Movimento Indígena de Roraima realiza edição local do Acampamento Terra Livre e se une aos parentes mobilizados em Brasília
O ATL de Roraima acontece pela 3ª vez e recebe em Boa Vista mais de mil lideranças de todos os povos indígenas do estado, que se posicionam contra as políticas dos governos Federal e Estadual
Para os indígenas Wapichana, Udorona é a força vital que movimenta e anima o ser humano. Está na fala, no sangue, na respiração. A fala, a respiração e o sopro formam a alma que, para os Wapichana, tem o poder de transformar o mundo.
É com essa compreensão e esperança que o tuxaua Cesar Wapichana, da região Serra da Lua, da Terra Indígena Tabalascada, em Roraima, descreve o Acampamento Terra Livre (ATL) que acontece em Roraima, desde o dia 5 de abril, em sintonia com o ATL em Brasília, com o tema “Retomar o Brasil, Demarcar Território e Aldear a Política”.
“Nós, lideranças da Serra da Lua, queremos dizer que esse acampamento tem o objetivo muito grande para nós, o objetivo de transformar essa situação que os povos indígenas estão passando. A gente luta pela defesa dos territórios e a gente busca sempre a melhoria no atendimento das políticas públicas para as comunidades. Estamos aqui não é por acaso, não é porque queremos. Buscamos melhorias para a nossa população, do atendimento na educação, saúde, na proteção dos nossos territórios e das nossas vidas”.
“Estamos aqui não é por acaso, não é porque queremos”
Mais de mil lideranças, dos povos Wapichana, Macuxi, Yanomami, Xirixana, Taurepang, Sapara, Ye’kuana, Wai Wai e Ingaricó das regiões Raposa, Serras, Baixo Cotingo, Murupú, Tabaio, Amajarí, Surumú, Serra da Lua, São Marcos, Yanomami e Wai Wai, e ainda os Warao migrantes da Venezuela, acamparam em Boa Vista.
Com uma intensa programação, os indígenas se concentraram na praça do Centro Cívico para celebrar, animar, dançar, cantar, falar, respirar e dar o sopro da vida e da alma, como dizem os Wapichana, para transformar a realidade de ataques e violências que passam os povos indígenas para uma realidade de respeito, direitos, existência e vida digna.
A professora e coordenadora da juventude da região Serra da Lua, Joice Wapichana, da comunidade Novo Paraíso, lembra que os indígenas nunca pararam de lutar pelos seus direitos. “Somos um povo que sempre lutou para que os nossos direitos sejam atendidos. Nunca nos foi dado de mão beijada. Sempre tivemos que lutar e ainda estamos em luta. Mesmo com nossas lutas ainda não somos atendidos”, diz a Wapichana com força e emoção.
Joice falou sobre as visitas que o ATL de Roraima fez aos diversos órgãos responsáveis pelas políticas públicas indígenas e de proteção aos territórios, e conta que nem todos tiveram, ao menos, o respeito de receber as delegações indígenas.
“Nessa semana, fomos às instituições. Em algumas fomos recebidos, outras não fomos nem atendidos. Essa é a situação atual de como somos tratados. Mesmo tendo os direitos garantidos por lei, pelos [artigos] 231 a 232 [da Constituição Federal], nossos direitos ainda são muito violados. Nossa saúde está precária, nossa educação está precária e nosso território desprotegido. Não estamos aqui à toa, a gente veio para lutar. A gente marcou audiência aqui com as instituições, mas eles não compareceram, mostrando o tamanho da falta de respeito com os povos indígenas”, relatou.
“A gente marcou audiência aqui com as instituições, mas eles não compareceram, mostrando o tamanho da falta de respeito com os povos indígenas”
Lamentando pelo que viram e sentiram por parte dos órgãos, o coordenador da região Serra da Lua, Clóvis Ambrósio Wapichana, lembrou a história de luta e resistência dos povos indígenas desde que o colonizador chegou ao Brasil, e diz que os ataques, hoje, são através das mudanças das leis, mas afirma que vão continuar resistindo.
