13/10/2022

Atuação transformadora da Opan-Cimi na Amazônia Ocidental

Texto da coluna “Causos e Casos”, um especial do Jornal Porantim em comemoração aos 50 anos do Conselho Indigenista Missionário

Por Egydio Schwade* – MATÉRIA PUBLICADA ORIGINALMENTE NA EDIÇÃO 447 DO JORNAL PORANTIM

Em 1975, a Operação Anchieta (Opan) e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) já atuavam na Amazônia Ocidental com o apoio das Prelazias e Dioceses. Localizaram, ao longo dos rios Mamoré-Madeira, Purus e Envira, mais de 50 “restos” de povos indígenas esmagados por seringalistas, madeireiros e pelos novos donos, os “paulistas”, estes levados à Amazônia pelo programa de Incentivos Fiscais da Ditadura Militar.

Veja a mentalidade a respeito do índio nesta dissertação de aluno que me foi entregue em 1970 por uma professora de Guajará-Mirim/RO: “O índio e a onça – Na selva brasileira há dois animais despertados: o índio e a onça. Um vê o outro, põe-se a lutar. Nessas lutas sempre quem perde é a onça. Suas lutas são violentas e perigosa. O índio vence por ter raciocínio. Além da força, tem as armas.” (Fac-símile)”.

O Regional Cimi da Amazonia Ocidental – que compreendia os estados de Rondônia, Acre e as Prelazias de Humaitá e Lábrea, no Sul do Amazonas – era então uma enorme região onde a Igreja não possuía trabalho fixo junto aos povos indígenas antes da presença da Opan-Cimi.

A partir de 1970, a Opan, que então era formada de missionários leigos, passou a localizar e iniciar uma presença “encarnada” na realidade desses povos, segundo as orientações do Concílio Vat. II., e a partir de 1972, com a criação do Cimi, passou a trabalhar em união com este.

Em janeiro de 1976, como secretário executivo do Cimi-Nacional, subi o Alto Purus, com o Pe. Paulino Baldassari, vigário de Sena Madureira, para fazermos os primeiros contatos com os povos indígenas daquela região, visando o início da presença de equipes da Opan-Cimi junto a aqueles povos.

A noite estava um luar lindo e Pe. Paulino e Áureo, o condutor do barco, resolveram prosseguir a viagem até o sítio do Pernambuco. Chegamos lá pelas 10:00 hs da noite. Havia no porto um rebojo muito forte e o Áureo, para segurança, não encostou de primeira. Na segunda tentativa, antes de encostar falou alto: “Quenta o baque!”. Marlene Ossami e eu estávamos no meio do barco de pé e caímos por cima do banco. Na proa estava o Áureo, Pe. Paulino e Marta Callovi, da Opan-TVC (Tecnici Voluntarii Christiani). Com o baque, Marta caiu nas águas revoltas do rio. Áureo no mesmo instante, largou o leme, dizendo apenas: “Padre, segura!” – e mergulhou nas águas atrás de Marta. Em menos de um minuto voltou dali com a Marta sã e salva.

No mesmo ano de 1976, todos os bispos da região já haviam aderido ao trabalho do Cimi-Opan, menos o da Prelazia de Cruzeiro do Sul, que chegou a negar a existência de índios em sua Prelazia para evitar a presença do Cimi. Teve até uma “elegante” maneira de advertir as pessoas da Opan e do Cimi que lhes foram propor um trabalho junto aos índios: a primeira iniciativa para com os missionários(as) visitantes era apresenta-los no quartel. Uma sutil advertência de que ali o poder militar e eclesiástico agia de comum acordo! Foi assim que o bispo recebeu Arlindo Leite da Opan e a coordenadora do Regional, Doroti Alice Müller.

Sabíamos da existência de índios na Prelazia por diversas fontes, inclusive, por meio de um dos padres da mesma que já participava das reuniões do Cimi e ainda através de um livro de autoria do próprio bispo onde falava dos índios aos alemães, doadores de recursos para a Prelazia. Diante disso, tomamos a iniciativa, em 1976, de “invadir” a Prelazia de Cruzeiro do Sul.

Acompanhado de dois membros da Opan, Edna de Souza e Zé Caxias e com o apoio logístico do Pe. Paulino Baldassari, de Sena Madureira, subimos o rio Purus e, de lá, numa caminhada de sete dias por “estradas de seringa”, chegamos até o rio Envira, já na Prelazia do Cruzeiro do Sul. Devido a violência reinante no Rio Envira naquele momento, principalmente da parte das novas empresas paulistas que estavam instalando no rio, achei por bem nos dividirmos. Enquanto eu prosseguia a viagem sozinho, subindo o rio num barco de “marreteiro”, os dois jovens da Opan desceram o rio rumo a Feijó.

Fui tomando contato com pequenas comunidades de Kaxinauá e Madiha e com os seringueiros, igualmente perseguidos e despojados de seus direitos. Fui ouvindo a violência extrema, principalmente que estava sendo cometida contra os Kaxinauá, frente um personagem conhecido como Pedro Biló, que contava ostensivamente ter matado mais de 3000 Kaxinauá. No seringal Califórnia, celebrei missa. As intenções de missa da população foram unanimes pela libertação do Pedro Biló, segundo eles, “o grande benfeitor das comunidades do Envira”, que havia sido preso, diziam, pela Funai e levado para Rio Branco. Ao final da missa corria um zum-zum-zum: “Biló, Biló está chegando’. Todo mundo corre ao porto, inclusive eu. Quando ali cheguei, de fato, lá estava o Pedro Biló desembarcando. A prisão fora apenas uma farsa.

