09/01/2022

Dia Internacional dos Direitos Humanos para quem?

Vozes críticas e atentas, nos limites de suas possibilidades, continuam a ecoar pedidos para que as injustiças e as violações não sejam silenciadas

Indígenas Guarani kaiowá fortalecem reivindicação contra violação de direitos humanos em visita da Delegação da CIDH. Foto: Ascom MPF/MS

Por Hellen Loures da Assessoria de Comunicação do Cimi – MATÉRIA PUBLICADA ORIGINALMENTE NA EDIÇÃO 441 DO JORNAL PORANTIM

Não há o que se comemorar no país das violações de Direitos Humanos e das políticas anti-civilizatórias. Onde os custos da devastação e dos crimes contra a vida são banalizados por seus governantes e encarados como normalidade. Violências que a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em Paris há 73 anos, em 10 de dezembro de 1948, procurou combater, num esforço para que as vidas fossem respeitadas em sua integralidade e para a concretização de políticas justas, que apontassem o rumo da construção de uma ética de respeito à diversidade.

No entanto, na contramão da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o mundo assiste ao genocídio de povos originários com a pressão sobre seus territórios e negligência do atendimento básico de saúde e, todos os anos, observa-se o aumento da truculência e ultraje com os quais os povos indígenas são tratados em todo o país. “Mesmo se tratando de uma população desrespeitada e violentada ao longo de mais de cinco séculos, é inegável que, a partir de 2019, com a eleição do governo Bolsonaro, houve um recrudescimento e, pior ainda, um incentivo às práticas ilícitas e violentas contra os povos indígenas”, constatou o Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil, com dados de 2020, publicado anualmente pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

O documento aponta que a morosidade e omissão do Estado na regularização do território indígena tem causado intensos conflitos e severas violações de direitos humanos como fome, violências de todo tipo, assassinatos, hipervulnerabilidade social, bem como incapacidade do povo de viver a partir dos seus usos, costumes e tradições, como previsto na Carta Magna do país. Tais informações também podem ser verificadas no relatório da própria Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que lançou, no início de 2021, um documento que descreve a situação dos direitos humanos no Brasil.

“Muitas dessas pessoas, por conta da discriminação baseada na origem étnico-racial, acabam em um ciclo de pobreza que as impele a situações habitacionais extremamente precárias”

Na ocasião, a CIDH analisou, entre outras coisas, as situações das comunidades quilombolas, povos indígenas, camponeses e trabalhadores rurais, pessoas sem-terra e sem-teto, assim como aquelas que moram em favelas e áreas periféricas. De acordo com o relatório, a Comissão buscou o ponto de conexão entre as violações sofridas por esses indivíduos e comunidades e a sua estreita vinculação com o processo de exclusão histórica no que diz respeito ao acesso à terra, bem como à privação efetiva a direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais.

“Muitas dessas pessoas, por conta da discriminação baseada na origem étnico-racial, acabam em um ciclo de pobreza que as impele a situações habitacionais extremamente precárias e, por consequência, as expõem à violência perpetrada por grupos e organizações criminosas”, destaca o documento, que expõe um país que internacionalmente vem sendo criticado por adotar práticas que contrariam tudo que dispõe os Direitos Humanos.

O relatório frisa ainda que se soma aos problemas apresentados, a emergência de agendas parlamentares que visam minar os avanços no âmbito das políticas indigenistas. “A esse respeito, a Comissão recebeu informações de que, no final de 2018, havia mais de 100 projetos de lei tramitando no Congresso Nacional que objetivavam a restrição de direitos indígenas, especialmente em matéria de demarcação de terras”, aponta o documento.

Sobre a tese do marco temporal, o relatório afirma que a Comissão considera a tese como contrária às normas e padrões internacionais e interamericanos de direitos humanos, especialmente a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos e a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas. “No entender da CIDH, a tese do marco temporal desconsidera os inúmeros casos nos quais povos indígenas haviam sido violentamente expulsos dos territórios que ocupavam tradicionalmente e, apenas por essa razão, não o ocupavam em 1988”, lembra o documento.

