capitalistas. A sociedade alternativa é um sonho ou um pesadelo?

Configuraram-se duas tarefas para o Cimi atuar em um contexto mais amplo: fortalecer a defesa da vida dos povos indígenas e converter a própria Igreja e a sociedade civil para aceitar que o “futuro específico” dos povos indígenas poderá um dia ser relevante e salvífico para a própria Igreja e a nação. O sonho de uma sociedade alternativa é o sonho de um horizonte antissistêmico e de um outro mundo possível, o sonho do rompimento com os paradigmas hegemônicos do crescimento e da aceleração.

A dinâmica do crescimento acompanha a dinâmica da expansão e da aceleração. O crescimento é um negócio rentável que ameaça a natureza, as gerações futuras, os povos indígenas, a saúde dos consumidores e as condições de trabalho dos assalariados. Em contrapartida, o decrescimento organizado é um projeto político sem alternativa e sem partido. Defender a vida, a Terra, a cultura e a autodeterminação fora desse projeto político de decrescimento e desaceleração, marcados por uma “sobriedade feliz” (LS 224s), significa construir uma casa sobre a areia. O “bem viver” social e ambiental exige a ruptura do paradigma hegemônico com sua meta de ampliar os lucros através de um crescimento acelerado.

Desfazer-se de práticas coloniais na ação missionária que se tornaram práticas culturais não é fácil. O que, para um setor eclesial, pareceu pacífico, para o outro, ainda continua uma questão disputada. Como interpretar o Vaticano II? Através de uma hermenêutica de continuidade ou de ruptura? Pelo seu discurso à Cúria Romana na apresentação dos votos de Natal, em 22 de dezembro de 2005, portanto 40 anos depois do final do Vaticano II, o papa Bento XVI procurou responder a essa pergunta. “À hermenêutica da descontinuidade”, disse o papa naquela ocasião, “opõe-se a hermenêutica da reforma”, acrescentando a seguir o que permitiu a passagem de uma pastoral colonial para uma pastoral pós-colonial: “É exatamente neste conjunto de continuidade e descontinuidade a diversos níveis que consiste a natureza da verdadeira reforma” (SUESS, 2012). O Cimi, comprometido com a defesa da vida dos povos indígenas em todas as suas dimensões, veio para implementar essa “verdadeira reforma”, no campo da pastoral indigenista e indígena. Assumiu a sua missão como uma pastoral profética de denúncia, renúncia e anúncio: denúncia da vida indígena ameaçada, renúncia a um estilo de vida insustentável (cf. LS 161) e anúncio do “bem viver” em uma sociedade fraterna “com o sabor do Evangelho” (FT 1).

Ao definir suas linhas de ação em 1975, o Cimi destacou sua proposta de uma sociedade alternativa, que permanece até hoje um sonho, um horizonte e uma esperança em prol da sobrevivência de toda a humanidade

V encontro da pastoral indigenista, em Belém (PA), no ano de 1975. Os encontros pastorais ajudaram a definir e alinhar a atuação do Cimi no país. Foto: Egydio Schwade/Cimi

V encontro da pastoral indigenista, em Belém (PA), no ano de 1975. Os encontros pastorais ajudaram a definir e alinhar a atuação do Cimi no país. Foto: Egydio Schwade/Cimi

Propostas

Em sua primeira Assembleia Geral, de 1975, o Cimi reconheceu, em nome da Igreja Missionária, uma corresponsabilidade na espoliação territorial, destruição cultural e negação jurídica às quais, por séculos, os povos indígenas foram submetidos. Ao mesmo tempo, em seu Documento Final, comprometeu-se com seis linhas de ação programática que, não somente até hoje constam de sua orientação pastoral, como também deixaram seus vestígios nas subsequentes Conferências Gerais do Episcopado Latino-Americano e do Caribe de Puebla (1979), Santo Domingo (1992) e Aparecida (2007):

Terra/Território: Recuperação, demarcação e garantia de “terra apta e suficiente para um crescimento demográfico adequado à sua realidade ecológica e socioeconômica” (SUESS, 1980). O Cimi comprometeu-se a “apoiar decidida e eficazmente, em todos os níveis, o direito que têm os povos indígenas de recuperar e garantir o domínio de sua terra”.