“Hoje estamos no 3º ATL aqui em Roraima, mas não sabemos quantos e quantos ainda vamos fazer. Estamos aqui em uma causa muito forte para nós. Da década de 70 para cá, já conquistamos muitas coisas. Não estamos aqui só para passear, viemos para dizer às autoridades que estamos muito pensativos com tudo que é contra nós, principalmente esses projetos de lei que estão tramitando. Pois nenhum vem fortalecer nossos direitos, mas sim querer tirar. Desde 1500 que somos tratados assim, com discriminação, com destruição da nossa terra e da nossa população. Mas não vamos desistir da vida”, afirma.
“Desde 1500 que somos tratados assim, com discriminação, com destruição da nossa terra e da nossa população”
A professora indígena Rosangela Magalhães Lima Wapichana, da comunidade Taxi, na região Surumu da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, também mostrou sua indignação com a falta de respeito pelos direitos indígenas e reforçou a resistência secular dos povos originários.
“O ATL em Boa Vista acontece junto com o ATL de Brasília e é para reivindicar nossos direitos que não estão sendo respeitados pelos governos federal e estadual. Somos povos originários lutando em defesa dos nossos direitos, pela nossa Terra Mãe e tudo que existe nela. Somos povos resistentes e não vamos nos calar diante dessas atrocidades que estamos sofrendo”.
“Somos povos resistentes e não vamos nos calar diante dessas atrocidades que estamos sofrendo”
Somando sua voz às vozes das lideranças presentes no ATL 2022, em Brasília e em Roraima, o Cacique Daniel Alves Wapichana, da região Surumu, Terra Indígena Raposa Serra do Sol, explica que “o ATL acontece para que os povos indígenas tragam sua insatisfação com o governo brasileiro, tanto a nível local, quanto a nível nacional. É referente a cobranças da educação, da saúde, de estruturas físicas e de estruturas de pessoas humanas”, afirmou.
“O Estado brasileiro abandonou os povos indígenas, a saúde indígena, não temos transporte, não temos combustíveis, não temos agora voo para atender nosso povo na base. E além do território que é o principal para nós povos indígenas, o governo vem tirando todos os direitos que foram garantidos em 1988, contradizendo a Constituição Federal, apresentando PLs, PECs, PDLs, contra os indígenas de todo o Brasil”.
“É com essa conjuntura que a gente vem se mobilizar e mostrar a nossa insatisfação pelo estado brasileiro e aqui no governo estadual. A gente não compactua com essas irregularidades, esse massacre, essa discriminação, esse preconceito que tem por parte do governo do estado de Roraima e por parte do governo Bolsonaro”, e lembra que as conquistas alcançadas são resultado do movimento indígena.
“O Estado brasileiro abandonou os povos indígenas”
“O movimento indígena trouxe resultados positivos ao longo dos anos. Desde que começou a história das nossas lideranças tradicionais, na década de 70, a gente não ganhou as coisas de mão beijada, sempre foi na base da pressão, sempre foi com o povo na rua, derramando sangue, morrendo para conquistar uma educação diferenciada, uma saúde de qualidade e conseguir o mais principal que é nossa terra mãe”, conta o cacique, lembrando da luta e do resultado positivo alcançado.
“Quando a gente lutou e ganhou a demarcação das terras indígenas, como a Raposa Serra do Sol, em área contínua, e várias outras terras indígenas demarcadas, foi uma conquista do movimento indígena de Roraima. E o resultado foi positivo. Porque o governo faz as coisas não por que ele quer, mas porque ele é pressionado pelo povo. Então, precisa ter uma ação para ter uma reação por parte dos poderes públicos”, afirma o cacique, conclamando as lideranças e apresentando as conquistas.
As mentiras da Funai
O primeiro lugar visitado pelas lideranças presentes no ATL-RR 2022 foi a sede da Coordenação Regional da Fundação Nacional do Índio (Funai) em Boa Vista, Roraima.
De acordo com os participantes a visita foi, assim como em todos os lugares, pacífica, sem qualquer tipo de violência, ameaça ou constrangimento, como é a característica dos povos indígenas de Roraima. Segundo o missionário jesuíta Gabriel Vilardi, da Pastoral Indigenista de Roraima, “os povos indígenas de Roraima têm um histórico de luta pacífica. Sempre foi ao contrário, eles são vítimas das violências, das opressões, das injustiças por parte dos fazendeiros, dos políticos locais, dos coronéis de Roraima”.