Alguns meses depois desta viagem, com os dados da existência de pelo menos dois povos indígenas neste rio: os Kaxinauá e os Madiha (Kulina), Doroti Alice Müller, da Opan-Cimi, juntamente com Giovanni Cantu, da TVC no Brasil, ligada à OPAN, se ofereceram “como catequistas” ao Pe. Vigário de Feijó, responsável daquela Prelazia pela pastoral no rio Envira, para acompanhá-lo em uma viagem de “desobriga”.

Assim, fazendo o serviço de catequese e secretaria, anotando batizados e casamentos, discretamente e com segurança, conseguiram completar o levantamento dos índios naquele rio, até os Kampa ou Ashanika, na fronteira com o Peru.

Encontraram situações muito aflitivas. Como a dos Kampa (Ashanika) e Madiha, escravos do Projeto de Desenvolvimento Novo Oeste, do Grupo Atlântica Boa Vista. Para poderem ter uma presença real, era preciso resgatá-los da fazenda e devolvê-los às aldeias. Giovanni, da TVC-Opan, ofereceu-se para este arriscado trabalho. Já no mês seguinte, apresentou-se como peão aos administradores da fazenda, amigos do Pe. vigário de Feijó, imaginando que Giovanni daria continuidade à catequese iniciada por ele.

“Quanto mais convivo com o povo, mais percebo que o Cristo se apresenta na História de uma maneira formidável. Conviveu como qualquer. Pregou a boa nova como um e morreu como um de “nós”, um líder, uma força que atrai. Uma ressurreição que muda de vida. Tudo isso, para nos dizer que estrutura nenhuma salva, pode ao máximo abrir (ou fechar) as ideias, pode nos ajudar na nossa escolha, mas o importante é a fé. É a nossa maneira de viver junto ao povo, a nossa maneira de se encarnar no povo. Enquanto nós vemos o povo, uma “coisa” longe ou uma coisa diferente de nós, estamos muito longe da vida do Cristo. O Cristo viveu sem diferença nenhuma com o seu povo, quando começou a falar (palavra = vida pública) disseram: “mas este homem não é o filho de Maria? Não é ele o carpinteiro? Não é ele um de nós?”. Sim, querida Doroti, sempre mais, estou percebendo que a nossa vida vale alguma coisa como presença se vivermos junto ao povo, “como o povo”. E como São Paulo diz: “Me fiz judeu com os judeus, romano com os romanos, pobre com os pobres, trabalhei para me sustentar, para não ser de “peso” de ninguém. Termino aqui minha carta, espero receber suas notícias, se não logo já – já. Saudações e abraços a todos aí no Sul, Caxias e P. Alegre, lembrança especial para o nosso Antônio. (Antonio Brand, coordenador da Opan). Mais nada, aquele abraço em Xto…… Ciao Tehan Giovanni”

Em um ano de permanência na fazenda, Giovanni conseguiu resgatar todos os Ashanika da Fazenda. De volta à aldeia, a Opan começou a marcar presença permanente junto a este povo, no Alto Envira. Enquanto isto, Doroti, fez o levantamento do Médio Madeira e afluentes, na Prelazia de Humaitá. E de todo o Rio Purus e afluentes, localizando os remanescentes dos povos indígenas, e dando a primeira notícia de pelo menos três povos isolados nesta região.

 

Causos e Casos

Iniciada na edição de abril de 2021, a coluna “Causos e Casos” é um especial rumo aos 50 anos do Conselho Indigenista Missionário, que traz textos assinados por Egon Heck e Egydio Schwade, dois dos fundadores do Cimi e militantes da causa indígena brasileira antes mesmo da criação da entidade.

É a comemoração do cinquentenário por meio do reconhecimento da contribuição do Cimi para o desenvolvimento da causa indigenista a partir de seus missionários e missionárias, aqui representados por Egon Heck e Egydio Schwade. Figuras históricas de luta que contribuem fortemente para a atuação missionária junto aos povos originários, dando um novo sentido ao trabalho da igreja católica.

As histórias da “Causos e Casos”, escritas especialmente para esta coluna, mostrará que a atuação missionária, além de favorecer a articulação entre aldeias e povos, promovendo as grandes assembleias indígenas, onde se desenharam os primeiros contornos da luta pela garantia do direito à diversidade cultural; também fomenta espaços políticos e estratégias para o fortalecimento do protagonismo indígena.

Egon Heck e Egydio Schwade relatam causos e casos com propriedade, pois, desde os primórdios, fizeram parte das linhas de ação do Cimi, sendo impossível separar suas vidas da causa indígena brasileira. Engajados com as comunidades desde a juventude, eles compartilham dos mesmos sentimentos dos povos originários e adotaram a causa como parte integral de suas trajetórias.

 

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*Egydio Schwade é indigenista, pesquisador, apicultor, ativista e cidadão do Estado do Amazonas, título concedido pela Assembleia Legislativa daquele Estado pela dedicação em prol dos povos indígenas da Amazônia. Relação que se iniciou em 1963, num momento em que os povos daquela região eram dizimados, tendo seus territórios rasgados por estradas, invadidos, saqueados e sendo sistematicamente desqualificados e discriminados nas suas formas de ser e agir.

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