Cultura: “Reconhecer, respeitar e apoiar o direito que têm os povos indígenas de viver segundo a sua cultura” e “animar os grupos em processo de desintegração para que revitalizem sua cultura” (CIMI, 1980). O conhecimento da cultura do outro é o pressuposto da possibilidade de qualquer diálogo e comunicação. “A partilha e o anúncio exigem o conhecimento profundo da língua, dos códigos e símbolos da respectiva cultura indígena como meio para que o diálogo se realize” (CIMI, 2015).

Autodeterminação: “Reconhecer que, como pessoa e como povo, são e devem ser aceitos como adultos, com voz e responsabilidade, sem tutela nem paternalismo, capazes de construir sua própria história” (CIMI, 1980). A organização das Assembleias de Lideranças Indígenas surgiu desse incentivo da autodeterminação, tornando-se as principais formas de sua expressão.

Em plena ditadura militar, a primeira dessas Assembleias realizou-se em Diamantino (MT), na Missão Anchieta dos jesuítas, em abril de 1974. Participaram do encontro 16 chefes indígenas, representando os povos Apiaká, Kayabi, Tapirapé, Rikbaktsa, Irantxe, Paresi, Nambikwara, Xavante e Bororo. A Segunda Assembleia Indígena, em maio de 1975, convocada para a sede da Missão Franciscana do Cururu, no Alto Tapajós, já reuniu 33 líderes, representando 13 diferentes nações indígenas. Dos 3.600 Munduruku que vivem espalhados pela região do Alto Tapajós, cerca de 800 se deslocaram em canoas para o Cururu e acompanharam os trabalhos, participando das festas de confraternização à noite. Entre as reivindicações básicas do encontro constam a demarcação das reservas, a valorização da cultura, a união entre os diferentes povos indígenas e a participação nas decisões da política indigenista do governo.

A partir dessas assembleias, indígenas de diferentes povos e nações, começaram a reconhecer-se como vítimas do mesmo sistema de dominação, criaram uma consciência comum sobre as causas do seu sofrimento e fizeram ouvir a sua voz diante da sociedade nacional.

Encarnação/Inculturação: A encarnação foi compreendida como seguimento de Cristo, comprometido com a vida dos povos indígenas, convivendo com eles e “assumindo sua causa, […] superando as formas de etnocentrismo e colonialismo” (SUESS, 1980). “Os missionários não se limitem à adaptação de alguns ritos nas cerimônias, mas se comprometam também a um sério estudo da cultura e da religião indígena”.

Conscientização: A Igreja assume uma atitude de autocrítica “sobre sua aliança com os poderosos, optando real e eficazmente pelos oprimidos e marginalizados” (SUESS, 1980). O Cimi assumiu um compromisso com a formação integral dos missionários, porque grande parte deles não recebeu orientação para realizar esse tipo de trabalho.

Pastoral Global: A pastoral indigenista se propôs a inserir-se como parte integral da Igreja local, como pastoral específica, contextual, universalmente libertadora e nacionalmente organizada e estruturada. Ao mesmo tempo, a pastoral indigenista do Brasil faz parte “da missão que a Igreja Latino-Americana se sente chamada a cumprir no mundo de hoje”. Ela deve visibilizar “o apelo dos oprimidos e marginalizados, superando nossos individualismos de Igrejas e Congregações” (SUESS, 1980).