Vilardi conta que no momento da visita, os participantes “se dirigiram de forma pacifica, mulheres, crianças, adolescentes, idosos, adultos, caminhando, cantando e dançando parichara, as danças tradicionais e, ao chegar, pediram a presença do coordenador da Funai [Osmar Tavares de Melo] para entregar um documento em que estavam elencadas as reivindicações do movimento. Esperaram por muito tempo, entraram na sede cantando e dançando, e foram surpreendidos por uma viatura da Força Nacional de Segurança que chegou para intermediar o diálogo. O coordenador, então, recebeu os indígenas”.
“Mas, lamentavelmente, no dia seguinte, a Funai divulgou uma nota oficial, mas mentirosa, dizendo que tinha sido constrangida, sofrido ameaças, que o prédio da Funai havia sido invadido. Mas isso não é verdade, não corresponde aos fatos. Nós, missionários da Pastoral Indigenista que acompanhamos o ATL, estávamos presentes e afirmamos que não houve nenhum tipo de depredação do patrimônio, muito menos algum tipo de ameaça. Ao contrário, foi um protesto muito bonito”, e conclui dizendo que por parte do coordenador da Funai “foi um desrespeito, um desserviço o que o coordenador regional da Funai fez com os povos indígenas de Roraima”.
“Os povos indígenas de Roraima têm um histórico de luta pacífica”
O Conselho Indígena de Roraima (CIR), logo após a nota divulgada pelo coordenador Osmar, divulgou Nota de Esclarecimento dizendo que ao “o CIR, ao contrário do que foi publicado em Nota Oficinal da Funai, não promoveu nenhuma invasão” e que a nota da Funai foi “um ato de má-fé usada pela Fundação Nacional do Índio em seu site eletrônico na data de ontem, 05/04/2022, às 20h11, atualizado em 06/04/2022 às 12h37.
A Nota de Esclarecimento diz ainda que, “a divulgação da Nota Oficial da Funai com tal teor, falso, parece tratar, mais uma vez, e desta vez ainda pior, porque parte da própria Funai, de fake news e tentativa de criminalizar uma organização indígena que trabalha há mais de 50 anos na defesa dos direitos dos povos originários”.
Também os DSEIs Leste e Yanomami, responsáveis pela saúde indígena de Roraima, foram visitados e, diferente da Funai, seus coordenadores receberam as reivindicações e dialogaram com as lideranças.
Omissão da Secretaria de Educação
A secretária de educação de Roraima, Leila Perussolo, também não recebeu os indígenas, se negando a receber a pauta de reivindicações que as lideranças documentaram para entregar à Secretaria de Estado de Educação de Roraima.
Para o missionário da Pastoral Indigenista, que também acompanhou os indígenas nessa visita, “esse foi outro episódio muito lamentável. Ela estava presente no prédio e se negou, de forma muito arrogante, a sair do seu gabinete para receber o documento e escutar as reivindicações dos povos indígenas. Nós sabemos que há uma lista enorme de problemas com as escolas estaduais indígenas. Escolas caindo aos pedaços, com teto furado, com carteiras velhas, com falta de material didático, com merenda estragada, sem professores, sem recursos mínimos para as crianças e adolescentes indígenas estudarem, violando a Constituição Federal no direito à educação”, relata Vilardi que atende as comunidades indígenas da região da Serra da Lua, formada por 21 comunidades indígenas, junto com a Congregação de Irmãs Católicas Filhas da Caridade.
O MPF recebe Carta Denúncia
A Procuradoria da República em Roraima também recebeu as lideranças indígenas do ATL-RR 2022. Dr Alisson Maruga atendeu ao chamado e foi recebido com respeito, diálogo e muita festa pelo compromisso que assume em defesa dos povos indígenas.
Recebeu a Carta Denúncia que relata os empreendimentos alheios às necessidades indígenas e que violam seus direitos constitucionais ao seu modo de vida. E afirmam na Carta:
“As nossas terras são fundamentais para a nossa vida, nossa cultura, nossos costumes, nosso bem viver e nossa sustentabilidade. As nossas terras estão sendo invadidas e devastadas. Sem nossos territórios não há bem viver, não há vida dos povos indígenas. Somos protetores de 35 terras indígenas no Estado de Roraima, equivalentes a 46% do território do Estado”.
O ATL de Roraima segue mobilizado até o dia 14 de abril, em sintonia com o ATL 2022, em Brasília.