Pedidos de socorro

Os dados do Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil relatou que, no Amazonas, em agosto de 2020, indígenas do povo Maraguá recorreram ao Ministério Público Federal (MPF) para denunciar abusos praticados por policiais militares durante o caso que ficou conhecido como “massacre do rio Abacaxis”. Além do assassinato de dois indígenas do povo Munduruku e de quatro ribeirinhos – e do desaparecimento de outros dois – durante a operação, que reuniu mais de 50 policiais na região dos rios Abacaxis e Marimari, nos municípios de Borba e Nova Olinda do Norte (AM), a comunidade relatou o uso de armas de fogo para intimidar moradores, crianças e idosos, atingidos por agressões e ameaças. Os relatos indicam a ocorrência de uma série de graves violações de direitos humanos, que um ano depois ainda aguardam a conclusão das investigações da Polícia Federal e do MPF.

Na região sul, segundo o relatório, o defensor regional de Direitos Humanos no Rio Grande do Sul (DRDH-RS), Gabriel Saad Travassos, protocolou na Justiça Federal uma Ação Civil Pública (ACP) contra a União, a Funai, e o estado do Rio Grande do Sul, para garantir o fornecimento de alimentos, materiais de higiene, assistência médica e assistência social às comunidades indígenas isoladas no estado, em função da pandemia da Covid-19.

Outro cenário descrito no documento acorreu no final de 2020, quando a grave situação nas TIs Yanomami e Munduruku levou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) a emitir medidas cautelares em favor dos povos que habitam estes territórios. Segundo a CIDH, os Yanomami e os Ye’kwana estão “em situação grave e urgente, pois seus direitos correm risco de danos irreparáveis”. O organismo ligado à Organização dos Estados Americanos (OEA) também pediu ao Estado providências para a proteção dos Munduruku, em situação de risco no contexto da pandemia da Covid-19, “especialmente quando se considera a sua situação de particular vulnerabilidade, as falhas no atendimento à saúde e a presença de terceiros não autorizados no seu território”.

Em pronunciamento via videoconferência, vereador na cidade de Aracruz e primeiro indígena eleito no Estado do Espírito Santo, Vilson Jaguareté. Foto: Roque de Sá/Agência Senado

“Falar de direitos humanos, para nós indígenas, é falar sobretudo sobre o direito à terra”

O Senado realizou uma sessão especial para celebrar o Dia Internacional dos Direitos Humanos. Na ocasião, o presidente da sessão, o senador Fabiano Contarato (Rede-ES) disse que “é preciso que todos se conscientizem que só terão acesso a liberdade e a outros direitos básicos quando a “pauta civilizatória” for respeitada”, publicou a Agência Senado.
O vereador de Aracruz e primeiro indígena eleito no Estado do Espírito Santo, Vilson Jaguareté (PT), foi um dos participantes da sessão e abordou temas como o marco temporal e a luta contra posseiros no Espírito Santo. “Falar de direitos humanos, para nós indígenas, é falar sobretudo sobre o direito à terra, o direito à vida, à dignidade. É onde nós perpetuamos nossas tradições, nossas vivências, e onde perpetuamos essa nossa forma de viver livre, integrado ao meio ambiente. Para os povos indígenas, viver sem terra não é uma forma livre de se viver”, destacou.

De acordo com o destaque do Jornal Século Diário, Vilson também denunciou a invisibilização das comunidades diante do poder público e as pressões que enfrenta desde que foi eleito. “Desde então, o desafio só aumenta. Eu não tinha noção de como é conviver com parlamentares que são extremamente preconceituosos, e que não nos querem nesses espaços de poder. Mas é importante estarmos lá, apesar do desafio. Estamos lá firme e forte”, disse.

Essa invisibilização, aponta o jornal, também foi citada pela coordenadora nacional da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Sônia Guajajara. Presente no encontro, a liderança lembrou como as leis que garantem os direitos dos povos indígenas ainda são desrespeitadas no Brasil. “Até um passado recente da história da humanidade, nós indígenas não éramos nem considerados humanos. Fomos escravizados, nossas mulheres estupradas, nossas crianças degoladas. Mas será que isso terminou? Infelizmente, eu digo a vocês que não. As leis atuais já nos incluem nessa humanidade, das quais falam os direitos humanos. Porém, todos os anos indígenas são encontrados sendo escravizados. Diariamente, mulheres indígenas são estupradas no país inteiro. Crianças indígenas seguem sofrendo com a desnutrição sugadas por dragas de garimpos, degoladas em rodoviárias no colo de suas mães. Os direitos humanos dos povos indígenas existem, mas muitas pessoas ainda negam nossa humanidade, inclusive pessoas que governam”, declarou Guajajara.

 

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