Ao concluir essas Linhas de Ação de 1975, o Cimi destacou sua proposta de uma sociedade alternativa, que permanece até hoje um sonho, um horizonte e uma esperança em prol da sobrevivência de toda a humanidade: “cremos proporcionar uma alternativa ao único modelo socioeconômico e religioso da sociedade”, do mundo e do planeta.

Desde o início de sua atuação, o Cimi procurou setores aliados dispostos a romper com os paradigmas hegemônicos do crescimento, da aceleração e, segundo Barbados, com “o espírito suntuário e faraônico das missões”

X Assembleia Geral do Cimi, em 1993. Foto: Francisca Picanço/Cimi

X Assembleia Geral do Cimi, em 1993. Foto: Francisca Picanço/Cimi

Alianças

Com quem defender a vida dos povos indígenas em uma sociedade de classe, estruturalmente focada em crescimento de lucros para privilegiados, e com uma Igreja dividida entre setores pré e pós-conciliares e despreparada para o reconhecimento da diversidade étnica e religiosa como imperativo de sua missão evangelizadora? É fundamental consolidar alianças tendo como horizonte uma nova ordem social, baseada na solidariedade e tolerância, no respeito à dignidade humana e à diversidade étnica e cultural.

Um ano antes da fundação do Cimi, um grupo de antropólogos reunidos na ilha de Barbados (1971) lançou duras críticas aos Estados e aos próprios antropólogos, e denunciou as missões religiosas da América Latina como “uma grande empresa de recolonização e dominação, em conivência com os interesses imperialistas dominantes”.

Nessa Declaração, os participantes desse “Simpósio sobre a fricção interétnica na América do Sul”, patrocinado pelo “Programa de Combate ao Racismo” do Conselho Mundial das Igrejas, propuseram “que o melhor para as populações indígenas, e também para preservar a integridade moral das próprias igrejas, é acabar com toda atividade missionária”.

Essa proposta de uma moratória missionária não só para o Brasil, mas para todo um continente, causou espanto e mostrou a urgência de uma reorientação missionária já iniciada pelo Vaticano II, e Medellín, e fortaleceu as ilhas de autocrítica já existentes no interior de muitas Igrejas. O Cimi reagiu ao evento de Barbados com uma autocrítica contundente e reconheceu “que grande parte dos missionários, que já trabalham em Missões, não receberam orientação para esse tipo de trabalho” (CIMI, 1980), e se comprometeu com a organização de cursos, reciclagem e seminários de Antropologia, Teologia e Economia.

Desde o início de sua atuação, o Cimi procurou setores aliados dispostos a romper com os paradigmas hegemônicos do crescimento, da aceleração e, segundo Barbados, com “o espírito suntuário e faraônico das missões”, superando “o herodianismo intrínseco à atividade catequizadora como mecanismo de colonização, europeização e alienação das populações indígenas”. Em Barbados, apresentaram-se os primeiros parceiros de uma aliança autocrítica para o Cimi, os antropólogos. Um dos assinantes de Barbados, Darcy Ribeiro, que veio do seu exílio do Chile, assessorou posteriormente vários encontros do Cimi.

No Brasil, na época da criação do Cimi, os povos indígenas eram considerados uma minoria desorganizada com não muito mais do que 100 mil indivíduos. Hoje, 50 anos mais tarde, contam um milhão, dos quais, aproximadamente, a metade vive em suas aldeias, e a outra metade em ambientes urbanos

Dom Luciano, então presidente do Cimi, com Paulo Paiakan e Raoni Metuktire, durante as articulações em defesa dos direitos dos povos indígenas na Constituinte, em 1988. Foto: Egon Heck/Cimi

Dom Luciano, então presidente do Cimi, com Paulo Paiakan e Raoni Metuktire, durante as articulações em defesa dos direitos dos povos indígenas na Constituinte, em 1988. Foto: Egon Heck/Cimi

Outras alianças eram necessárias e possíveis, no interior da própria Igreja católica, por exemplo, com as diferentes pastorais próximas aos movimentos populares, alianças no âmbito ecumênico e interreligioso, alianças interculturais e interétnicas, e alianças com setores favoráveis à causa indígena nos diversos países latino-americanos. Durante a ditadura, o que uniu essas alianças foi o movimento pela redemocratização do país. Posteriormente, a costura política dessas alianças com setores eclesiais e civis, e contra a política oficial de integração, aculturação e desenvolvimentismo, era e continua sendo um desafio maior.

No Brasil, na época da criação do Cimi, os povos indígenas eram considerados uma minoria desorganizada com não muito mais do que 100 mil indivíduos. Hoje, 50 anos mais tarde, contam um milhão, dos quais, aproximadamente, a metade vive em suas aldeias, e a outra metade em ambientes urbanos. Defender a causa indígena, articular na sociedade ilhas e setores isolados e favoráveis a essa causa, e transformar, a partir do Vaticano II e de Medellín, um sentimento humanitário genérico em um dever evangélico específico, urgente e comprometido preferencialmente com os pobres e os outros, eram e são seus maiores desafios.

O Documento Final da “Segunda Assembleia Geral” do Cimi, de 1977, despertou mais explicitamente o trabalho missionário para a necessidade das alianças. Ao assumir a “evangelização libertadora, constatamos cada vez mais como é uma só a causa dos grupos oprimidos, e por isso nos comprometemos a promover um maior entrosamento entre a Pastoral Indigenista, a Pastoral da Terra e a Pastoral Operária” (SUESS, 1980).

No Documento Final da “Terceira Assembleia Geral”, de 1979, já se encontra a dimensão latino-americana e ecumênica das alianças com mais ênfase: “procurando juntos a conversão ao Evangelho, assumimos com a Igreja na América Latina a opção preferencial pelos pobres. Para nós, concretamente isto significa uma opção pelos povos indígenas”.

O documento recomenda ainda “uma atenção maior ao contato e colaboração com as missões de outras Igrejas”. A dimensão continental e a prática ecumênica da evangelização tornam necessário “que os povos indígenas e o trabalho missionário se unam no âmbito de América Latina”.

Em 1980, o Cimi organizou em São Paulo o “Primeiro Encontro Ecumênico de Pastoral Indigenista” do Cone Sul, com a participação de representantes de Argentina, Bolívia, Brasil e Paraguai. Os participantes se comprometeram a fazer um anúncio do Evangelho focado na “libertação integral” e na defesa dos “direitos fundamentais dos povos”, zelando pela “unidade dos povos indígenas” e impedindo “divisões por problemas religiosos”.

Em 1984, a prelazia de São Félix do Araguaia (MT) realizou um encontro entre missionários, indígenas Tapirapé e Karajá e aliados, como Bartolomeu Meliá, para discutir as perspectivas da evangelização entre povos indígenas. Foto: Paulo Suess/Cimi

Em 1984, a prelazia de São Félix do Araguaia (MT) realizou um encontro entre missionários, indígenas Tapirapé e Karajá e aliados, como Bartolomeu Meliá, para discutir as perspectivas da evangelização entre povos indígenas. Foto: Paulo Suess/Cimi

Foi organizada uma série de encontros, consultas e cursos latino-americanos que eram sempre também ecumênicos: Manaus (1977/1980), Brasília (1983), com o tema “Organizar a esperança”; São Paulo (1985), Quito (1986), com o tema “Contribuições dos povos indígenas à Teologia Cristã”; São Paulo (1991), com o tema “500 anos: situação atual e raízes históricas dos povos indígenas, desafios e compromissos”; La Paz (1992), e muitos outros (PREZIA, 2003).

Para essa caminhada ecumênica e continental, o Cimi se articulou com o “Conselho Latino-Americano de Igrejas” (CLAI), uma organização de igrejas e movimentos cristãos não católicos, criado em 1983 no Peru e com sua sede em Quito, Equador.

Desde 2005, o Cimi assumiu, o que já era prática anterior, em seu Plano Pastoral, explicitamente “como aliança primeira e maior, a própria articulação dos povos indígenas no Brasil e no continente como pressuposto das alianças externas” e se empenhou também na articulação das “alianças dos povos indígenas com o movimento popular” (CIMI, 2015).

Na caminhada ecumênica e latino-americana do Cimi nasceu, nos anos de 1990 e ainda bastante improvisado, a “Articulação Ecumênica Latino-Americana da Pastoral Indígena” (AELAPI), que se tornou o berço da articulação dos encontros da Teologia Índia. No sítio da AELAPI está publicado todo o conteúdo programático do Primeiro e do Segundo Encontro Latino-Americano de Teologia Índia (México, 1990; Panamá, 1993), e estão também registrados os encontros seguintes de Bolívia (1997), Paraguai (2002), Brasil (2006), El Salvador (2009), Equador (2013), e Guatemala (2016). Desde o ano 2011, em Lima, a AELAPI constituiu-se em Instituição Ecumênica de Direito Civil sem fins lucrativos e se comprometeu em sua Ata Fundacional a:

– Assumir a causa dos povos indígenas, solidarizando-se com suas aspirações, lutas e propostas, presentes em suas culturas e experiências religiosas.

– Ser sinal profético nas igrejas: denunciar os sinais da morte e anunciar a presença de Cristo criador nas cosmovisões, mitos, ritos, línguas e outras expressões da espiritualidade dos povos originários.

– Estimular a reflexão teológica própria das comunidades indígenas, em vista do projeto de vida alternativo para a sociedade e as igrejas.

– Denunciar as formas com que a sociedade envolvente agride a biodiversidade da criação, afeta a saúde e a cultura dos povos indígenas e impõe estilos de vida alheios às suas tradições e põe em perigo a vida da humanidade.

O Cimi, como organismo da CNBB, estava e está também articulado com a pastoral mais ampla da América Latina nas Conferências Gerais do Episcopado Latino-Americano de Puebla (1979), Santo Domingo (1992), Aparecida (2007) e do Sínodo para a Amazônia (2019), em cujos documentos finais se encontram vestígios de uma nova pastoral indigenista e de uma ação missionária politicamente situada, mística e militante.

A defesa dos povos indígenas obriga-nos a ampliar, aprofundar e fortalecer as alianças. Na Exortação Apostólica Evangelii gaudium, o Papa Francisco nos pede para não ficarmos parados, mas com “santa ousadia buscar novos caminhos” (EG 288), e nos pergunta: “Por que esperamos nós?” (EG 120). E exorta: “Não tenhas medo!” (Lc 5,10).

A opção missionária do Cimi contrariou os interesses do latifúndio, do grande capital e do modelo de desenvolvimento. Em consequência, a sua história está, como a história dos povos indígenas, marcada por suspeitas, perseguições e martírios

Vicente Kañas, o Kiwxi, assassinado em 1987 a mando de fazendeiros interessados nas terras do povo Enawenê-Nawê, com os quais atuava. Foto: arquivo Cimi

Vicente Kañas, o Kiwxi, assassinado em 1987 a mando de fazendeiros interessados nas terras do povo Enawenê-Nawê, com os quais atuava. Foto: arquivo Cimi

Martírio

Toda experiência de caminhar por novos caminhos, de corrigir as estruturas destrutivas de produção e de humanizar a convivência das pessoas entre si e com a natureza “requer mudanças profundas nos estilos de vida” (LS 5). A opção missionária do Cimi contrariou os interesses do latifúndio, do grande capital e do modelo de desenvolvimento. Em consequência, a sua história está, como a história dos povos indígenas, marcada por suspeitas, perseguições e martírios. Desde 1978, o Porantim, e a partir de 2003, o Relatório – Violência contra os povos indígenas no Brasil registram os cenários de luta solidária do Cimi.

O denominador comum dos mártires do Cimi é a luta profética pela terra e pela preservação da sabedoria dos povos indígenas, onde o Bem Viver é fruto de um estilo de vida partilhado por todos. Nós, que acompanhamos o Cimi desde seu início, levamos muitos nomes desses mártires na memória e no coração: Rodolfo Lunkenbein (1976), salesiano; Simão Cristino, Bororo; João Bosco Burnier (1976), jesuíta; Ezequiel Ramin (1985), comboniano; Cleusa Rody Coelho (1985), agostiniana recoleta; Vicente Cañas (1987), jesuíta; Marçal Tupã´í (1983), líder Guarani. Cada um, cada uma e tantos outros que os seguiram marcaram os 50 anos do Cimi e estão inscritos “no livro da vida” (Apc 13,8).

Depois de 50 anos, o horror não passou. A missão do Cimi e de seus aliados continua, como defesa das vítimas e “memória perigosa” de um outro mundo possível

Dom Tomás Balduíno, um dos fundadores do Cimi, no primeiro Acampamento Terra Livre (ATL), em 2004. Foto: acervo do Cimi

Dom Tomás Balduíno, um dos fundadores do Cimi, no primeiro Acampamento Terra Livre (ATL), em 2004. Foto: acervo do Cimi

Epílogo

A missão do Cimi, que assumiu em 1972, no silêncio e na solidão da ditadura militar, a dívida histórica da Igreja católica para com os povos indígenas, continua. Não podemos “cair na tentação de virar a página, dizendo que já se passou muito tempo e é preciso olhar adiante” (Fratelli Tutti 249), e que já cumprimos a nossa missão.

Depois de 50 anos, o horror não passou. A violência contra os povos indígenas continua porque a sua causa continua no olho do furacão travestido de progresso, que invade e devasta seus territórios e suas condições de vida. A missão do Cimi e de seus aliados continua, como defesa das vítimas e “memória perigosa” de um outro mundo possível.

 


 

*Texto adaptado a partir de artigo publicado originalmente na revista “Caminhos de Diálogo”, da PUC Curitiba, ano 10, n. 16, jan/jun 2022

[1] Doutor em Teologia pela Universidade de Münster. Bacharel em Teologia pela Universidade de Munique (LMU). Assessor teológico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi)

[2] Doutor em Psicologia Social e do Trabalho pela USP. Atualmente é professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, integrando o Programa Pindorama voltado aos indígenas na PUC/SP

Referências

BARBOSA, Nilson. Marçal de Souza – Guarani, 2008.  Documentário-resumo com voz e imagem de Marçal, João Paulo II, Aristídia, Celina e outros. Disponível em: https://youtu.be/mPBC7-VI1wQ . Acesso em: 15 fev. 2022.

CAMARGO, Gonçalo Ochoa (org.). Pe. Rodolfo Lunkenbein: Uma vida pelos índios de Mato Grosso. In: Convergência, jul./ago. 1991, XXVI/244, p. 338-352.

CARELLI Vincent; SEVERIANO Milton. Mão branca contra o povo cinza. Vamos matar este índio? São Paulo, Centro de Trabalho Indigenista (Brasil Debates), 1980.

CIMI/CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO. Documento Final da `Primeira Assembleia Geral´, 1975. In: SUESS, Paulo. Em defesa dos povos indígenas. Documentos e legislação. São Paulo: Loyola, 1980, p. 61-65.

CIMI/CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO. Plano Pastoral, 4a ed., Brasília: 2015.

DAVIS, Shelton H. Vítimas do milagre: O desenvolvimento e os índios do Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

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PREZIA, Benedito (org.). Caminhando na luta e na esperança. Retrospectiva dos últimos 60 anos da Pastoral Indigenista e dos 30 anos do Cimi. Textos e documentos. São Paulo: Loyola, 2003.

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